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A competência do município para agir na prevenção e combate contra o vírus covid-19: breves considerações

O medo da doença é plenamente compreensível e justificado, mas, a tentativa de tirar proveito político por parte de políticos ou pretensos políticos inescrupulosos, é inaceitável.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Atualizado às 14:47

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Introdução

A pandemia provocada pelo covid-19 tem feito mal a muita gente. A doença, que segundo as publicações médicas, ataca as vias respiratórias e células do sangue, causando hipo-oxigenação do organismo e consequente grave risco à saúde das pessoas, tem preocupado, e com razão, todo o planeta. No entanto, não é só a doença provocada pelo covid-19 que mais atinge e prejudica as pessoas. Por trás de tudo existe outra e terrível doença, que é o problema mental. O medo de um lado e a preocupação política de outro têm provocado maiores riscos e prejuízos do que o próprio covid-19.

O medo da doença é plenamente compreensível e justificado, mas, a tentativa de tirar proveito político por parte de políticos ou pretensos políticos inescrupulosos, é inaceitável. Políticos ou pretensos políticos fracassados aproveitam a fragilidade das pessoas que vivem de sobressaltos em razão doença, para implantar a cultura do medo, na esperança que ao final possam ser considerados como heróis.

São essas pessoas, que por desconhecimento ou maliciosamente pregam a inversão da jurídico-democrática, criando situações que desestruturam a ordem jurídica estabelecida pela Constituição Federal. Lamentavelmente, são pessoas mal intencionadas que enganam a população pregando que só decreto do Estado-membro, tem validade, desconsiderando os decretos da União e dos Municípios.

É uma aberração jurídica o que se tem apregoado neste sentido. Dizer que o decreto estadual está acima do decreto do governo federal e do decreto municipal, sendo que só o primeiro deva ser observado e, desprezados, os últimos, é demonstração de ignorância ou de má-fé na tentativa de tirar dividendos políticos e, em prejuízo da população.

Nessa quadra, o presente artigo pretende demonstrar que a autonomia constitucional dada ao município, incluindo sua competência para agir na prevenção e no combate contra a pandemia do vírus covid-19 não pode ser inibida por decreto estadual, mormente em razão da jurisprudência atual do Supremo Tribunal Federal que prega a doutrina da colaboração horizontal, e não somente vertical,  entre os entes federativos, bem como da predominância do interesse local como critério de resolução dos conflitos de competência entre eles.

1. A competência dos entes federativos municipais

O constituinte reservou aos Municípios competência concorrente com outros entes federativos (arts. 23 e 24, da CF) e competência privativa, ou seja, competência atribuída somente ao próprio Município. Quanto a esta última, houve enumeração explícita na Constituição, como por exemplo, autonomia para criar distritos, (art. 30, IV), instituir guardas municipais (art. 144, § 8º), e outra parcela de competência que é implícita, decorrente da regramento constitucional disposto no art. 30, I, da CF, que estabelece que cabem aos Municípios "legislar sobre assuntos de interesse local", significando, como esclareceu de maneira clara e direta Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gutavo Gonet Branco, "interesse predominantemente municipal, já que não há fato local que não repercuta de alguma forma, igualmente, sobre as demais esferas da Federação" (Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 885).

Não é sem razão que Alexandre de Moraes também preconizou neste sentido, ao afirmar que "A Constituição Federal consagrou o Município como entidade federativa indispensável ao no sistema federativo, integrando-o na organização político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, como se nota na análise dos arts. 1º, 18, 29, 30 e 34 VII 'c' todos da Constituição Federal" (Direito Constitucional. p. 261. São Paulo: Atlas, 21ª edição, 2007).

A autonomia municipal é garantia constitucional, não podendo ser suprimida por ato de quaisquer um dos outros entes e nem por autoridade alguma. Ainda no final do século passado, o STF declarou inconstitucional preceito da Constituição do Estado do Rio de Janeiro que exigia, para participação do Município em região metropolitana, a aglomeração urbana ou microrregião, aprovação prévia da Câmara Municipal (STF-Pleno-Adin nº 1,841-9/RJ. Rel. Min. Marco Aurélio. Diário da Justiça. Seção I, agosto, 1998, p. 02).

Um país como o nosso em que se diz ser Estado Democrático de Direito, o poder estatal é desmembrado em três (3) funções, que por vezes são chamadas de poderes. A atividade destes poderes-funções é dividida em três (3), sendo a função judicial, legislativa e executiva. Estas funções devem ser exercidas com harmonia, independência e autonomia. O Poder Judiciário tem função de prestar a jurisdição (julgar e aplicar a lei), o Poder Legislativo tem função de elaborar leis e, por último a função executiva (administrativa).  

