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O ano em que a ciência acabou

Ciências humanas e biológicas, como quaisquer outras, precisam com urgência assumir o seu curso natural, com sensatez e imparcialidade.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Atualizado às 10:33

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O dia certamente não foi o mesmo para todas as nações. Mas é triste constatar que, no interregno de poucos meses, em diferentes datas, a ciência perdeu validade no planeta.

Embriões de um quadro assim grave, é certo, já se apresentavam aqui ou ali.

Há muito que estudos científicos estavam servindo a governos, corporações, entidades sem fins lucrativos diretos e a interesses os mais diversificados. Não demorou para que, ao invés de aproveitar as conclusões de laboratórios e instituições de pesquisa, pessoas naturais e jurídicas passassem a influenciar a produção e, por consequência, o resultado de experimentos e teorias.

Sim, tudo isso era visto. Não é novo. A ciência foi maltratada mas sobrevivia. Da tecnologia às humanidades...

Dúvidas sobre a existência do holocausto, ou da forma redonda da Terra, foram recentemente revigoradas. A virada do milênio, em particular, foi pródiga em todo tipo de questionamento.

Na indústria de medicamentos - onde ironicamente, muitos produtos foram descobertos ao acaso - concepções supostamente abstratas da química e da medicina compuseram por muito tempo uma frágil tribuna para avaliar remédios e tratamentos. Depois, o conhecimento foi utilizado para questionar patentes e, assim, a própria subsistência da indústria...

Mais recentemente, o chamado "efeito estufa", no terreno do meio-ambiente, tornou tão antagônicos os grupos em confronto que deixou no ar enorme interrogação sobre o que seria básico nessa matéria.

É preciso reconhecer que a conflitualidade sempre foi ínsita à ciência. Contudo, também não há como negar que tradicionalmente existiu, da parte das principais sociedades, a louvável preocupação de aguardar o resultado das experiências e dos fenômenos, para estabelecer que rumo tomar diante de novas concepções e descobertas.

Em última análise, prevalecia o bom senso e, de certo modo, uma saudável expectativa.

Clássica é a indagação acerca da verdade no campo da ciência ou, o que a tanto equivale, a polêmica acerca da neutralidade do cientista. No entanto, por isso mesmo se permitiu, ao longo da história, que novas ideias e técnicas fossem experimentadas e, uma vez aprovadas, comportassem aplicação.

Subsistia, conquanto trôpego, um critério de legitimação pelo resultado.

De curto tempo para cá, isso sofreu visível alteração. E a mudança definitivamente se consolidou diante da epidemia de 2020.

Métodos e produtos passam a sofrer censura prévia, por motivos que nada têm com a evolução do conhecimento científico. Grupos de pressão simplesmente são avessos à aplicação de novas ideias, talvez até mesmo pelo medo de que elas deem certo.

Cabe, pois, atualizar a pergunta: o que é realmente verdadeiro, hoje, no campo da ciência?

A considerar o que já está se generalizando, verdadeiro é aquilo que agrada a todos, ou a maioria, ou pelo menos as pessoas com capacidade de opinião em determinado setor. Assim como deveras acontece com o médico de prognóstico otimista, na relação com o seu paciente, assistimos a um cenário em que, coletivamente, a ciência só é válida se satisfizer determinadas comunidades.

Isso com uma agravante: no campo da política não é tão fácil determinar, mais tarde, o que deu e o que não deu certo, tal a multiplicidade de fatores aleatórios ou colaterais. Se um só organismo humano já torna problemático, para a saúde, associar origens e resultados, o que dizer de milhões de organismos pensantes a agir simultaneamente, seguindo intenções tanto individuais quanto coletivas?

A verdade passou a ter um conteúdo essencialmente "democrático": é verdade o que a maioria (maioria de leigos, diga-se) entende que é.

Cientista desideologizado não é cientista. Experimento sem propaganda também não vai muito longe.

- "Ai de mim", disse-me certa vez um grande professor de direito, "participar de uma discussão sobre a minha disciplina em um programa de auditório transmitido pela televisão. A apresentadora acabaria comigo..."

Esse é um dos grandes paradoxos do nosso tempo. Tanto se falou de democracia, especialmente na comunidade acadêmica, que a "democracia" passou a ditar a verdade científica.

Teorias científicas, hoje, têm camisa colorida e bandeira. Pior: torcida contrária, com igual organização e indisfarçável empenho para desmoralizar a opositora.

O diálogo entre os doutos foi substituído pelo embate político. De que crédito desfrutam as publicações especializadas? A ciência, em si, importa muito menos do que a corrente de opinião que a sustenta.

Surgem até mesmo as "coligações científicas', concessões entre adeptos de pensamentos diferentes, para fazer valer uma tese que alguns deles apenas toleram, ante a expectativa de depois ser emplacada outra que venha apaziguar o ânimo de todos, prevenindo a eclosão do potencial conflito.

Profissionais do direito, que se deveriam ocupar de análise e de soluções para esse empobrecimento da ciência, acabam por se engajar de modo apaixonado em uma ou outra das correntes científico-partidárias.

É assustador verificar que, em grau crescente, criminalistas resistem em assumir a defesa de réus acusados de crimes abjetos para a comunidade que integram, pelo simples fato de haver acusação - ou, pior, julgamento popular ante a mera divulgação do fato.

A preocupação com o pensamento majoritário, que era antes própria das pessoas públicas, vai alcançando todas as ocupações técnicas, na linha do "politicamente correto". Tornamo-nos todos deputados. Aspiramos votos.

Recentemente, afirmou jovem criminalista, diante da discussão de um caso:

-"Se defender esse réu, perco 1/3 dos meus amigos. Entretanto reconheço que ele é inocente".

É natural que não alcancemos nós, cultores do direito, solução para os preconceitos. Atiramo-nos em perigosa cadeia de aprovação prévia de comportamentos segundo a sua popularidade. E se a ampla defesa já não existe entre os advogados, como subsistiria no âmbito do Judiciário? Perde consistência a crítica aos magistrados pelos julgamentos conduzidos pela a opinião pública.

Ciências humanas e biológicas, como quaisquer outras, precisam com urgência assumir o seu curso natural, com sensatez e imparcialidade. Algo há de ser feito, de modo muito particular, para combater o deletério mas poderoso crivo da popularidade.

Por dramático que possa parecer, é um imperativo para retomar a ciência, no momento em que a humanidade mais precisa dela.

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t*Hugo Gueiros Bernardes Filho é mestre em Direito pela Unb, integra a Comissão de Inteligência Artificial da OAB Federal. É advogado perante os tribunais superiores. Foi Subprocurador-Geral da República e Consultor da República.

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