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Coronavírus e cooperação internacional

A ausência de uma mobilização supranacional para enfrentar este dramático momento poderá provocar o colapso econômico e financeiro de alguns países, propiciando a ascensão de governos populistas e totalitários.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Atualizado às 08:33

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No momento em que o mundo mais precisa da cooperação internacional para enfrentar um inimigo comum, o coronavírus, é chocante a ausência de lideranças mundiais.

Também gera preocupação a falta de espaços multilaterais em um momento tão dramático como o atual para a saúde pública e para a economia de todos os países.

Ao lado de temas como aquecimento global, terrorismo cibernético, impactos da inteligência artificial nas relações de emprego, proteção de dados e fluxos financeiros, a pandemia do coronavírus desafia a capacidade de cada país superar a crise isoladamente.

Já se viu que esse vírus é astuto e não respeita as fronteiras nacionais. A terrível pandemia que nos atacou, esse cisne negro de alto impacto que escapou do radar de qualquer analista político ou econômico, é um exemplo eloquente de que há alguns problemas cujas soluções extrapolam os limites do Estado Nacional.

A Constituição Federal estabelece que o Brasil, nas suas relações internacionais, rege-se pelo "princípio da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade" (art. 4º, IX).

Há algum tempo se fala que as novas guerras seriam travadas em outros campos de batalha, como no ambiente cibernético e nas esferas da química e da biologia.

No entanto, as estruturas militares mantiveram o conceito tradicional de segurança nacional com base na força bélica.

Os Estados Unidos, uma experiência histórica admirável em muitos aspectos, em matéria de saúde pública não é um bom exemplo a ser seguido. Apesar dos esforços promovidos pelo Obamacare, um plano de democratização do seguro saúde que gerou uma das maiores batalhas travadas no Congresso e na Suprema Corte daquele país, e apesar de haver uma medicina extremamente sofisticada, a saúde por lá é, na essência, um negócio.

Aqueles que acompanharam minimamente as prévias do Partido Democrata deste ano constataram que o tema central e onipresente nos debates foi o de tornar o acesso à saúde um direito fundamental. O debate ficou ainda mais atual!

Os Estados Unidos gastam mais de setecentos bilhões de dólares por ano em segurança militar e agora enfrentam problemas básicos para produção de máscaras e de respiradores, realização de testes e distribuição de equipamentos de proteção individual para os profissionais da saúde.

Sob a presidência de Donald Trump, os americanos renunciaram a qualquer pretensão de cooperação internacional, já que Trump continua fiel a seu lema America First.

No momento em que o mundo mais precisa de cooperação, Trump anuncia a suspensão dos pagamentos à Organização Mundial da Sáude, uma instituição que, embora esteja longe da perfeição, se mostra indispensável para um mínimo de coordenação técnica internacional1. Bill Gates, um dos poucos que já vinha antevendo que as próximas grandes guerras seriam contra vírus e bactérias, considerou tal medida "tão perigosa quanto parece", pois "o mundo precisa da OMS agora mais do que nunca".

No campo econômico, embora cada país esteja adotando medidas necessárias de grande repercussão, as iniciativas de instituições como FMI, Banco Mundial, G-7 e G-20 tem sido muito tímidas. A própria União Europeia se vê ameaçada.

Na luta para vencer a pandemia do coronavírus, há bons exemplos de lideranças nacionais, como Ângela Merkel na Alemanha e Jacinda Arden na Nova Zelândia.

Porém, a ausência de uma mobilização supranacional para enfrentar este dramático momento poderá provocar o colapso econômico e financeiro de alguns países, propiciando a ascensão de governos populistas e totalitários.

Madeleine Albright, ex-Secretária de Estado do Governo Clinton e brilhante acadêmica, em seu livro "Fascismo, Um Alerta", já vinha advertindo o mundo sobre os riscos de ideologias baseadas no culto à divisão, ao ódio, à negação da ciência e ao nacionalismo populista.

Com histrionismos acima ou abaixo da linha do Equador, ou com diversionismo e divisionismo de palanque não se vencerá essa guerra sem precedentes. Saúde e economia, economia e saúde são temas indissociáveis. A evidente necessidade de cooperação interna nos permite ver a importância também da cooperação externa. Os novos desafios da humanidade não serão enfrentados com o fechamento definitivo de fronteiras.

Nesse contexto, foi simbólica e digna de elogio a postura de Boris Johnson, ao deixar o hospital público onde ficou internado por vários dias em razão do coronavírus. O Primeiro Ministro do Reino Unido, que ganhara o estrelato político com sua pregação em favor do nacionalismo do Brexit, além de elogiar a rede pública de saúde que o atendeu (o National Health Service inglês serviu de inspiração aos constituintes brasileiros para a criação do Sistema Único de Saúde - SUS), saudou o profissionalismo de dois enfermeiros imigrantes que o assistiram durante a internação.

É bom lembrar que tanto na crise financeira de 2008, mais localizada e de menor impacto que a atual, bem como na crise provocada pelo Ebola em 2014, a atuação de algumas lideranças no campo internacional evitou o pior e permitiu uma rápida normalização da situação.

A cooperação internacional, privilegiando espaços multilaterais e uma ordem mundial com freios e contrapesos, torna-se ainda mais importante em face da atual posição geopolítica da China, hoje a mais poderosa economia do planeta. Além disso, tal cooperação ajudará a minimizar os riscos de aventuras totalitárias pós-pandemia.

A intensa troca de informações e experiências entre cientistas e médicos tem sido um notável exemplo de cooperação internacional, trazendo a expectativa de descoberta de um medicamento eficiente e de alguma vacina contra o covid-19.

Com essa pandemia é possível supor que alguns dogmas serão revistos. O fundamentalismo de mercado, que resistiu à crise de 2008, passará por novos questionamentos. E como a terra é redonda e está sempre em movimento, o futuro está mais para John Keynes do que para Milton Friedman.

A desigualdade no Brasil, tão conhecida e tão solenemente ignorada por séculos, embora possa até mesmo se agravar no futuro próximo, talvez passe a incomodar não apenas sob o aspecto moral, mas também como um obstáculo para que floresça entre nós um capitalismo mais funcional. A desigualdade brasileira chegou a um nível tão exacerbado que se tornou economicamente disfuncional.

O uso da tecnologia nas comunicações deu em poucas semanas um salto inimaginável, rompendo com práticas tradicionais de trabalho, de ensino, de comércio e de processos decisórios. As barreiras de espaço e de tempo já estão significativamente menores, tornando o mundo mais conectado e digitalmente integrado. No entanto, a ampliação da economia digital, incrementada pela inteligência artificial, não poderá significar mais exclusão, mais marginalização e mais solidão.

Toda crise é pedagógica. Como canta o grande Paulinho da Viola, "as coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender". É razoável supor que tenhamos aprendido que, como seres humanos, estamos indissociavelmente ligados pelo fato de habitarmos o mesmo planeta Terra.

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1 Sob o enfoque jurídico, há um denso estudo que merece ser lido, de autoria do juiz federal Rafael Soares Souza, acerca das competências da OMS.

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*Adacir Reis é advogado e presidente do Instituto San Tiago Dantas de Direito e Economia.

**Carla Patrícia da Silva Reis é graduada e especialista em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília - UnB.

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