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Por que o novo coronavírus preocupa tanto? Discussões de saúde pública e privada

Lado a lado com a busca biológica e médica pelo enfrentamento da pandemia, é necessária uma postura solidária e de fomento da cidadania que passa por uma discussão de implemento imediato de uma renda básica de emergência para toda a população.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Atualizado em 11 de abril de 2020 10:28

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Wuhan-2019 talvez tenha sido o personagem principal do Carnaval de 2020. E impediu o país de começar o ano, mesmo depois da bacchanalia, o que já é inédito. Este novo coronavírus (covid-19) assusta muita gente, mas algumas pessoas preferem compará-lo a uma simples gripe, acreditando que sua taxa de letalidade seja inferior ou equivalente à da gripe H1N1 (suína) ou da H3N3 (comum) e que, portanto, não deve haver grandes repercussões na economia e no setor de saúde da maioria dos países do mundo com os estragos com que vem se apresentando. Quem estaria certo?

Até o presente, o novo coronavírus tem índice de letalidade próximo aos 3%, segundo informações da OMS. Mas questiona-se que a letalidade correta seria aquela relativa ao universo dos que pegaram a doença, e não ao dos índices oficiais, que estaria aquém do número real de casos. Mas, se não podemos trabalhar com dados oficiais, com quais trabalharíamos? Gripes cíclicas anuais giram em torno de 0,1% de letalidade, o que é bem inferior ao poder de matar infectados do novo coronavírus.

Quanto à sua capacidade de contaminação e transmissão entre humanos, o novo coronavírus tem poder de transmissão de uma pessoa para outras duas (ou 1:2). Em termos de comparação, o vírus do sarampo tem poder de transmissão de 1:18. O sarampo é mais preocupante, em termos de transmissão, mas o covid-19 também não deixa de ser relevante neste aspecto, e talvez tenha um potencial de contaminação ainda maior. Por sua velocidade de transmissão e presença em mais de dois continentes temos inegavelmente uma pandemia, embora até isso tenha demorado a ser reconhecido oficialmente, nada obstante o apelo dos cientistas. A transmissão de pessoa a pessoa do covid-19 é agravada pelo fato de que o vírus se transmite por fômite. Pode o patógeno ter vida extracorpórea por dias no asfalto, e mesmo em superfícies metálicas e plásticas. E a falta de insumos de proteção para o uso geral dos necessitados, tais como máscaras, álcool gel, luvas, demonstra que os esforços coletivos e industriais ainda viáveis devem se voltar ao combate à pandemia.

É uma emergência de saúde pública. Cientistas de Harvard divulgaram preocupação com o potencial de que 70% da população mundial possam ser contaminados com o novo coronavírus. Se todos se contaminarem, em poucos dias o colapso de todos os sistemas de saúde é inevitável. Por isso, o único e melhor remédio: quarentena e isolamento social. São impositivos. Deve ser feito por pelo menos 30 dias, prorrogáveis por mais 30.

A ideia não é conter o contágio, mas desacelerá-lo. Muitas pessoas serão contaminadas, muitos morrerão, infelizmente, mas temos que evitar que mortes evitáveis não sejam ocasionadas, como ocorre ainda hoje na Itália, em que doentes graves não são atendidos por falta de recursos, e morrem.  Se os contágios ocorrerem de modo mais dividido ao longo dos próximos meses, não haverá falta de leitos, falta de UTI, falta de ventiladores. Isso salvará vidas que podem ser curadas. Nova Iorque hoje corre contra a possibilidade de não haver ventiladores em UTIs nos próximos dias. Se isso não se trata de emergência de saúde pública, no centro do capitalismo, o que seria necessário para parar o desenfreado tilintar da humanidade?

Enquanto irresponsáveis chamam a covid-19 de gripezinha, e "isolemos apenas os grupos de risco", cientistas de todo o mundo demonstram ser necessário isolamento social total, com medidas de quarentena, e testagem massiva de pessoas com sintomas.

Em termos de comparação didática, no caso do sarampo, sustenta-se que já há uma grande parte da população imunizada, mas a verdade alarmante é que o vírus do sarampo que transitou no Brasil e no mundo recentemente não é o mesmo subtipo do vírus constante de sua vacinade anos atrás. Ele sofreu mutações. Ou seja, não há imunidade absoluta e permanente da população. O que, em termos de virologia, é a ordem do dia, algo natural e esperado, para a turma do "deixa disso" é algo nem sabido.

O caso do covid-19 segue a mesma dinâmica, mas é peculiar em alguns aspectos. As suas mutações virais são muito recentes e talvez seja impossível desenvolver uma vacina. Se ela ocorrer, levará provavelmente alguns anos para se comprovar eficaz. Um fato é que não há vacina para esta família de vírus que já tenha sido criada pela humanidade. Este o forte argumento. Por outro lado, há esforços científicos gigantes neste intento. Ocorre que as mutações virais podem fazer do covid-19 uma nova ameaça a cada ano.

O que preocupa, em especial, é a capacidade de mutação dos coronavírus, o que já se comprova ser o caso deste covid-19, que já apresenta mutações em vários lugares do globo. Praticamente, na família viral (CoV) surge um tipo novo e mortal a cada década, com importante repercussão na saúde pública: desde 2002, a Sars já fez cerca de 800 vítimas; desde 2012, a Mers também já fez cerca de 800 vítimas. Em termos absolutos, o covid-19 já matou muito mais pessoas do que os vírus responsáveis pelas crises anteriores.

