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A difícil arte de abdicar da prisão, mesmo em tempos de pandemia

Debora Regina Pastana e Paulo Fernando Corrêa

Enquanto essa guinada de postura política não acontecer também no campo penal, é praticamente impossível implementar a maioria das medidas sanitárias presentes na portaria interministerial.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Atualizado em 22 de abril de 2020 15:53

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Michel Foucault, em seu celebre Vigiar e Punir, já nos advertia, no final do século passado, que a modernidade também poderia ser traduzida pela "detenção como forma essencial de castigo"1. Esse diagnóstico acabou se confirmando também na atualidade, embora com contornos políticos distintos daqueles delineados por Foucault.

Se na modernidade, ao menos em teoria, o encarceramento voltava-se para o disciplinamento do desviante, agora o controle dos corpos acontece muito mais como uma forma de confinar os descartáveis do mercado. É o que se tem chamado em parte da criminologia crítica atual de "prisões depósitos". Tal expressão, consagrada inicialmente na literatura norte-americana para atestar a explosão carcerária vivida no final do século XX, pelos EUA; agora assume um caminho teórico diverso. Prisão-depósito é também a marca de uma "ordem excludente a partir de um sistema penitenciário com funções neutralizantes"2.

Mesmo quando observamos o atual cenário político, permeado pelo globalizado temor de uma pandemia, ainda é possível perceber o papel central do encarceramento como forma de controle social, mesmo que diametralmente oposta às medidas sanitárias referendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

No Brasil, por exemplo, as respostas punitivas relacionadas ao descumprimento das medidas sanitárias estão começando a sinalizar para a opção simbólica do encarceramento, por mais paradoxal que isso possa se configurar, na medida em que aglomerar sujeitos no cárcere é, sem dúvida, uma forma de disseminar o vírus.

No atual contexto, a legislação penal existente prevê crimes relacionados à pandemia, cuja pena mínima é de detenção de um mês e a máxima de reclusão de quinze anos. Esses delitos estão previstos no Código Penal (art. 131, 267 e 268) e na lei 1.521/51 (art. 3º), e versam sobre a proliferação de moléstia grave e aumento de preços em detrimento da economia popular. Ainda com sentido punitivo, a recente lei 13.979/20 deu complemento à determinação do art. 268 ("infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa"), ao determinar medidas sanitárias e delegar poderes à administração indireta e outros entes federativos para que imponham restrições voltadas à proteção da saúde pública.

Por fim, a regulamentação feita pela Portaria Interministerial 05/20203, do Ministério da Justiça e Segurança Pública e do Ministério da Saúde, dá tom mais assertivo e específico à responsabilização daqueles que desobedecerem medidas emergenciais constantes à lei 13.979/20 e determinadas pelas autoridades competentes, sujeitando-os também à aplicação do crime de desobediência (art. 330, do Código Penal).

Em caso de recusa ou desobediência às medidas, pode a força policial ser solicitada, com a lavratura de termo circunstanciado se cometidos as infrações de menor potencial ofensivo (art. 268 e 330, do Código Penal), sem imposição de prisão, quando assinado documento de compromisso de comparecimento aos atos processuais e de cumprimento das medidas emergenciais previstas na lei 13.979/20. No entanto, não assinado o respectivo termo de compromisso ou cometido delito mais grave, pode ocorrer a prisão, com segregação em estabelecimento ou cela separada dos demais presos.

Dessa determinação nasce questão mais grave. É sabido que o sistema carcerário brasileiro é precário, impondo aos detentos condições insalubres, o que, inclusive, levou o Supremo Tribunal Federal a considerá-lo um estado de coisas inconstitucional, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347 (ADPF 347), em 2015. Considerando a ineficiência da prisão para solucionar problemas sociais de menor gravidade, além da necessidade de garantir a observância a direitos fundamentais dos presos, foram estabelecidas as audiências de custódia, que, quando realizadas, possibilitam uma análise judicial mais atenta acerca de prisões processuais.

Esse importante reconhecimento em matéria de política criminal, prévio à atual crise sanitária, já sinalizou uma falência do sistema penal como forma de controle social, principalmente no que se refere à reintegração daquele que cumpre pena. De fato, a pena de prisão já não mais se sustenta sob esse frágil argumento disciplinador que na modernidade justificou a opção pelo cárcere como forma disciplinar da ordem laboral. Seu agigantamento nos dias atuais possui outro forte componente econômico voltado, não mais à disciplina para o trabalho, mas ao confinamento, incapacitação e neutralização dos excluídos pelo mercado ou, nas palavras de Zygmunt Bauman dos "consumidores falhos".

