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O incentivo oficial na utilização de medicamentos sem aprovação científica sujeita pacientes a riscos desnecessários e que podem gerar dificuldades e responsabilizações de toda ordem

A conjuntura fática atual permite concluir que os riscos são maiores do que os benefícios, o que não se deveria permitir quando tratamos de políticas públicas na área da saúde.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Atualizado às 11:02

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O Ministério da Saúde publicou, no dia 20 de maio de 2020, um protocolo estabelecendo diretrizes para a utilização da Cloroquina e Hidroxicloroquina no tratamento envolvendo a covid-19, em especial no estágio inicial da enfermidade (isto é, desde o seu primeiro dia de sintomas).

Respeitados eventuais entendimentos contrários, naturais no campo do direito (ciência não exata), e que devem ser encaradas com normalidade pelos leitores e destinatários, para este autor, profissional atuante nas áreas do Direito Público, Direito Sanitário e Direito Médico e Hospitalar, a cartilha não é positiva, de acordo com os argumentos que, respeitosamente, apresentarei a seguir.       

1. Inicialmente, é preciso destacar que o Ministério da Saúde, sob a batuta de um Ministro estreante, interino e sem formação científica compatível com o cargo de altíssima exigência técnica1 - ainda mais em tempos extraordinários de crise sanitária mundial, editou a medida sob forte e inegável influência política do Presidente da República (em melhores palavras, sob imposição narrada publicamente pelo líder máximo da nação).

2. Nessa perspectiva, não é preciso muito esforço para se concluir sobre a grande imprudência na adoção de uma expressiva política pública de saúde que não encontra respaldo em estudo científico significativo, muito menos na comunidade científica nacional e internacional.

"A ciência não se trata com política. Em verdade, no momento vigente, ela deveria conduzir a prática da política responsável, coordenada e unificadora. Enfim, conduzir à boa política de que tanto necessitamos desde o nosso descobrimento."

3. O populismo leviano, enraizado em nossa história, pode nos custar vidas e profissionais da saúde criminosamente desperdiçados pela política burra e assassina.

4. Em segundo lugar, ao menos desde março a Cloroquina e Hidroxicloroquina possuem "liberação" para serem ministradas no tratamento contra a covid-19, o que sempre se condicionou a critério médico seguro e livre esclarecimento e autorização dos pacientes ou responsáveis - como não poderia deixar de ser, posto que representam exigências legais.

5. O próprio Ministério da Saúde recomendou, com apoio da comunidade científica brasileira, os critérios técnicos de utilização (casos graves), informando, na mesma oportunidade, o fornecimento dos medicamentos aos Estados e Municípios.2

6. Em vista disso, a mudança de um protocolo técnico importante sem ampla discussão e apoio das sociedades médicas brasileiras é uma posição de risco altíssimo, e que, a depender de um cenário futuro e incerto, atrairá a possibilidade de responsabilização dos envolvidos no tratamento, assim como da União para o caso de uma eventual proliferação de eventos danosos ligados aos medicamentos e pacientes originariamente com sintomas leves (posto que o protocolo oficial foi elaborado ao arrepio das comunidade científica e com viés político).           

7. Em terceiro lugar, o protocolo federal induzirá parcela considerável da população a uma procura desnecessária e prejudicial às unidades de saúde já em situação precária, em prejuízo da saúde do paciente e de quem delas precisam sem a margem de dúvidas que a cartilha federal impõe.

8. A título de exemplo, com o natural alarde deste protocolo à população, muitas pessoas com sintomas leves, e que sequer podem ser de covid-19 (como uma dor abdominal e fadiga), buscarão atendimento presencial dispensável junto à uma Unidade de Saúde.

8.1  Muitas vezes movidos por paixões políticas que afetam descontroladamente a população (com inegável estímulo presidencial), esses pacientes exigirão a prescrição de um desses medicamentos que poderá prejudicar sua condição de saúde fora de um ambiente hospitalar (onde, então, o risco em muito superará o eventual benefício do remédio).

8.2  Na maioria dos casos, os médicos, muitas vezes solitários em unidades de saúde do interior e de rincões invisíveis ao Poder Público, e já sujeitos a enormes tensões na situação de calamidade generalizada, sofrerão uma pressão desmedida, injusta e prejudicial à atuação esperada.

