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Notas técnicas e Direito do Consumidor: Elas vieram para ficar?

Ainda que baseada na intenção de superar as dificuldades advindas da "nova realidade" que a pandemia do covid-19 impôs às relações jurídicas, a ânsia de encontrar uma "vacina" para os problemas acabou por hipertrofiar o uso das NT's como fonte e soluções jurídicas.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Atualizado às 13:38

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Desde que a sociedade passou a compreender o real impacto da pandemia da covid-19 não apenas o afastamento social passou a ser uma realidade. A demanda por inovação, em alguns casos, deu lugar a opções que buscam soluções milagrosas, rápidas e com menor custo social. Com o tratamento dos problemas de consumo não foi diferente.

A "nova realidade" pregada por alguns passou a ser adotada como justificativa para a criação de "novas teorias" e até mesmo a desconsideração do Direito Positivo e a compreensão do Direito como sistema, para dar lugar a um mecanismo que vem se multiplicando nos dois últimos meses: a nota técnica.

Advinda dos mais diversos órgãos e entidades, a nota técnica passou a ser utilizada em ritmo acelerado, por exemplo, pela Secretaria Nacional do Consumidor - SENACON, Ministério Público, PROCONS e a Ordem dos Advogados do Brasil - OAB - para propor aparentes soluções sobre os mais diversos problemas de consumo.

Ainda que baseada na intenção de superar as dificuldades advindas da "nova realidade" que a pandemia do covid-19 impôs às relações jurídicas, a ânsia de encontrar uma "vacina" para os problemas acabou por hipertrofiar o uso das NT's como fonte e soluções jurídicas.

Aqui, cabe uma rápida provocação. Ainda que os problemas de consumo também tenham ocorrido em outros países em razão da pandemia do covid-19 antes de se fazerem presentes no mercado de consumo nacional, aparentemente os órgãos do sistema de proteção optaram por esperar a chegada dos efeitos concretos do afastamento social, da redução dos salários, da redução do consumo, do cancelamento de viagens, da suspensão de aulas, entre outros, para buscar alternativas para a mitigação dos seus efeitos. De fato, precaução e prevenção nunca foram o nosso forte. Em muitos casos, ainda continuamos a confiar nas mandingas e nos três toquinhos na madeira para afastar os riscos que nos circulam. E é aí que entram as notas técnicas, não é diferente.

Ainda que outros entendimentos possam existir, para fins e orientação da presente abordagem, adota-se a conceituação de nota técnica utilizada pelo Ministério da Justiça, para quem trata-se de "um documento elaborado por técnicos especializados em determinado assunto e difere do Parecer pela análise completa de todo o contexto, devendo conter histórico e fundamento legal, baseados em informações relevantes". A sua utilização restará justificada "quanto identificada a necessidade de fundamentação formal ou informação específica da área responsável pela matéria e oferece alternativas para tomada de decisão"1. A natureza de orientação decorre, portanto, da própria literalidade do conceito adotado.

A profusão de "conteúdos técnicos" que versam sobre relações jurídicas de consumo, bem como a função orientadora, levam à uma abordagem preliminar e necessária: qual a razão/justifica/finalidade que leva um órgão ou entidade a emitir uma nota técnica?

Penso serem, eminentemente, duas (sem exclusão de outra razões que possam ser ponderadas): quando oriunda de um órgão responsável por normatizar um tema enquanto agente regulatório ou até mesmo de planejamento e execução de políticas públicas, por exemplo, serviria para auxiliar no esclarecimento e compreensão do conteúdo de uma norma, auxiliando na sua aplicação pelos seus destinatários; ou então, tal como visto nas mais diversas fontes nos últimos meses, apenas para criar uma "orientação ou entendimento particular" acerca de uma pretensa "solução mais adequada" de um problema de consumo.

A questão é que a multiplicação de notas técnicas acabou por deixar em segundo plano uma discussão necessária, que acabará por ser encabeçada eminentemente pela advocacia e Poder Judiciário: o exercício hermenêutico das normas de defesa do consumidor em vista a superação dos problemas de consumo em concreto. As mesmas normas que, a despeito do que parece transparecer em muitas notas técnicas, já estabelecem o caminho da segurança jurídica necessária para a solução dos múltiplos conflitos de consumo oriundos dos impactos sociais e econômicos da pandemia do covid-19.