Diante da precarização significativa da vida no cárcere, não se pode desprezar, portanto, o franco abandono do ideal reabilitador também dentro das prisões brasileiras. Lugar dantesco em que pessoas se empoleiram em celas minúsculas e, agora, se tornam hospedeiros perfeitos para um vírus que causa medo na população, que pouco se importa com as mazelas às quais são submetidos os apenados. Dito isso, não é de se espantar que o cárcere seja apenas locus de detenção dos miseráveis e, ao mesmo tempo, opção política recorrente de controle social.

Nesse sentido, como deixou claro o desembargador Alberto Anderson Filho4, em recente decisão, a superlotação prisional não seria argumento para que uma prisão provisória fosse convertida em domiciliar, mesmo que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) assim recomende5. Essa manifestação do desembargador ilustra uma parte não desprezível do campo jurídico que ainda está alinhada ao uso simbólico do direito penal e sua consequência mais evidente, vale dizer, o grande encarceramento. Como se observa, esse controle penal voltado aos miseráveis não se preocupa com as condições insalubres de tal punição. Como refugo social que é, a prisão opera na lógica do confinamento, ainda que desumano. 

Por tudo isso, chega a ser ofensivo determinar que a prisão prevista na portaria ministerial aconteça de forma segregada dos demais. Primeiro porque dificilmente essa determinação poderá ser cumprida a contento nos inúmeros presídios superlotados do país, segundo porque sinaliza para tratamento mais cuidadoso dessa parcela desviante, talvez não miserável, frente aos demais que já se encontram encarcerados e, portanto, sentenciados também ao contágio mais rápido da doença.

Reforçando o sentido simbólico da portaria, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, defendeu o uso da força policial para ajudar no combate à pandemia comparando-a com a Revolta da Vacina6. Interessante que o ministro tenha usado exemplo de tão arbitrária política, uma vez que tal portaria se assemelha a ela exatamente nessa característica.

Importante destacar que o combate às condições desumanas do cárcere poderia, com muita mais eficiência, diminuir os efeitos da pandemia em todo o país. É exatamente o que defende o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), órgão independente, criado por lei em 2013 e responsável por monitorar prisões e unidades de cumprimento de medidas socioeducativas.

Entre as requisições recorrentes feitas pelo órgão sempre estiveram o acesso regular a água e melhorias na estrutura de saúde de estabelecimentos de privação de liberdade. Hoje tais exigências tornaram-se fundamentais para minorar os impactos iminentes da covid-19 nos presídios brasileiros, cujas condições de insalubridade, incidência de doenças infectocontagiosas e déficit de vagas prometem potencializar os estragos da pandemia7.

Ainda que Sergio Moro acredite "não haver motivo para 'terror infundado' em relação ao sistema penitenciário"8, de fato, o confinamento precário e insalubre não apenas é torturante e desumano, mas certamente irá contribuir sobremaneira para a disseminação do Covid 19 em proporções alarmantes. É bom lembrar que esse contágio avassalador não ficará restrito aos muros das prisões. O certo, portanto, seria desencarcerar o máximo possível e garantir condições dignas para todas as pessoas que, no momento, cumprem sua pena.

É justamente nesse sentido que o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) protocolou pedido na ADPF 347, na condição de amicus curiae, com o objetivo de diminuir as chances de proliferação da moléstia nos presídios brasileiros, mas não houve obteve sucesso junto ao STF. A justificativa da corte orbitou em torno da ausência de legitimidade da entidade, como terceiro interessado em um processo, em requerer tal medida. Somente o autor da ação poderia fazê-lo. No entanto, pouco tempo depois, o PSOL, as Defensorias Públicas do Rio de Janeiro e de São Paulo, o IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) e a ONG Conectas Direitos Humanos pleitearam a concessão de medida cautelar na mesma ADPF, a fim de que seja concedida prisão domiciliar aos presos que componham o grupo de risco, dentre outros pedidos.

Na mesma direção, muitos juízes, em conformidade com a Recomendação 62/20 do CNJ, têm concedido alvarás de soltura e também mudando regimes de cumprimento de pena para o domiciliar. Segundo informações do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), cerca de 30 mil presos já deixaram as penitenciárias do país beneficiados por decisões judiciais orientadas pelo risco provocado pela pandemia9. Entretanto, esse número não representa nem 5% da população carcerária brasileira estimada em junho de 2019, pelo DEPEN, em 766.752 detentos. Ainda assim, "o governo federal promove uma ofensiva contra a soltura de presos devido à pandemia do novo coronavírus"10.

