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Alterações contratuais decorrentes da pandemia do coronavírus

Todos os institutos alertam para a necessidade de demonstrar o impacto econômico e o nexo causal entre o evento superveniente e a impossibilidade da parte de cumprir com as obrigações inicialmente assumidas.

terça-feira, 28 de abril de 2020

Atualizado às 11:05

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"A História não deve ser um simples lembrete dos horrores do passado. 
Pode nos guiar para que tomemos precauções, e nos lembra que a observação cuidadosa é vital
para garantir uma melhor resposta no futuro, e nos assegurarmos de que, um dia, a vida normal voltará"
Armand D'Angour, professor de línguas clássicas e literatura da Universidade de Oxford, no Reino Unido.

Foi declarada pela Organização Mundial de Saúde a pandemia do Coronavírus, reconhecida pelo Governo Federal em 6 de fevereiro de 2020 (lei 13.979/2020) e em pouco tempo trouxe um cenário de crise econômica mundial.

Assim, o estado de calamidade pública decorrente do Coronavírus impactou fortemente diversos setores da economia, inclusive, dificultando o cumprimento de contratos firmados por pessoas jurídicas e pessoas físicas, no segmento público e privado.

Desde então muito se fala na possibilidade de requerer pela via judicial a revisão ou rescisão de contratos e exoneração de responsabilidades sob a ótica dos institutos da: teoria da imprevisão; onerosidade excessiva; caso fortuito e força maior.

Para cada instituto, a doutrina e a jurisprudência, com fundamento no direito civil brasileiro, preveem requisitos específicos para sua aplicação, que a depender do caso concreto promovem efeitos jurídicos diversos.

Assim, a aplicação de determinado instituto está condicionada a uma análise pormenorizada  de diversos fatores, tais como: ramo do direito; análise da circunstância à época da celebração do contrato; circunstancia atual da execução do contrato; alternativas existentes para que as obrigações inicialmente assumidas sejam cumpridas; impacto econômico do evento superveniente; duração do contrato e do evento superveniente; tipo contratual; partes envolvidas; análise de cláusulas estipuladas, entre outros. 

No que concerne a teoria da imprevisão, prevista no artigo 317 do Código Civil1, entre os requisitos de sua aplicabilidade podemos citar: a demonstração de mudanças supervenientes das circunstâncias iniciais vigentes à época da celebração do contrato, oriundas de evento imprevisível que comprometa o valor da prestação2; ausência de mora de quem pleiteia a revisão; manifesto desequilíbrio contratual; e que o contrato seja de trato sucessivo. 

Quanto a imprevisibilidade do fato, segundo Silvio de Salvo Venosa: "a imprevisão deve ser um fenômeno global, que atinja a sociedade em geral, um segmento palpável de toda essa sociedade. É a guerra, a revolução, o golpe de Estado, totalmente imprevistos" (Silvio Venosa, Direito civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos, 7ª ed., São Paulo: Atlas, 2007, v. 2, nº 22.2, p. 430).

No entanto, em virtude do contexto econômico do Brasil, a jurisprudência já reconheceu que   não podem ser considerados fatos imprevisíveis: mudança de moeda; inflação; variação cambial; crise econômica; majoração de alíquotas, entre outros.

Portanto, a teoria da imprevisão autoriza a revisão contratual para adequação das cláusulas contratuais às novas circunstâncias, até então, imprevisíveis por uma ou ambas as partes e a elas não imputáveis, com o objetivo de manter o equilíbrio econômico financeiro inicial.

Por sua vez, o instituto da onerosidade excessiva, previsto no artigo 478 do Código Civil3, enseja a resolução e/ou revisão de contratos de execução continuada e diferida, na hipótese em que determinado evento imprevisível, extraordinário e superveniente torna a prestação de uma das partes excessivamente onerosa e da contraparte extremamente vantajosa.

Maria Helena Diniz preceitua que:

"a onerosidade excessiva, oriunda de evento extraordinária e imprevisível, que dificulta extremamente o adimplemento da obrigação de uma das partes, é motivo de resolução contratual, por se considerar subentendida a cláusula rebus sic stantibus, que corresponde à formula de que, nos contratos de trato sucessivo ou a termo o vínculo obrigatório ficará subordinado, a todo tempo, ao estado de fato vigente à época de sua estipulação" (Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 3º volume, p.146). 

Nesse caso, a parte lesada no contrato pelo evento superveniente que alterou profundamente a economia contratual, pode pleitear a rescisão contratual ou o reajustamento das prestações.

Nesse diapasão ensinam Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery:

"quando verificada a onerosidade excessiva pode haver modificação da cláusula contratual que a ensejou, de modo a fazer com que se volte ao anterior equilíbrio contratual. A norma prevê a possibilidade de isto ocorrer, na ação judicial, se o réu da ação de resolução contratual concordar com a alteração da cláusula e manutenção do contrato. Caso o réu não concorde em modificar equitativamente as condições do contrato e sendo do interesse da parte onerada a manutenção do contrato, o juiz pode, ex ofício, corrigir as distorções e modificar a cláusula contratual(...)". (Nelson Nery Junior, Rosa Maria De Andrade Nery In Código Civil Comentado; Ed. Revista dos Tribunais, Edição 12ª, p.1044).

Logo, o reajuste contratual, no âmbito judicial, pode ser realizado pelas partes (artigo 479 do Código Civil) ou pelo juiz. E não sendo possível a modificação equitativa das condições do contrato, pede-se a rescisão contratual.

 Em relação aos institutos da força maior e caso fortuito, o artigo 393 do Código Civil4 estabelece que se pode considerar força maior e caso fortuito a ocorrência de fato de efeitos inevitáveis.

Em linhas gerais, além de causar efeitos inevitáveis, o fato deve ser novo e não imputável à parte.

O mesmo artigo prevê as consequências dos institutos: "O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado".

Ocorre que o mesmo fato, a depender caso a caso, pode ou não eximir o devedor da responsabilidade pelos prejuízos dele decorrentes.

Assim, a caracterização, duração e o impacto do caso fortuito ou força maior sobre o negócio estipulado entre as partes é relevante para examinar o nexo causal entre o fato e a impossibilidade da parte devedora de cumprir determinada obrigação.

Destaca-se que todos os institutos alertam para a necessidade de demonstrar o impacto econômico e o nexo causal entre o evento superveniente e a impossibilidade da parte de cumprir com as obrigações inicialmente assumidas.

Os institutos relativizam o princípio do pacta sunt servanda5 sob a ótica da boa-fé e função social dos contratos, mas o objetivo deles não é rescindir contratos livremente pactuados entre as partes e sim atenuar problemas causados por eventos inesperados como a pandemia do coronavírus e restabelecer o equilíbrio contratual entre as partes, que é pressuposto do contrato.

__________

1 "Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação".

2 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1321614/SP, da Terceira Turma. Brasília/DF, 03-03-2015.

3 "Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação".

4 "Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir".

5 "O princípio de pacta sunt servanda destina-se a preservar a autonomia da vontade declarada, incluindo a liberdade de firmar o contrato em causa, bem como a segurança da relação jurídica subjacente" (SUBTIL, António Raposo. O Contrato e a Intervenção do Juiz. Porto: Ed. Vida Econômica, 2012. ISBN 978-972-788-594-7. p. 32).

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*Erys Huanna de Araujo é advogada do escritório Correa, Porto Sociedade de Advogados.

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