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A pandemia e os distratos imobiliários

Como considerar a questão dos distratos? Já se percebe em muitas incorporadoras e loteadoras temor quanto à abrupta elevação do número de adquirentes a pleitear a resolução unilateral dos contratos.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Atualizado em 17 de abril de 2020 15:19

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O setor imobiliário foi um dos mais atingidos pela crise econômica que teve início em 2011, inclusive pelo grande número de compradores que desistiram da aquisição de imóveis e pleitearam o desfazimento dos contratos. Essa possibilidade de resolução contratual, genericamente denominada "distrato", foi reconhecida pela jurisprudência, obrigando as empreendedoras a restituir aos compradores a quase totalidade dos valores por eles pagos. Para se ter uma ideia da intensidade desse fenômeno, em 2017, as desistências chegaram a 41% do total de imóveis vendidos, de acordo com pesquisa da Fitch Ratings.

Considerando o enorme impacto desses distratos na atividade empresarial, na produção de moradias e na oferta de empregos na construção, foi editada, em dezembro de 2018, a lei 13.786, que procurou trazer maior equilíbrio nesse segmento. Basicamente, a lei permite, nos casos de distratos por iniciativa do adquirente e sem que haja culpa da incorporadora, a retenção de 25% dos valores pagos, devendo a diferença ser paga ao comprador desistente em até 180 dias ou quando da realização de nova venda da unidade. No caso de a incorporação estar subordinada ao regime do patrimônio de afetação, a retenção é de 50%, devendo a diferença ser restituída ao adquirente em até 30 dias após a conclusão da obra. Nos loteamentos, a retenção máxima permitida é de 10% do valor do contrato, com a restituição em 12 parcelas mensais.

Seja em virtude da regulamentação legal, seja em decorrência da melhora da atividade econômica, as vendas a partir de 2019 tiveram volumoso aumento, especialmente no Sudeste, enquanto que o número de distratos caiu para abaixo de 5% (estudo Secovi/SP), um patamar com o qual as empresas do setor podem conviver.

Aí veio a pandemia do covid-19. Fato imprevisível e de grande impacto, tanto para vidas humanas quanto para as relações jurídicas e econômicas. Como amplamente se tem discutido, trata-se de um evento de proporções nunca enfrentadas, com potencial de desestabilizar todas as relações contratuais, tornando pouco útil nosso arcabouço doutrinário e jurisprudencial sobre os conceitos de força maior, caso fortuito e de revisão judicial dos contratos.

Nesse contexto, como considerar a questão dos distratos? Já se percebe em muitas incorporadoras e loteadoras temor quanto à abrupta elevação do número de adquirentes a pleitear a resolução unilateral dos contratos. Considerando a importância do tema - e em que pese ser difícil antever os impactos da pandemia e seu prazo de duração - apontamos algumas considerações jurídicas que podem melhor orientar tais relações contratuais.

Direito do adquirente ao distrato

Esse direito, que já vinha consagrado na jurisprudência (por exemplo, súmula 1 do TJSP), está agora positivado, com o advento da lei 13.786/18, acima mencionada, que alterou a legislação de incorporações (lei 4.591/64) e de loteamentos (lei 6.766/79). Assim, tal direito claramente persiste, podendo haver a desistência do comprador, que fará jus às devoluções previstas na lei.

É importante salientar que tal direito ocorre nas promessas de venda e compra de unidades imobiliárias (apartamentos, casas e terrenos), não alcançando casos em que já houve a transmissão da propriedade e contratação de alienação fiduciária em garantia, prevista na lei 9.514/97.

Prazo de devolução

Os prazos de devolução de valores pagos estabelecido na lei têm como pressuposto preservar o próprio empreendimento, em benefício dos consumidores que pretendem receber seu imóvel. Com a pandemia, haverá maior dificuldade para novas vendas, inclusive das unidades distratadas. É razoável que, na excepcionalidade ora vigente, a devolução possa ser postergada para após o término das obras e pagamento das obrigações do patrimônio de afetação, inclusive do financiamento bancário da obra, que em maior parte se dá justamente com o repasse dos créditos das vendas realizadas.

Pode-se alegar que o comprador que distrata seria prejudicado com eventual postergação, embora tenha o crédito futuro. Porém, o pagamento em favor dos desistentes pode prejudicar a consecução do empreendimento, pois remanescem as obrigações de concluir a obra e de pagar o financiamento, garantido por hipoteca das unidades. A propósito, mesmo fora de situações excepcionais, a lei já permite expressamente que as partes estabeleçam "condições diferenciadas" daquelas definidas na legislação.

Direito do adquirente de suspensão dos pagamentos

Esse direito não está previsto em lei e não há obrigatoriedade de aceitação pela empreendedora, mas no âmbito das dificuldades decorrentes da pandemia, cada proposta deve ser cuidadosamente analisada. A falta dos recursos afetará o fluxo de caixa da obra, mas pode ser preferível à uma rescisão contratual ou litígio. Caso a suspensão seja acordada, convém que haja aditamento contratual, contendo inclusive novo cronograma de pagamentos das parcelas futuras.