Enfim, o período de quarentena tem levado o mundo a repensar as inúmeras formas de sociabilidades pautadas cada vez mais na lógica neoliberal. Relações de trabalho, regime tributário e previdenciário, novas leis sendo aprovadas e projetos tramitando relacionados à criação de uma renda mínima e de taxação de grandes fortunas. Dito de outro modo, os cânones do Estado Mínimo estão ruindo frente a fragilidade social imposta pela pandemia. Em tempos de outrora, um projeto de lei tratando de renda mínima dificilmente seria levado a sério em Brasília. Eduardo Suplicy que o diga!

Nessa toada poderíamos começar a repensar também as políticas criminais. Até quando reproduziremos o conto kafkiano Da Colônia Penal e insistiremos na mentirosa, porque inexistente, efetividade da aplicação de penas para correção dos desviantes?

 Já que estamos confrontando as premissas neoliberais, poderíamos também demandar pelo fim do uso simbólico do direito penal e, principalmente, pelo desencarceramento da população miserável. Se decidirmos socorrer a miséria com auxilio econômico, será ainda mais paradoxal continuar criminalizando sua existência e punindo-a com prisão.

Enquanto essa guinada de postura política não acontecer também no campo penal, é praticamente impossível implementar a maioria das medidas sanitárias presentes na portaria interministerial. Por enquanto, nem o campo político, nem o jurídico, conseguiram, efetivamente, abdicar da tentação encarceradora que regozija nossa sociedade amedrontada. Nossas instituições de controle, confrontadas com a dureza de vidas já tão esquecidas e maltrapilhas, continuam arrancando o pouco que lhes resta: a humanidade.

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1 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 134.

2 PASTANA, Debora Regina. Política e Punição na América Latina: uma análise comparativa acerca da consolidação do Estado Punitivo no Brasil e na Argentina. Rio de Janeiro: Revan, 2019. p. 254.

3 PRATA, Pedro; NETTO, Paulo Roberto; MACEDO, Fausto. Leia a portaria de Moro e Mandetta que impõe prisão a quem desafiar estratégia. O Estado de São Paulo. Edição do dia 17 de março de 2020. Acesso em 3/4/2020.

4 Ironicamente o desembargador da  7ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, em decisão proferida na quarta-feira (01/04/2020), denegou o pedido da defensoria pública de São Paulo, que pleiteava prisão domiciliar a uma paciente presa em uma penitenciária superlotada, dizendo que "dos cerca de 7.780.000.000 habitantes do Planeta Terra, apenas três: Andrew Morgan, Oleg Skripocka e Jessica Meier, ocupantes da estação espacial internacional, o primeiro há 256 dias e os outros dois há 189 dias, portanto há mais de seis meses, por ora não estão sujeitos à contaminação pelo famigerado coronavírus". ANGELO, Thiago. Domiciliar é negada porque "só astronautas estão livres do coronavírus". Revista Consultor Jurídico. Edição do dia 01 de abril de 2020. Acesso em 5/4/2020.

5 Atento à realidade prisional, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Recomendação 62/20, direcionada a todo o Poder Judiciário, que prevê medidas voltadas à prevenção da propagação da COVID-19 no sistema carcerário e de medidas socioeducativas, num implícito reconhecimento das características desumanas desses locais.  

6 CAETANO, Guilherme. Moro diz que população vai ' compreender bem ' uso de polícia contra quem descumprir quarentena do coronavírus. Jornal O Globo. Edição do dia 17 de março de 2020. Acesso em 3/4/2020.

7 SANTOS JÚNIOR, Belisário; DIAS, Marina. Combate à tortura poderia diminuir os efeitos da pandemia nas prisões brasileiras. El País. Edição do dia 30 de março de 2020. Acesso em 4/4/2020.

8 FOLHAPRESS. Moro confirma primeiro caso de coronavírus no sistema carcerário. Folha de São Paulo. Edição do dia 08 de abril de 2020. Acesso em 8/4/2020.

9 GRILLO, Marco. Ministério da Justiça estima que 30 mil presos deixaram a cadeia em função da pandemia de coronavírus. Jornal O Globo. Edição do dia 06 de abril de 2020. Acesso em 7/4/2020.

10 GIELOW, Igor. Governo faz ofensiva contra soltura de presos devido ao coronavírus. Folha de São Paulo. Edição do dia 07 de abril de 2020. Acesso em 8/4/2020.

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*Debora Regina Pastana é doutora em Sociologia pela Faculdade de Ciências e Letras da UNESP. Professora associada do Instituto de Ciências Sociais (INCIS) da UFU e professora permanente do Programa de pós-graduação em Direito Público da UFU. Também é coordenadora do grupo de estudos sobre violência e controle social (GEVICO).

**Paulo Fernando Corrêa é advogado, formado pela UFU, ex-pesquisador científico pela FAPEMIG e CNPq.

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