O Poder Executivo não tem função legislativa no sentido de projetar e aprovar lei. No entanto, para dar cumprimento à legislação oriunda do Poder Legislativo, pode necessitar elaborar e publicar decreto para esclarecimento ou regulamentação da lei quando esta depender de regulamentação. Mas, o decreto tem função regulamentadora e não criadora ou modificativa da lei. Frise-se bem - decreto não é lei.  Apenas serve para esclarecer a lei.

A Constituição Federal assegura a autonomia entre União, Estados, Distrito Federal e Município dando a estes, a liberdade para regulamentar determinadas leis através de decreto. O decreto jamais pode criar direito e nem obrigação, porque não se trata de atividade legislativa. Logo - decreto não é lei. Não sendo lei não pode criar direito e nem obrigação conforma assegura a garantia constitucional (art. 5º, II, da CF).

O decreto vincula o ente que o elaborou, mas, não pode um decreto de um ente federativo ser revogado ou subestimado por outro ente. Por isso é engano a pregação que por vezes se fazem que o decreto do Estado sobrepõe-se ao decreto do município. A imaginação é tão absurda e dotada de ingenuidade, porque se o decreto do Estado sobrepusesse ao decreto municipal, da mesma forma o decreto da União haveria de sobrepor ao do Estado. 

Portanto, o decreto que não é lei não pode impor obrigação alguma (fazer ou não fazer) porque a imposição de obrigação e a concessão de direito somente ocorrer em virtude de lei (art. 5º II, da CF).

O que se tem visto nos últimos tempos é uma escalada de arbitrariedade e barbaridade em que pessoas ocupantes de cargos públicos de forma abusiva, ilegítima e criminosa estão aproveitando o momento de pavor e medo que tomou conta da população, estão destruindo bens e patrimônio alheio, cerceando o direito de ir e vir dos cidadãos, constrangendo-os de forma arbitrária, muitas vezes utilizando-se de violência com agressões e lesões corporais, colocando em risco a vida das pessoas, que já está virtualmente ameaçada pela doença trazida pelo víru Covid-19, cumulando a já grave situação com sistemáticas violações dos mais comezinhos direitos fundamentais.

2. Critérios adotados pelo Supremo Tribunal Federal pera resolução de conflitos na competência concorrente dos entes federativos

Como já visto, decreto não é lei, servindo apenas para regulamentar lei aprovada pelo Poder competente para editar leis, qual seja, o Poder Legislativo.

De qualquer forma, o Supremo Tribunal Federal já assentou entendimento de que a competência do ente federativo menor (municípios), somente será afastada se a norma federal ou estadual indicar expressamente, de forma adequada, necessária e razoável, que os entes federativos menores estão excluídos da competência legislativa ou material.

Confira-se:

"Nos casos em que a dúvida sobre a competência legislativa recai sobre norma que abrange mais de um tema, deve o intérprete acolher interpretação que não tolha a competência que detêm os entes menores para dispor sobre determinada matéria (presumption against preemption). Porque o federalismo é um instrumento de descentralização política que visa realizar direitos fundamentais, se a lei federal ou estadual claramente indicar, de forma adequada, necessária e razoável, que os efeitos de sua aplicação excluem o poder de complementação que detêm os entes menores (clear statement rule), é possível afastar a presunção de que, no âmbito regional, determinado tema deve ser disciplinado pelo ente menor. Na ausência de norma federal que, de forma nítida (clear statement rule), retire a presunção de que gozam os entes menores para, nos assuntos de interesse comum e concorrente, exercerem plenamente sua autonomia, detêm Estados e Municípios, nos seus respectivos âmbitos de atuação, competência normativa." [RE 194.704, rel. p/ o ac. min. Edson Fachin, j. 29-6-2017, P, DJE de 17-11-2017].

No mesmo sentido foi o recente julgamento da ADI 6341, onde decidiu-se que a competência é concorrente. A medida liminar referendada pelo Pleno do Supremo na referida ADI contém os seguintes termos (grifamos):

"O que nela se contém - repita-se à exaustão - não afasta a competência concorrente, em termos de saúde, dos Estados e Municípios. Surge acolhível o que pretendido, sob o ângulo acautelador, no item a.2 da peça inicial, assentando-se, no campo, há de ser reconhecido, simplesmente formal, que a disciplina decorrente da Medida Provisória nº 926/2020, no que imprimiu nova redação ao artigo 3º da Lei federal nº 9.868/1999, não afasta a tomada de providências normativas e administrativas pelos Estados, Distrito Federal e Municípios.
3. Defiro, em parte, a medida acauteladora, para tornar explícita, no campo pedagógico e na dicção do Supremo, a competência concorrente".