Prazo de obra

Pode ser difícil concluir a obra no prazo previsto. Embora não tenha sido ainda determinada a paralisação nos canteiros, muitos já trabalham com falta de materiais e mão-de-obra reduzida. E poderá haver situações em que os trabalhadores serão colocados em quarentena por conta da identificação de algum caso de coronavírus. Os efeitos do lockdown serão sentidos cada vez mais na construção civil, por necessitar de insumos que podem ficar indisponíveis. Além disso, se de fato houver um grande número de distratos ou suspensão dos contratos, o ingresso de capital será menor, impedindo a empresa de manter o ritmo dos serviços.

Nesse contexto, o atraso, mesmo além do prazo de carência de 180 dias, não pode ser considerado culpa do empreendedor, desde que o andamento da obra tenha sido prejudicado pela pandemia (força maior e/ou caso fortuito dela decorrente). O prazo da obra deve ser considerado suspenso a partir de quando tal prazo seja efetivamente afetado e até que a situação seja normalizada. Tal suspensão deve ser levada em conta na eventual aplicação do art. 43-A, parágrafos 2º e 3º. da lei 4.591/64, que sujeitam a incorporadora à devolução integral dos valores pagos e ao pagamento da multa contratual por atraso de obra.

Em atendimento ao dever de transparência previsto no Código de Defesa do Consumidor (art. 4º, da lei 8.078/91), bem como das obrigações perante a Comissão de Representantes do patrimônio de afetação, quando constituído (art. 31-D, da lei 4.591/64), a previsão de atraso da obra deve ser devidamente comunicada.

No caso de loteamentos que sejam impactados, entendemos que os prazos do cronograma de obras também ficam suspensos. Todavia, é preciso levar em consideração que, além dos adquirentes, a municipalidade também é credora das obras de infraestrutura. Recomenda-se pleitear, junto às respectivas prefeituras, a suspensão ou prorrogação do cronograma. A promotoria, caso instada a analisar o caso, deve reconhecer a excepcionalidade da situação.

Financiamento bancário

Em momentos de crise é comum as instituições financeiras reduzirem a oferta de crédito, aumentarem juros e requisitos para contratação. Com isso, é possível que muitos empreendimentos não consigam acesso aos recursos, tornando o atraso das obras ainda mais provável, situação em que também não haveria responsabilidade a ser imputada à empresa.

Nos casos em que já exista financiamento concedido, se as obras forem paralisadas, como é possível que ocorra, as medições e desembolsos pelos bancos também cessarão, sendo necessário negociar com o agente financeiro. Os contratos bancários costumam conter cláusula de "Evento Adverso Relevante", por meio da qual poderiam até rescindir o contrato em situações graves e não previstas. Entendemos que a invocação de tal cláusula, no contexto da pandemia atual, seria juridicamente abusiva.

Desistência do empreendimento

A empresa que realiza um empreendimento deve agir com responsabilidade e avaliar sua condição de levá-lo adiante. Se, como consequência da pandemia de Covid-19, a incorporadora demonstrar razoavelmente que não conseguirá concluir o empreendimento, entendemos que poderá dele desistir, ainda que já ultrapassado o prazo de carência previsto no art. 34 da lei 4.591/64. Muito mais gravoso seria continuar a receber as prestações, sem ter certeza sobre a conclusão da obra.

Em uma situação como tal, o direito dos consumidores que estejam adimplentes e não tenham requisitado o distrato é a devolução integral, sem abatimentos ou retenções. Porém, não é cabível indenização a ser paga pela empreendedora, salvo se tiver agido com dolo ou culpa.

Aspectos gerais

A pandemia do coronavírus atinge o mercado imobiliário com grave intensidade, em um momento de recuperação das empresas, do emprego, da oferta de moradia e estabilização jurídica das relações contratuais. Muitos adquirentes ficarão impossibilitados de manter seus compromissos, mas é certo que as empresas, contra sua vontade e seus esforços, também terão enormes dificuldades. A simples solução pela responsabilidade objetiva do fornecedor, ou pelo chamado risco do negócio, não cabe diante da envergadura de uma pandemia com lockdown social de econômico.

A busca da solução mais justa exige uma abordagem sistêmica quanto aos efeitos para o empreendimento e para a sociedade, bem como da pessoa do consumidor que pleiteia o distrato: se é alguém que perdeu o emprego e ficou sem recursos, ou se é um investidor que adquiriu mais um imóvel para renda. São situações bastante diferentes que comportam tratamentos diversos (como já bem salienta o Acórdão da 4ª. Câm. Cível do TJSP, relator Des. Teixeira Leite - Ap. 1116739-74.2016.9.26.0100).

Por fim, é preciso que as partes, legisladores e operadores do Direito tenham a compreensão da excepcionalidade do momento e procurem soluções equilibradas, visando resguardar os consumidores, sem penalizar as empreendedoras e sua capacidade de sobreviver e entregar os empreendimentos.

_________

*Rodrigo Cury Bicalho é advogado sócio de Bicalho e Mollica Advogados, professor do Curso de MBA Tecnologia e Gestão da Produção de Edifícios da Escola Politécnica da USP, integrante do Conselho Jurídico do Secovi/SP, do Sinduscon/SP e do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - Ibadim.

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