Além disso, questiona-se se o Wuhan-19 pode se tornar ainda mais contagiante e mortal ao longo do desenvolvimento da pandemia, e nos próximos anos e surtos, que já são cotados como bem prováveis.

Já se fala em uma possibilidade de sazonalidade do covid-19. Outros vírus respiratórios também coronavírus menos importantes já são responsáveis por cerca de 10% de infecções respiratórias anuais, sazonais. A estes se somaria o covid-19 e suas futuras mutações, ano a ano.

Precisamos focar em tentar criar vacinas para imunizar a população, e na testagem de medicamentos para tratar os doentes, em um primeiro momento, ainda que a eficácia destes seja possível, em tese, apenas para as primeiras cepas do vírus circulante; tudo isso visando à diminuição da capacidade de alastramento da doença. Mas mesmo isso leva tempo e exige recursos e empenho estatal, o que não se vê em muitos lugares, infelizmente. Logo, o alastramento será ainda maior e o covid-19 fará mais vítimas no curto e médio prazos. E mais, a maioria das vítimas deve se concentrar nas camadas mais vulneráveis da população, mas que esteja claro: os ricos não serão poupados. O vírus, neste aspecto, é democrático. Assim, as nações do mundo devem adotar e manter efetivas medidas de controle e proteção, visando ao tratamento de contaminados e à diminuição da transmissibilidade.

Lado a lado com a busca biológica e médica pelo enfrentamento da pandemia, é necessária uma postura solidária e de fomento da cidadania que passa por uma discussão de implemento imediato de uma renda básica de emergência para toda a população, que está de quarentena e com a renda diminuta ou inexistente. Quantos trabalhadores informais estão sem o que comer, o que dizer sobre o pagamento das suas contas do mês? Os lucros dos grandes conglomerados econômicos e financeiros precisam ser tributados com emergência, de modo a viabilizar um caminho para redução de desigualdades. Essa discussão ainda é muito incipiente no país, embora a crise de saúde pública ande de mãos dadas com a crise econômica em iminência e exija medidas urgentes.

Infectados

Parte deles é considerada assintomática, mas ainda são potenciais transmissores do vírus. Há estudo relacionando assintomáticos e o contágio de grande parte dos doentes. Pelo menos 20% de todos os casos são graves, com acometimento pulmonar e necessitam de internação hospitalar. Embora considere-se que a letalidade do covid-19 seja de  cerca de 3%, nada garante que essa taxa não irá aumentar. E não há dúvidas de que a vida de cada um é relevante. Há um mito de que apenas a maioria deva ser protegida - bem, torça para que você não seja parte dos 3% dos infectados.

Saída ética

Há um exercício filosófico, conhecido como "Dilema do Bonde", em que se questiona se seria justo desviar uma locomotiva desgovernada, prestes a atropelar cinco pessoas que estão nos trilhos à frente, de modo que, com essa manobra, a locomotiva atropele apenas uma pessoa que está sobre os trilhos ao lado.

Não há uma resposta certa para o dilema; trata-se de uma especulação sobre os fundamentos da ética. Mas é relevante notar que a maioria daqueles que enfrentam o dilema entende que matar uma pessoa seria menos ruim do que matar cinco pessoas.

Mas o que justificaria atentar contra a vida de uma pessoa (que continuaria viva caso o trem não fosse desviado) para poupar a vida de outras cinco pessoas? Possivelmente, a razão é o desejo humano de provocar menos danos ao maior número de pessoas. Concluímos, no entanto, que não se justifica sacrificar uma vida sequer para salvar a vida de outros. Os regimes totalitários, por exemplo, justificam o sacrifício de uns por muitos, o  que não é aceitável. O que fazer, então?

Pensando na política de redução de danos, devemos controlar ao máximo a expansão dessa doença. Os leitos dos hospitais são uns dos insumos mais caros da saúde - pública ou privada -, em todo o mundo. E são insumos escassos diante da pandemia, por isso devem ser protegidos com quarentenas e isolamento social total por um período ainda em teste. Trata-se de uma medida dura para combater algo igualmente difícil, talvez pior e certamente cruel.

Neste caso, não se pode considerar que a pandemia teria irrelevância de saúde, para parar a economia com medidas de quarentena e isolamento. A realidade socioeconômica deve ser afetada pela pandemia, e não importa que, supostamente, tenha a doença uma baixa taxa de mortalidade, considerada a população mundial. Afinal, em políticas públicas de saúde, deve-se minimizar os danos para o maior número de pessoas possível, sempre respeitando a autodeterminação e o bem estar de todos, não somente de alguns ou somente da maioria. Toda vida importa. Portanto, tratar a pandemia como algo sem importância não está de acordo com o papel do Estado e da sociedade civil em uma crise desta natureza.

Sistemas de saúde

De seu lado, sistemas de saúde públicos e privados devem se preocupar e tomar medidas conjuntas, proativas e de assunção de responsabilidades com o avanço da doença para minimizar os impactos negativos da crise em sua prestação de serviços, notadamente nos setores ambulatorial e hospitalar para bem efetivar tratamentos como um todo. Cabe pontuar que o equilíbrio contratual das relações do setor de saúde sairá comprometido, e as exigências sanitárias incrementadas pela crise devem já impactar nos preços dos insumos e serviços de saúde, o que em parte já é sentido por todos.

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*Paulo André Stein Messetti é advogado formado na USP, especialista em Direito Médico e da Saúde, mestre em bioética e doutorando em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina do Centro Universitário Saúde ABC. Atua na banca Stein Messetti Advocacia.

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