No sentido diametralmente oposto ao do entendimento que parece que vem se consolidando nas Cortes Estaduais, principalmente no Estado de São Paulo, o que ficou explícito no julgamento da ADI 6341foi justamente a ausência de hierarquia e a predominância da municipalização, pois o critério adotado no plenário do referido julgamento por via do controle concentrado de constitucionalidade se deu pela alusão à Lei 8.080/1990, a Lei do SUS. Confira-se o Informativo 973 do STF que esmiúça o que realmente foi julgado na ADI 6341:

"(...). Assentou que o caminho mais seguro para identificação do fundamento constitucional, no exercício da competência dos entes federados, é o que se depreende da própria legislação. A Lei 8.080/1990, a chamada Lei do SUS - Sistema Único de Saúde, dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde e assegura esse direito por meio da municipalização dos serviços. A diretriz constitucional da hierarquização, que está no caput do art. 198 da CF, não significou e nem significa hierarquia entre os entes federados, mas comando único dentro de cada uma dessas esferas respectivas de governo. Entendeu ser necessário ler as normas da Lei 13.979/2020 como decorrendo da competência própria da União para legislar sobre vigilância epidemiológica. Nos termos da Lei do SUS, o exercício dessa competência da União não diminui a competência própria dos demais entes da Federação na realização dos serviços de saúde; afinal de contas a diretriz constitucional é a municipalização desse serviço (...)." (ADI 6341 MC-Ref/DF, rel. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Edson Fachin, julgamento em 15.4.2020. (ADI-6341).

Veja-se, então, que exatamente ao contrário do que sustentado alhures, a diretiva sinalizada pelo STF na reputada ADI 6341 foi o da municipalização, isto é, da predominância do interesse local.

Portanto, não há nada, pelo menos ainda não há, seja por norma federal (lei em sentido estrito), seja por julgamento do STF, que estabeleça que simples Decreto Estadual possa inibir o Município de exercer sua competência constitucional e administrativa sobre as medidas a serem adotadas dentro do contexto da pandemia.

Note-se, novamente, na reputada ADI 6341, o STF disse justamente que a competência é concorrente, de acordo a  "dicção do Supremo", ou seja, de acordo com a interpretação que Suprema Corte vem entregando a respeito da competência concorrente da União, Estados e Municípios, e tal interpretação, caminha justamente no sentido de que apenas no caso de existir lei em sentido estrito (norma aprovada pelo Poder Legislativo) que indique claramente, de forma adequada, necessária e razoável, que os efeitos de sua aplicação excluem o poder de complementação que detêm os entes menores (clear statement rule), é possível afastar a presunção de que, no âmbito regional, determinado tema deve ser disciplinado pelo ente menor.

E o julgamento assentou como critério os princípios relativos a competência na implementação do SUS (Lei n. 8.80/1990). Nessa linha, o mesmo STF também já pacificou entendimento de que "o tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados. O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente ou conjuntamente" (RE 855.178-RG - Tema 793).

Ora, se o critério é o da predominância da municipalização e se  qualquer ente federativo municipal pode ser isoladamente responsabilizado  para responder por exigências de tratamento médico, tudo parece indicar que também, na "dicção do Supremo", está autorizado a agir de acordo com o interesse local nesta situação de pandemia, pois é óbvio, a mais não poder, que ninguém pode ser responsabilizado por algo em relação ao qual não tinha o poder ou o dever de agir.

Logo, consideram-se de interesse local as atividades, e a respectiva regulação legislativa, pertinente ao horário de funcionamento das farmácias e do comércio em geral, matéria que o STF reconhece ser de cunho municipal, conforme todos esses precedentes emanados do STF, mormente a ADI 6341.

Em suma: o que deve ser entendido é que "assuntos de interesse local", expressão utilizada pela CF/88, art. 30, I, é equivalente a "peculiar interesse" das Constituições anteriores. Contudo, Celso Bastos, deixa bem claro que "o que houve de novo foi o abandono da expressão 'peculiar interesse', cláusula-chave para determinação da competência constitucional desde 1891, pela expressão equivalente 'assuntos de interesse local'".

Sob a perspectiva exclusivamente da competência administrativa, destaca-se o perene ensinamento de Hely Lopes Meireles, segundo o qual "se caracteriza pela predominância e não pela exclusividade do interesse pra o município, em relação ao do Estado e da União. Isso porque não há assunto municipal que não seja reflexamente de interesse estadual e nacional. A diferença é apenas de grau, e não de substância" (Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 1996, p. 121).

