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Liberdade humana e prestação jurisdicional em tempos de covid-19: um apelo necessário

Carlos Alfredo de Paiva John e Iarley José Dutra Maia

Principalmente em momentos de crise a nossa estrutura constitucional não pode colapsar, usando uma expressão tão em voga hodiernamente.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Atualizado às 12:04

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A pandemia provocada pelo novo coronavírus covid-19 paralisou o mundo e como não poderia ser diferente, parte significativa de serviços básicos e urgentes do Poder Judiciário. Essa realidade se impôs por uma questão sanitária incontestável.

Por sua vez, o Conselho Nacional de Justiça, atento ao cenário pandêmico experimentado, editou a recomendação 621 a qual orienta os magistrados a reanalisarem a situação de presos em grupos de risco, especificamente a necessidade destes estarem recolhidos e a possibilidade de aplicação de medida cautelar diversa enquanto perdurar a ameaça sanitária, assim como decretar as medidas cautelares tão somente nos casos incontestavelmente necessários, a exemplo de crimes praticados com particular violência quando presentes os requisitos dispostos no art. 312 do CPP.

Decisões judiciais de todas instâncias se sucederam, na esteira da benfazeja recomendação, libertando ou colocando em prisão domiciliar presos em grupos de riscos da doença, por delitos não violentos2, por dívida de pensão alimentícia3 e várias situações de gravidade menor, reconhecendo a exposição e a vulnerabilidade da população carcerária ao vírus e a impossibilidade do Estado de oferecer proteção sanitária e médica devida.

Logo em seguida, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) congratulou a recomendação 62 do CNJ, que busca diminuir a disseminação do novo coronavírus nas prisões, mas também proteger o sistema de saúde público das ameaças que uma contaminação em massa nos superlotados presídios brasileiros - com população carcerária de aproximadamente 800 mil pessoas4 - representaria a este em razão da falta de estrutura adequada a atender uma demanda tão elevada.

Essas três acertadas medidas apontam para um único e indesviável caminho: a liberdade humana jamais pode ser relegada. Principalmente em momentos de crise a nossa estrutura constitucional não pode colapsar, usando uma expressão tão em voga hodiernamente.

Conforme mencionado, em atenção as preocupações sanitárias, diversas atividades regulares do Poder Judiciário foram suspensas, a exemplo dos prazos processuais5. Do mesmo modo, os fóruns e os tribunais foram fechados momentaneamente, impedindo a realização de sessões/audiências presenciais. Porém, as prisões legais e ilegais não tiveram seu fim.

E é focado nas prisões, aptas a serem revistas por nossos juízes, em especial nos princípios da ampla defesa e da recorribilidade, que esse artigo se destina a versar, fazendo tanto uma reflexão como um apelo para uma análise conjugada do verbete sumular 691 do STF6 e as dificuldades impostas pela pandemia provocada pelo novo coronavírus covid-19.

A súmula teve sua aplicabilidade alargada ao Superior Tribunal de Justiça, de modo a buscar uma maior racionalização do uso do Habeas Corpus e, principalmente, aplicar uma jurisprudência mais defensiva e restritiva pela Corte, de modo a impedir uma banalização da sua jurisdição.

Com crimes sendo praticados e prisões preventivas sendo decretadas por juízes de primeiro grau, cabe ao defensor impetrar o writ perante os Tribunais Estaduais e Federais imediatos, no intuito de alcançar a revogação da medida cautelar de segregação e a liberdade do seu constituinte. Todavia, ao requerer e ter seu pedido liminar negado, o cidadão preso encontra hoje um seríssimo problema: a ausência plena de jurisdição dos órgãos criminais fracionários, que, em sua maioria expressiva, mesmo após mais de um mês de confinamento, não estão julgando o mérito destes pedidos em razão da suspensão das atividades nos Tribunais.

Em algumas Cortes do país inexiste regulamentação específica para a realização de sessões virtuais pelos órgãos fracionários ou, quando existe, esta não apresenta detalhamento amplo que possibilite a compreensão e aplicação geral. Não bastasse, diversos tribunais não possuem ferramentas de informática que possibilitem a integração digital de todos os envolvidos, abarcando o Ministério Público, a Defensoria Pública e os advogados, tão pouco atendem a publicidade exigida. 

Desta feita, tendo o pedido liminar indeferido pelo relator do writ e restando prejudicado - no sentido prático e não jurídico - o julgamento meritório, em razão da impossibilidade de julgamento pelo Tribunal, ante as restrições impostas pelo novo coronavírus, não resta outra alternativa a defesa senão a de impetrar novo Habeas Corpus perante o Superior Tribunal de Justiça.

E aí reside o problema: uma vez indeferido o pedido liminar pelo relator e impossibilitado o julgamento meritório pelo tribunal estadual/federal, a apreciação pelo STJ igualmente se encontra obstaculizada em razão da súmula 691 do STF, a qual veda a análise pela corte de HC no qual embora apreciada a liminar e denegada, não tenha sido proferido juízo meritório.