Todavia, a urgência do tema acabou por criar uma falsa percepção de que o Direito pátrio não possuí condições de garantir uma resposta adequada e necessária frente aos problemas de consumo que se multiplicaram. Essa particularidade deu lugar a uma cruzada jurídica focada na busca por soluções homogeneizadas e, o pior, sem uma adequada uniformidade dos entendimentos apresentados pelos diversos órgãos que buscam apresentar as suas orientações.

A ocorrência de divergências, ou a mera possibilidade de ocorrência de divergência, entre as posições apresentadas nas notas técnicas acaba por resultar em mais insegurança jurídica. Ainda que a sua divulgação tenha como fundamento afastar dúvidas sobre a compreensão do direito a ser aplicado.

Ora, diante de posições divergentes entre duas notas técnicas, qual orientação o consumidor e o fornecedor devem-se seguir? Afinal, em um primeiro momento, as notas técnicas são destinadas a estes dois sujeitos da relação de consumo, e apenas em momento posterior, aos operadores do Direito.

A resposta é, aparentemente, elementar: aquela que se mostrar mais adequada para atendimento do interesse envolvido. E é aí que as consequências negativas, da falta de uniformidade na construção das orientações presentes nas notas técnicas, se mostram danosas para a criação de um ambiente de pacificação social e de superação dos conflitos de consumo.

Havendo conflito, divergência ou falta de uniformidade entre as orientações, a criação de um ambiente de escolhas baseadas nos interesses envolvidos é uma consequência natural e deve ser esperada. As partes envolvidas em um conflito de consumo passarão a optar por adotar este ou aquele entendimento de acordo com a conveniência e oportunidade, sempre em vista da maximização dos seus próprios interesses.

Essa possibilidade de ocorrência de divergência eleva ainda mais a sensação de insegurança jurídica.

Algumas notas técnicas, por exemplo, acabam por adotar, inclusive, uma assertividade exagerada: "deve", "obrigatório", entre tantos outros imperativos que impõem uma falsa percepção de obrigatoriedade. E a depender do órgão responsável pela nota técnica, por exemplo o Ministério Público, não é sem razão admitir a probabilidade de os sujeitos da relação jurídica entenderem trata-se de um conteúdo de aplicação "obrigatória".

Isso dá um sinal bem confuso para as partes envolvidas, em especial no que se refere à aplicação da norma ao caso concreto.

Tomemos por base a nota técnica 01/20 do PROCON MG, emitida pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais sobre a questão das mensalidades escolares. Um tema que vem causando grandes debates e que certamente resultará em mais judicializações ao final do afastamento social a todos esperado neste momento.

Trata-se de um documento que deve ser compreendido como uma orientação, um entendimento particular de um órgão do sistema de proteção do consumidor, sobre a aplicação do Direito, mas que ao final, conclui o entendimento apresentado com um "cumpra-se na forma legal".

Ora, é uma orientação ou uma obrigação de acatamento?

Essa pergunta faz ainda mais sentido quando se verifica que antes de apresentar as "orientações" e após a apresentação dos seus considerandos, os autores da nota técnica 01/20 do PROCON MG "deliberam, visando a orientação de consumidores e fornecedores, que as instituições privadas de educação básica, vinculadas ao Sistema de Ensino do Estado de Minas Gerais, devem": a) conceder, aos seus consumidores, um desconto mínimo de 29,03% no valor da mensalidade de março, relativo aos dias em que não houve a prestação do serviço, na forma contratada (23 a 31/03), ressalvada a hipótese de antecipação das férias no período, devendo o desconto ser concedido na mensalidade no mês de abril, caso a mensalidade de março já tenha sido quitada no valor integral originalmente previsto". (sem grifos no original)

Por sua vez, na nota técnica 14/20 da SENACON, que versa sobre o tema da prestação de serviços de instituições de ensino que tiveram as aulas suspensas em razão do risco de propagação do covid-19, referido órgão, também integrante do sistema de defesa do consumidor, notadamente em relação ao tema desconto, orienta, dentre outros, que "nem o diferimento da prestação das aulas, nem sua realização na modalidade à distância obrigam a instituição de ensino a reduzir os valores dos pagamentos mensais ou a aceitarem a postergação desses pagamentos. Muito menos, em tese, ensejariam o cancelamento imotivado do negócio jurídico. Vale lembrar que o pagamento é parte da obrigação contratual assumida pelos responsáveis e é condição para que os alunos tenham direito à reposição das aulas em momento posterior. Parar o pagamento poderia ser tratado como quebra de contrato, sujeitando os responsáveis ao cancelamento da prestação do serviço e a eventuais multas previstas." (sem grifos no original)

Diante desse apresente descompasso nas orientações, qual desses dois conteúdos dever ser eleito pelas partes da relação jurídica de consumo como elemento de orientação para a superação do problema?