Diante disso, os Municípios têm competência para agir sobre assuntos de interesse local, abandonando a velha fórmula que atribuía aos Municípios competência apenas nas matérias de "seu peculiar interesse", lecionando Manoel Gonçalves Ferreira Filho que "estaria incluída na competência municipal interesse preponderante do Município questões embora que não fossem de exclusivamente de interesse local." (Comentários à Constituição de 1988, Saraiva, 1990, p. 218).

Tudo isso a indicar, portanto, que em relação aos temas de interesse local, sobre os quais não incida norma constitucional ou lei federal que de maneira clara, adequada e razoável os exclua, os Municípios dispõem de competência privativa.

Por fim, veja-se que o STF já estabeleceu que nem mesmo a Constituição do Estado pode invadir ou limitar a autonomia e a competência do Município. Confira-se:

"Autonomia do Município. Separação de poderes. A CE não pode impor, ao Prefeito municipal, o dever de comparecimento perante a Câmara de Vereadores, pois semelhante prescrição normativa, além de provocar estado de submissão institucional do Chefe do Executivo ao Poder Legislativo municipal (sem qualquer correspondência com o modelo positivado na CF), transgredindo, desse modo, o postulado da separação de poderes, também ofende a autonomia municipal, que se qualifica como pedra angular da organização político-jurídica da Federação brasileira. Infrações político-administrativas: incompetência legislativa do Estado-Membro. O Estado-Membro não dispõe de competência para instituir, mesmo em sua própria Constituição, cláusulas tipificadoras de ilícitos político-administrativos, ainda mais se as normas estaduais definidoras de tais infrações tiverem por finalidade viabilizar a responsabilização política de agentes e autoridades municipais (STF, Pleno, ADIn 687-PA, rel. Min. Celso de Mello, j. 2.2.1995, v.u., DJU 10.2.2006, p. 5; JSTF 326/24)."

Ora, no caso em análise o que se tem apenas é um decreto estadual. Se nem mesmo a própria Constituição Estadual pode interferir na esfera de competência dos Municípios, é óbvio, a mais não poder, que não pode um mero decreto estadual violar tal prerrogativa constitucional.

3. Consequências do fechamento da atividade econômica nos municípios

Analisada a questão jurídica, o argumento de fato usado por quem defende a prevalência do decreto estadual sobre competência constitucional dos municípios parece que também não perdura diante uma análise um pouco mais demorada.

Muito se fala que a quarentena, embora configure medida drástica, estaria salvando vidas. Contudo, ao se fazer um cotejo entre o desemprego que ela provoca e a proteção à saúde que dela adviria, a conclusão é que o fechamento da economia pode causar, a longo prazo, potencialmente igual dano ou até mesmo maior mortalidade do que o número de vidas supostamente poupadas.

E para que tal afirmação não fique apenas no campo da retórica, a correlação entre recessão econômica e aumento da mortalidade na população, principalmente a mais humilde, já foi registrada e quantificada por cientistas brasileiros e estrangeiros.

A constatação é de um estudo realizado pela Fiocruz, Universidade de Londres e Fundação Getúlio Vargas, que avaliou os efeitos da recessão no número de mortes e verificou se os programas de proteção social impactaram de alguma forma.  A pesquisa foi publicada na The Lancet Global Health, uma renomada revista científica da área de saúde. E ali se verificou que para cada 1% de aumento na taxa de desemprego, no mínimo sobe 0,5% a morbidade da população afetada. Nos mais pobres, essa correlação direta é ainda pior.

Como não bastasse, segundo o IPEA, o aumento na taxa de desemprego aumenta o índice de homicídios em 1,18%.

Concluem os especialistas que:

"(...). Isso reforça a importância de investimentos sociais na formação de uma cadeia de proteção em torno dos indivíduos. Se essa rede de proteção está bem constituída, crescem as chances de menor adoecimento e maior sobrevivência. Essa é uma ideia que vem se consubstanciando na área de saúde, e esse trabalho traz evidências nessa direção", ressalta o pesquisador Maurício Barreto, do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/ Fiocruz Bahia), que também assina o estudo. Segundo ele, saúde não é só uma questão de serviços de saúde, mas também está ligada a políticas sociais e econômicas. "Ou seja, o que acontece no mundo social e econômico afeta também a saúde", afirma."

Logo, os dados científicos disponíveis, em verdade, são justamente contrários ao argumento de que só a quarentena total e o fechamento do comércio poderia ser o principal mecanismo de combate a essa nefasta pandemia.