Essa postura denota clara ausência de jurisdição, por parte dessas Cortes. Tal prática fere de morte pelo menos duas garantias fundamentais básicas de todo cidadão, consagrados na Carta Cidadã de 1988: o princípio da inafastabilidade da jurisdição/proteção judicial efetiva (art. 5º, XXXV) e o da duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII).

Valendo-se do princípio constitucional da proteção judicial efetiva, muito bem implementado pelo STF, sob a vanguarda do ministro Gilmar Mendes (como exemplo HC 176.229), as Cortes Superiores devem dar uma interpretação mais garantista ao atual contexto que vivemos, relativizando a aplicabilidade da súmula 691, de modo a superar esta e analisar os remédios constitucionais impetrados, principalmente naquelas ocasiões nas quais as limitações dos tribunais locais impedem a sua apreciação plena.

A liberdade humana não pode ficar à mercê das limitações jurisdicionais do judiciário, este compreendido em sentido amplo, em especial quando restrições provocadas por fenômenos atípicos, os quais castigam sobretudo os mais vulneráveis, podem ser superadas pela flexibilização momentânea de alguns institutos.

Em tempos de pandemia e isolamento social, nos quais se exige de toda a população que esta se doe em favor do próximo, em favor da sociedade, a tutela jurisdicional não pode ser mitigada por conturbações ocasionais, sobretudo quando estes impedem uma análise plena de direito. O direito à liberdade e a proteção jurisdicional efetiva não podem esperar o termino de uma pandemia singular que, sem dúvidas impõe restrições a todos, quando há meios de sobrepujar as limitações que impedem a plenitude destes.

Verdade seja dita, não se desconhece que o próprio STJ já se posicionou em diversas ocasiões pela superação da referida súmula em casos excepcionais, de flagrante ilegalidade.

Do mesmo modo há precedentes da corte que inclusive consideram o cenário pandêmico experimentado mundialmente para superar a enunciado sumular:

"(...) ante a crise mundial do coronavírus e, especialmente, a iminente gravidade do quadro nacional, intervenções e atitudes mais ousadas são demandadas das autoridades, inclusive do Poder Judiciário. Assim, penso que, na atual situação, salvo necessidade inarredável da prisão preventiva - mormente casos de crimes cometidos com particular violência-, a envolver acusado/investigado de acentuada periculosidade ou que se comporte de modo a, claramente, denotar risco de fuga ou de destruição de provas e/ou ameaça a testemunhas, o óbice da súmula 691 do STF deva ser flexibilizado em maior grau, quando a concessão da ordem seria provável no mérito"7.

Todavia, tais julgados são invariavelmente minoritários.

De maneira alguma se questiona o compromisso do STJ com a legalidade ou com as consequências advindas do coronavírus. O que vimos são diversos julgados, nas mais diversas matérias do direito, que demonstram preocupação inclusive humanista com as repercussões que a pandemia vai gerar na sociedade brasileira, seja no direito tributário, nas relações de consumo ou mesmo nas relações cíveis corriqueiras, dentre outras.  

Neste sentido, o presente escrito se volta a fazer um respeitoso apelo aos ministros do STJ. A súmula 691, embora tenha o seu propósito, não pode impedir a apreciação jurisdicional pelo STJ de Habeas Corpus que ante as restrições impostas aos tribunais locais pela ausência de meios propícios a possibilitar o julgamento por videoconferência não foram analisados meritoriamente na origem.

Pedimos também, com o mesmo respeito, as Cortes locais uma apreciação mais garantista e abrangente em prol da liberdade humana desses pleitos liberatórios. É preciso, mais do que nunca, que essas Cortes façam valer sua posição no desenho constitucional de rever possíveis erros cometidos pela instância inferior.

Os direitos assegurados pela Carta Magna ao cidadão não podem ser mitigados pela impossibilidade (ou relativização) de alguns tribunais pátrios em instalar equipamentos digitais que permitam a realização de sessões virtuais de julgamento, passados mais de um mês da edição da resolução 313 do CNJ. 

Não há previsão de quando a sociedade brasileira poderá voltar as relações normais e os tribunais realizarem sessões presenciais, de modo que sujeitar a análise de remédio constitucional que discute a legalidade de constrição a liberdade do paciente revela cabal afronta ao texto constitucional e aos direitos ora assegurados, sendo urgente uma postura do Poder Judiciário mais efetiva.

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1 Disponível aqui.

3 Sanseverino, do STJ, estende HC para presos por dívida alimentar em todo país.

4 Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional.

5 O CNJ por meio da esolução 313 suspendeu todos os prazos processuais até o dia 30 de abril de 2020. 

6 "Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar."

7 STJ, HC 566-968 RJ, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Publicado em: 20/3/2020. 

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*Carlos Alfredo de Paiva John é advogado criminalista membro do escritório Marcelo Weick Advogados. Membro do IBCCRIM.

*Iarley José Dutra Maia é advogado criminalista e coordenador do IBCCRIM/PB.

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