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Cryptoproperties

A captação pública de recursos mediante a emissão de ações ou tokens é estritamente regulamentada.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Atualizado às 10:57

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1. Cryptoproperties e suas diferenças em relação aos tokens securities e tokens utilities.

Em que pese a aquisição de direitos de propriedade como meio de reserva de valor seja uma das práticas mais antigas da história, a comercialização desses direitos continuou sendo um processo lento e burocrático, mesmo com o advento da internet.

Tal circunstância é explicada pelo fato de não ser possível comercializar e transferir valores de forma segura pela internet, ao menos sem o dispêndio de milhares de dólares de investimento em tecnologia, algo factível apenas para algumas instituições financeiras. Contudo, mesmo com elevados volumes de recursos investidos, a gestão centralizada de informações financeiras em bancos de dados torna o sistema vulnerável a todo tipo de ataques cibernéticos e fraudes.

Nos últimos anos, contudo, uma nova forma de registro de informações na internet foi criada, sem a necessidade do uso de banco de dados. Essa nova forma de registro de informações depende de alguns elementos, dentre os quais, os mais conhecidos são a blockchain, que substitui os bancos de dados tradicionais, os smart contracts, capazes de implementar estratégias negociais, e as redes peer-to-peer.

Abstraídos outros aspectos importantes de segurança, cuja abordagem transcenderia o escopo deste trabalho, uma das grandes diferenças entre esse novo sistema de registro de informações e os sistemas mantidos pelas instituições financeiras consiste no fato de que por meio da blockchain e das redes peer-to-peer as informações criptografadas não ficam apenas protegidas por alguns servidores, mas por todos os computadores que compõem uma rede distribuída peer-to-peer.

Mutatis mutandis, seria como se para furtar informações financeiras de um único cliente, um cracker tivesse que invadir ao mesmo tempo mais da metade dos computadores de todos os clientes de uma instituição financeira multinacional.

Ademais, conquanto os aspectos relacionados à segurança da informação sejam importantes, essa nova forma de registro e distribuição de informações e valores tornou dispensável a existência de intermediários financeiros, visto a possibilidade da criação de um mercado global de negociação direta entre compradores e vendedores, ou entre superavitários e deficitários de recursos.

Nesse contexto disruptivo, observa-se a criação de um novo mercado de negociação e transferência de direitos de propriedade, cuja representação na blockchain acontece por meio de um tipo muito específico de token, incomparável ao token utility e ao token security: as CryptoProperties.

1.1. Do conceito e da representação dos direitos de propriedade.

Propriedade é o direito de usar, fruir, dispor, e reaver um objeto, material ou imaterial, de quem indevidamente o possua, no sentido do que preconiza o artigo 1228 do Código Civil.

Trata-se do que os juristas chamam de direito fundamental, e de uma cláusula pétrea, que não pode ser retirado do indivíduo nem por emenda constitucional, sendo que o caput do artigo 5° da Constituição assegura sua inviolabilidade, ao lado do direito à vida, à liberdade, à igualdade, e à segurança.

Por sua vez, o início da comercialização dos direitos de propriedade se confunde com o início da civilização humana, devendo-se considerar que do mesmo modo que a civilização evoluiu, assim também evoluiu o processo de comercialização dos direitos de propriedade.

No que concerne à evolução do processo de comercialização dos direitos de propriedade, deve-se ter em conta ainda que a evolução desse processo de comercialização busca acompanhar também a evolução dos objetos sobre os quais recaem os direitos de propriedade, ou seja: malgrado seja comum associar o conceito de propriedade a bens imóveis, como construções e extensões territoriais, o fato é que há objetos imateriais, como a marca de um refrigerante, cujo valor transcende o de muitos imóveis.

Portanto, quando se fala em direito de propriedade, está-se a falar do direito sobre qualquer espécie de bem, seja material ou imaterial.

Feitas essas considerações, impende-se diferenciar o direito da propriedade da representação desse direito.

1.2. As duas formas tradicionais de representação dos direitos de propriedade: externalização digital e em papel.

A representação do direito de propriedade é a externalização do modo como o proprietário prova que tem direito sobre o objeto da propriedade.

De modo geral, a prova mais utilizada é o contrato de propriedade por meio do qual o proprietário prova que adquiriu de forma legítima o objeto da propriedade. Esse contrato, por sua vez, costuma ser externalizado em papel, onde estão representados os direitos e obrigações das partes em relação ao objeto do contrato, e.g., o objeto da propriedade.

Porém, o contrato externalizado em papel tem inúmeros problemas. Um deles é que pode ser facilmente danificado. Outro é que pode ser facilmente adulterado. Alega-se ainda que esse modo de externalização de direitos não é ideal para transações internacionais, uma vez que aumenta, de modo significativo, o custo das operações.

Por sua vez, o contrato digital não é isento de problemas. Em que pese um contrato digital possa ser compartilhado entre pessoas de localidades diversas, o contrato digital também pode ser facilmente adulterado.

