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Do ócio criativo ao ócio destrutivo em tempos de pandemia

A capacidade de produção de informações, bem como a velocidade de (sua) propagação, para o bem e para o mal, é impressionantemente aderente à sociedade e, ao mesmo tempo, assustadoramente hipnotizante, em especial, em tempos de pós-verdade.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Atualizado às 13:35

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O sociólogo italiano Domenico De Masi ao desenvolver o conceito de ócio criativo, o fez muito bem, trouxe a primordialidade em reservar o tempo necessário para a contemplação dos aspectos naturais que cercam a vida agitada dos seres pensantes, assim, poder-se-á exercer um processo de clarificação, decantação e criação de ideias seminais para mudanças (às vezes nem tanto) paradigmáticas da sociedade. Dessa forma, nasceram muitas pérolas nas artes e nas ciências que embalam o cotidiano do mundo como conhecemos hoje.

Entretanto, o final da segunda década do século XXI trouxe consigo uma das maiores mazelas de proporção mundial vivenciada nos últimos cem anos, o novo coronavírus (Sars-CoV-2). A covid-19 apresenta-se como uma doença infectocontagiosa e de alto poder de transmissibilidade, a julgar pelos gráficos (a famosa "curva") de ascensão exponencial dos números de contágio e morte por todos os continentes, não seria diferente em solo brasileiro. Em razão dessas peculiaridades, a despeito dos grandiosos avanços científicos, a única vacina conhecida, até o momento, para mitigar os efeitos perversos da enfermidade é o isolamento social.

É claro que, o distanciamento social carreou variadas ressignificações de conceitos e paradigmas da vida em sociedade. Nesse sentido, esses tempos estranhos vivenciados a partir do enfrentamento à covid-19 descortinaram um mundo paralelo, de compreensão muito mais difícil: o mundo virtual, onde as regras de convivência são outras, o contrato social tende a uma relativização de tempo, espaço e conduta sui generis. Os indivíduos foram forçados a adentrar nessa nova forma de se relacionar por diversas razões práticas da vida diária: lazer; trabalho; conhecimento; aquisição de insumos básicos para a subsistência; etc. Enfim, manter-se um ser minimamente funcional, mesmo que virtual.

Diante disso, constata-se que os modais de comunicação digital são infindáveis, indo de aplicativos de mensagens instantâneas gratuitas até redes sociais de interação por textos, fotos e vídeos. A capacidade de produção de informações, bem como a velocidade de (sua) propagação, para o bem e para o mal, é impressionantemente aderente à sociedade e, ao mesmo tempo, assustadoramente hipnotizante, em especial, em tempos de pós-verdade.

À luz da verdade, esse ambiente de acesso à informação, e a respectiva difusão desta, aliada ao desapego aos princípios morais de parte dessa nova sociedade 4.0, criam a ambiência fértil à disseminação de impropérios, inverdades, discursos fantasiosos não alicerçados em base científica, que prejudicam e atrapalham as ações desenvolvidas nas trincheiras da guerra sanitária hodierna. Observa-se que o isolamento social associado à grande disponibilidade de tempo, e a falta de uma visão crítica (pautada no mínimo de consequencialíssimo dos seus atos), fez surgir "o ócio destrutivo", capaz de corroer não somente carreiras e pessoas, mas pôr ao chão medidas extremamente necessárias para o combate da covid-19.

Além disso, deve-se destacar que entramos em um momento de difícil compreensão por grande parte da população brasileira, momento em que os números que compõem "a curva de contágio e mortes" passaram a ter nomes e CPFs cada vez mais próximos de todos nós. Ademais, afirma-se que a desinformação e a disseminação de fatos contrários a evidências científicas, demonstram-se como frutos de períodos de obscurantismo e negacionismo propalados pela internet, onde ultrapassam as barreiras virtuais e lançam seus efeitos deletérios no mundo real, haja vista que se pode e se deve entender essa atitude nefasta como atentatória ao direito à vida do cidadão, que se vê emparedado defronte ao que chamamos de "dilema da cloroquina". Dilema este que exemplifica apenas um dos múltiplos conflitos entre a ciência baseada em evidência versus ciência baseada em discursos ideológicos.

Como se observa, o indivíduo não sabe onde buscar as "verdadeiras" respostas para as agruras provocadas pela iminência de uma possível contaminação, ou ainda, pelo agônico cenário de um enfermo próximo. Nesta perspectiva, a racionalidade se dissipa e dá lugar à passionalidade, que em nada combina com a decisão mais acertada no enfrentamento dessa pandemia. Aliás, no Brasil a crítica assinalada passa a um nível preocupante e desafiador, basta ver o "apoio institucional" garantido por atos e falas públicas de autoridades do alto escalão do executivo nacional, o presidente da República e seu staff. Assim sendo, o Brasil encontra-se eivado por um processo autofágico de informação e desinformação institucionalizado, que em nada contribui para a guerra sanitária contra o novo coronavírus e seus resultados tóxicos na vida do indivíduo.  

Por fim, pode-se afirmar que estamos a passar por momentos difíceis de entender, mas que servirão para a população refletir, ressignificar e se reeducar para a nova sociedade e para o novo contrato social a ser assinado pela aldeia global pós-pandemia.

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*Pedro C. da Rocha Neto é advogado, Especialista em Direito Público, com ênfase em Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. É mestrado em Planejamento e Políticas Públicas. Exerce atualmente o cargo de Secretário Executivo da Chefia de Gabinete do Prefeito de Fortaleza, Estado do Ceará.

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