Este breve texto não busca analisar uma alternativa jurídica para a questão das mensalidades escolares, o que poderá ocorrer em outra oportunidade, pois objetiva tão somente focar no meio utilizado para alcançar a tão necessária solução. Uma solução que, a despeito das particularidades do caso concreto, objetiva uma homogeneização artificial das relações jurídicas.

A opção por um recurso de homogeneização parecer ser um bom caminho a ser adotado, mas esconde o risco da negativa da equidade, da ponderação das particularidades do caso concreto e resulta, quando muito, na tentativa de transparecer uma aparência de segurança jurídica. Uma tentativa de construir uma tábua de salvação, um porto seguro em tempos de tantas dúvidas, incertezas e atribulações.

Na ânsia de encontrar a solução mais adequada pela via da homogeneização do entendimento jurídico, corre-se o risco de trocar toda a densidade da ciência do Direito, as normas positivas, a doutrina e a jurisprudência nacional, pela construção de narrativas jurídicas que criam uma falta percepção da segurança. A realidade é que uma solução padronizada para os problemas de consumo não pode vir, como de fato entendo que nunca virá, a partir de uma nota técnica.

Não se desconhece, contudo, a relevância e importância de algumas orientações presentes em muitas notas técnicas. Especialmente naquelas que reiteram a importância da cooperação e empatia contratual das partes e a necessidade da tentativa de superação das divergências sem a necessidade de proposituras das demandas judiciais, a importância de as partes buscarem um acordo que pondere as particularidades envolvidas. Conteúdos, portanto, que encontram vinculação a institutos jurídicos previstos no Código de Defesa do Consumidor e em clássicos institutos do Direito Civil, como a boa-fé, bem como às orientações de que o modelo de proteção jurídica do consumidor destina-se, também, à uma harmonização dos interesses envolvidos.

Ainda nesse contexto, merece destaque a ausência de um conteúdo na maioria das notas técnicas, que é uma abordagem do problema a partir da finalidade da ordem econômica.

Em muitas notas técnicas os temas da livre iniciativa, liberdade negocial, boa-fé, alteração contratual a partir da alteração da sua base objetiva, entre outros, tem recebido grande destaque. Todavia, pouco, muito pouco, se aborda sobre a finalidade da ordem econômica. Parece até mesmo o trecho "assegurar a todos existência digna" não está presente no caput do art. 170 da CR/88.

Com a opção pela construção de novas narrativas jurídicas, grande é o risco de deixarmos de lado a reflexão mais atenta e sistêmica do Direito, em troca de um entendimento "aparentemente mais adequado" que, em alguns casos, beira a tentativa de reconstrução de uma base jurídica que, a despeito de todas as críticas possíveis, possui condições de garantir respostas adequadas aos conflitos de consumo.

Com efeito, trocar o sistema jurídico e suas normas vigentes pela criação da solução jurídica dos problemas de consumo a partir de notas técnicas é um risco sério, de consequências graves e que impõe aos órgãos do sistema de proteção do consumo, no contexto de um Estado Federal, a aplicação efetiva do princípio da cooperação. E, mais ainda, a construção de um ambiente de discussão democrática acerca das orientações que serão repassadas a consumidores e fornecedores pelos órgãos que integram o sistema nacional de proteção do consumo. Algo que, nos últimos tempos tem sido tratado com certo desprezo por parte de um dos órgãos que compõem sistema: exatamente aquele que deveria coordenar as ações na esfera federal.

Estranhamente, em tempos em que a solução da proteção dos interesses envolvidos nas relações de consumo passa pela necessária construção de pontes entre consumidor e fornecedor, as convenções coletivas de consumo continuam no ostracismo no contexto da Política Nacional de Relações de Consumo. A histórica negligência com que foi tratada a convenção coletiva de consumo nas últimas década cobra um preço muito alto que, em alguma medida acaba por resultar no advento de tantas notas técnicas.

Há um ditado popular que muitos passaram a utilizar neste momento de pandemia, que a despeito de todas as críticas que possam ser feitas à sua literalidade mórbida e as ponderações consequencialistas da sua utilização, se presta à provocação final que pretendemos deixar: o que não nos mata, nos torna fortes. Mas será que isso também se aplica às notas técnicas?

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*Felipe Comarela Milanez é professor do curso de Direito da Universidade Federal de Ouro Preto/MG, doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Membro da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/MG.

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