Essa possibilidade de adulteração dos contratos digitais, até o advento da tecnologia designada como blockchain, impossibilitava o comércio de direitos de propriedade, exclusivamente por meio da internet, exigindo-se sempre a manutenção de alguma espécie de registro externo, possibilitando a existência de manipulações.

1.3. Cryptoproperties versus tokens utilities e tokens securities: o modo 4.0 de representação dos direitos de propriedade.

Ao contrário dos chamados tokens securities, que servem como meio para captação de recursos, as CryptoProperties são meras representações na blockchain de bens e direitos já constituídos.

Logo, ser proprietário de uma CryproProperty é o mesmo que ser proprietário de parte ou da totalidade do bem que ela representa, observadas normas jurídicas específicas, como a que no Brasil determina o registro público de contratos de promessa de compra e venda de direitos reais, o que embora jurídico, já não é mais justificado por critérios tecnológicos.

Com efeito, o registro de um contrato em uma Blockchain pública certamente é capaz de proporcionar maior segurança e integridade para os dados contratuais, do que o sistema cartorário, fundado no inespecífico e inseguro conceito de "fé pública", sobre o qual os registros tradicionais ainda estão alicerçados.

Por outro lado, alguns dos sistemas que dão base ao mercado de CryptoProperties são totalmente descentralizados, transparentes, e íntegros. Totalmente descentralizados, porque ao mesmo tempo em que todo conteúdo contratual fica armazenado no IPFS (Interplanetary File System), com todos os benefícios de velocidade, escalabilidade, integridade, e liberdade daí resultantes, uma referência a esse conteúdo (hash) fica armazenada na Blockchain, por meio de um smartcontract.

Tal integração com os smartcontracts pode ainda ser customizada, conforme os interesses das partes para tornar autônomos os processos de pagamento e recebimento, ou para criar smart-escrow-accounts.

1.4. Tokenização de bens e direitos versus captação de recursos por meio de tokens.

Do mesmo modo que existe diferença entre um contrato de compra e venda e um contrato de empréstimo, existe diferença entre a tokenização de bens e direitos e a captação de recursos por meio de tokens.

Após o surgimento dos smart contracts, inúmeras empresas começaram a criar tokens como forma de representar ações de uma companhia ou outros instrumentos de dívida. Abstraídas as diferenças existentes entre ações, debêntures, títulos do tesouro, dentre outras formas de captação de recursos, o que todas elas têm em comum é o fato óbvio de que estão voltadas à captação de recursos.

A captação pública de recursos mediante a emissão de ações ou tokens é estritamente regulamentada, visto que há o temor de que pessoas mal intencionadas utilizem os recursos captados em finalidade diversa da divulgada, ou mesmo que não possuam capacidade mínima de gestão dos recursos captados, o que poderia provocar significativa perda da poupança popular.

Nesse sentido, a doutrina e as autoridades passaram a designar o token representativo de uma dívida como sendo um token security, em alusão ao termo securities do mercado de ações norte-americano.

Logo, assim como a emissão pública de ações (IPO) se submeteria à disciplina da Comissão de Valores Mobiliários, a emissão pública de tokens securities (STO) estaria sujeita pelos mesmos motivos.

E nem poderia ser diferente, visto que um token é basicamente uma forma diversa de representar algo, e o que importa para fins legais, em geral, é o que é representado, e não a forma de representação, ressalvadas as hipóteses onde a forma de representação seja um fator constitutivo daquilo que é representado, o que não é o caso de discutir para as finalidades deste trabalho.

Outra forma muito difundida de utilização dos tokens se deu de forma parecida com os vouchers, onde o titular do token teria direito de desfrutar de um produto ou serviço. Esses tokens foram chamados de tokens utilities e sua emissão não depende de autorização da CVM, pelo motivo óbvio de não se tratar de captação pública de recursos com finalidade de empréstimo ou financiamento.

Já as CryptoProperties, por sua vez, não se enquadram nem na qualidade de token security, e nem na de token utility, visto que são meras representações na blockchain de bens e direitos já constituídos, mantidos por uma complexa rede autônoma e descentralizada, cujos fundamentos técnicos são as redes peer to peer, os smartcontracts, e a blockchain, dentre outros.

Conclusão

Neste breve artigo foram definidas as características básicas das cryptoproperties em oposição aos chamados tokens utilities e tokens securities, da seguinte forma:

1. Cryptoproperties significam a evolução da forma de representar direitos de propriedade.

2. Cryptoproperties não são meios de captação de empréstimos ou investimento, ao contrário dos tokens securities, mas meios de compra e venda de bens móveis e imóveis armazenados na blockchain.

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*Fernando dos Santos Lopes é advogado e empresário, co-autor do livro Blockchain, Bitcoin e Smart Contracts: a revolução dos ativos digitais, 2019, Editora Tirant Lo Blanch. Sócio Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico, integrante do Escritório Robson Galvão Advogados Associados, Presidente e fundador da Eyeothings, empresa especializada na tokenização de ativos e em sua conexão com a internet das coisas. 

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