8.3  Nesse cenário, caso se forneça o medicamento, muitos desses profissionais o farão sob forte receio de não só não ajudar o paciente, mas de talvez piorar a sua condição clínica, que, repita-se, era leve e muitas vezes exigiria que ele ficasse em casa sob, no máximo, orientação médica à distância.

8.4  E aí o profissional passará a conviver com o medo de ser responsabilizado por isso, abalando a saúde psicológica necessária ao atendimento correto de outros tantos pacientes sujeitos ao prejudicado SUS.

9. Por importante, não se desconhece que o protocolo exige que o paciente assine um "Termo de Ciência e Consentimento", cujos termos foram sugeridos em um modelo disponibilizado pela pasta federal da saúde.

10. Entretanto, sem prejuízo de ressalvas que eu já possuo com a redação dada pelo Ministério, quem atua com direito médico sabe bem que, a depender das condições em que este "Termo" é apresentado ao paciente - que não raras vezes é submetido a uma explicação deficitária e pouco cuidadosa pelo médico ou (irregularmente) por profissional de enfermagem, e que não raras vezes não possui capacidade de entendimento suficiente e necessária ao risco exposto no documento, ele se sujeitará a eventuais eventos adversos evitáveis, imerecidos e de extensão imprevisível, e com a justa possibilidade de responsabilização do Poder Público, instituição (se o caso) e do profissional de saúde.

11. Com efeito, tratam-se de cenários onde os riscos, previsíveis e objetos de estudos já finalizados, certamente superam os benefícios não comprovados pela ciência atualmente.

12. Ademais, inúmeras são as dificuldades no cumprimento deste protocolo do governo federal, a medida em que:

I. É extremamente difícil (para não dizer quase impossível) diagnosticar, com nível de certeza, a doença no seu 1º dia de sintoma leve, conforme exige o protocolo em análise.

Os exames exigidos não estão disponíveis para toda a população e os resultados sequer sairiam no mesmo dia.

II. O SUS não possui capacidade de realização de eletrocardiogramas regulares em todos os pacientes que estiverem em tratamento domiciliar com esses medicamentos. Isso porque, o protocolo dispõe sobre a (correta) recomendação de realização do referido exame no dia 1º, no 3º e no 5º dia do tratamento.

Ora, não precisa ser um conhecedor da saúde pública brasileira para concluir que, se antes da pandemia o SUS não dava conta dos pacientes internados, devendo ser responsabilizado por isso, quanto mais conseguirá fazer o acompanhamento regular de pacientes em casa.

III. O protocolo sugestiona prescrições em massa de medicamentos que, sob condições incertas de orientação, riscos e acompanhamento, podem contribuir para o aumento de pacientes com necessidades médicas e/ou internação em unidades de saúde, colaborando fortemente para o colapso do sistema de saúde já insuficiente (causando o efeito inverso do que fora idealizado pela pasta federal, portanto).

Conclusão 

13. Em razão de tudo isso, na contramão dos que entendem que o protocolo exclui responsabilidades éticas e jurídicas sobre o tema, penso que, em razão da infinidade de variáveis e realidades que cercam a demanda e suas recomendações, as medidas direcionadas aos pacientes com sintomas leves não mitigam a possibilidade de questionamentos e responsabilizações envolvendo a prescrição de medicamentos e tratamentos sem sustentação e apoio científico robusto. Ao revés, podem até aumentar.

14. Em verdade, a conjuntura fática atual permite concluir que os riscos são maiores do que os benefícios, o que não se deveria permitir quando tratamos de políticas públicas na área da saúde.

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1 Indo além, o próprio Ministro interino declarou, publicamente, ser leigo em questões técnicas da área da saúde.

2 Vide a nota informativa 5/20, publicada em 27.03.20.

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*Rafael Emannuel Vorburger Guerrero é advogado atuante na área do Direito Público, Sanitário e Médico. Integra o núcleo de pesquisa de Direito Sanitário da Universidade de São Paulo (USP), a comissão de Direito Sanitário da OAB/SP, a comissão da ética na saúde do IBDEE (Instituto Brasileiro de Ética Empresarial) e é advogado dativo do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP).

 

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