Com a recessão e o desemprego que a medida causará, como já causou, ao longo dos anos morrerão a mais e silenciosamente, porque tais mortes passarão despercebidas e não serão registradas, o mesmo número ou até mesmo muito mais pessoas do que a própria doença tragicamente ceifar, e como não bastasse, o índice de criminalidade pode fugir de controle, de tal sorte que os argumentos fáticos sobre a exclusividade do lockdown como receita de ação, não se justificam frente aos dados científicos.

Assim, tudo parece indicar que não há explicação adequada, necessária e tampouco razoável para que o decreto estadual retire do município a competência para lidar de maneira mais ampla com as graves consequências locais da epidemia, desde que, evidentemente, mantidas com disciplina espartana, as medidas profiláticas, como o distanciamento, o uso de máscaras, a esterilização frequente das mãos e objetos, etc..

Conclusões

O Município é ente federativo que tem sua autonomia política e administrativa consagrada e limitada nos termos da Constituição Federal.

Nessa linha, a própria Constituição Federal estabelece em seu art. 30, I, que cabem aos Municípios "legislar sobre assuntos de interesse local", sendo que tal cláusula, conforme abalizada doutrina sobre o tema, deve ser entendida como interesse "predominantemente" municipal, porque não há assunto municipal que não seja reflexamente de interesse estadual e nacional. A diferença é apenas de grau, e não de substância.

Ao julgar os eventuais conflitos de competência entre os munícipios e os demais entes federativos, o STF tem adotado o critério de que apenas no caso de existir lei em sentido estrito (norma aprovada pelo Poder Legislativo) que indique claramente, de forma adequada, necessária e razoável, que os efeitos de sua aplicação excluem o poder de complementação que detêm os entes menores (clear statement rule), é possível afastar a presunção de que, no âmbito regional, determinado tema deve ser disciplinado pelo ente menor (RE 194.704, rel. p/ o ac. min. Edson Fachin, j. 29-6-2017, P, DJE de 17-11-2017).

Também já deixou claro o STF que nem mesmo a própria Constituição Estadual pode interferir na esfera de competência dos Municípios, resultando daí que não pode um mero decreto estadual violar tal prerrogativa constitucional (STF, Pleno, ADIn 687-PA, rel. Min. Celso de Mello, j. 2.2.1995, v.u., DJU 10.2.2006, p. 5; JSTF 326/24).

Recentemente, ao julgar a ADI 6341, explicitou justamente a ausência de hierarquia e a predominância da municipalização no que tange às medidas de prevenção e combate contra o covid19, pois o critério adotado no plenário do referido julgamento por via do controle concentrado de constitucionalidade se deu pela alusão à Lei 8.080/1990, a Lei do SUS, conforme detalhamento trazido no Informativo 973 do STF.

Por fim, estudo realizado pela Fiocruz, Universidade de Londres e Fundação Getúlio Vargas aponta que a recessão econômica pode ser potencialmente tão ou mais danosa que os efeitos da terrível pandemia.

Logo, tudo isso indica a predominância do interesse local, pois é justamente nos municípios é que as pessoas sentem os efeitos nefastos da pandemia, seja no número de mortes, seja na devastação da economia, que também conduz ao desastre sanitário, deixando claro que é na cidade que se pode "calibrar" com mais precisão medidas mais restritivas ou menos restritivas do que as regras gerais estabelecidas pelo entes federativos estaduais.

Mal ou bem, bem ou mal, a jurisprudência do Supremo, como acima demonstrado, pelo menos até agora, conduz ao entendimento de que o município tem sim competência para agir na prevenção e combate da pandemia, não estando limitado por simples decretos estaduais.

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*Paulo José Castilho é Mestre em direito pelo Centro Universitário Cesumar (Unicesumar), ex-professor de Direito Constitucional do Curso de Direito da Faculdade de Presidente Prudente-SP. Professor convidado do Curso de Pós-graduação da ESA/SP, advogado em Presidente Prudente. 

*Gelson Amaro de Souza é Doutor em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro do Instituto Panamericano de Derecho Procesal. Professor concursado para os cursos de graduação e pós-graduação em direito (Mestrado e doutorado) da Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP (Campus de Jacarezinho),ex-diretor e professor nos curso de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Associação Educacional Toledo - AET - de Presidente Prudente-SP, da FAI de Adamantina e da pós-graduação da Faculdade de Direito - FIO de Ourinhos e da ESA/SP, Procurador do Estado (aposentado) e advogado em Presidente Prudente-SP. t

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