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Tribunais de contas não julgam pessoas?

Victor de Oliveira Meyer Nascimento

Considerações sobre a atuação dos tribunais de contas, ante a fundamentação do acórdão do STF que julgou o RE 636886.

terça-feira, 2 de junho de 2020

Atualizado às 09:00

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O julgamento do RE 636886 pelo Supremo Tribunal Federal, que assentou, em sede de repercussão geral, a prescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisões de tribunais de contas (tema 899), gerou algumas perplexidades para quem atua nesses tribunais.

A tese fixada suscita por si sérias indagações, notadamente sobre a incidência ou não de prescrição da pretensão de ressarcimento antes da decisão definitiva do tribunal de contas, bem como, nesse caso, sobre eventuais causas de interrupção ou suspensão.

Em que pese a relevância dessa discussão, este artigo trata de outras questões controversas que emergiram da referida decisão do STF, não diretamente relacionadas à prescrição, embora expressamente invocadas como razões de decidir.

A tese assentada em sede de repercussão geral fundamentou-se em premissas que podem ser assim resumidas:

1) a regra no ordenamento jurídico é a prescrição, sendo que a imprescritibilidade que se extrai da parte final do art. 37, § 5º, da Constituição Federal limita-se às pretensões de ressarcimento decorrentes da prática de atos dolosos de improbidade administrativa;

2) nos processos perante os tribunais de contas não se perquire dolo decorrente de improbidade administrativa, uma vez que tais tribunais não julgam pessoas, apenas realizam exame técnico das contas, no qual inexiste contraditório e ampla defesa plenos, não possibilitando ao imputado defender-se no sentido da ausência de dolo ou mesmo de culpa.

É da perplexidade gerada pelo segundo conjunto de premissas acima mencionado que trata este artigo, sobretudo pelo tom aparentemente reducionista a respeito da atuação dos tribunais de contas.

Para o relator, tribunais de contas não julgam pessoas, sendo que o termo "julgar" utilizado pela Constituição Federal ao definir a competência desses tribunais significaria "examinar e analisar as contas", atividade realizada no âmbito de procedimento administrativo que não permitiria contraditório e ampla defesa efetivos, e no qual não se perquiriria culpa nem dolo atinentes a atos de improbidade administrativa, até pela impossibilidade de o fiscalizado defender-se, com todas as garantias do processo judicial, no sentido de eximir-se de culpa ou dolo.

Vistas por determinado ângulo, tais razões possuem alguma pertinência, conforme trataremos adiante. Antes, porém, convém alertar que é preciso cautela na assimilação deste julgado, para se evitar que venham a prevalecer concepções equivocadamente reducionistas a respeito da atividade de controle externo, como a de que não seria cabível discutir culpa nos julgamentos dos tribunais de contas.

Consta da ementa do aludido acórdão o muito difundido chavão tribunal de contas não julga pessoas, que costuma ser usado para distinguir os julgamentos dos tribunais de contas dos julgamentos dos órgãos do judiciário, sugerindo que o julgamento de contas se resume a exames basicamente objetivos e automatizáveis, nos quais não haveria mesmo espaço para aferição de culpa ou dolo, como operações contábeis/aritméticas, análises de balanços e de relatórios.

Ocorre que "contas" são nada menos que elementos mediante os quais se busca demonstrar e/ou aferir a regularidade dos atos praticados na gestão de recursos públicos, sob critérios de legalidade, legitimidade e economicidade. Assim, ao julgar "contas", o que o tribunal de contas essencialmente julga é a regularidade ou não de condutas (atos de gestão) praticadas por pessoas no trato com a coisa pública, como, por exemplo, contratações de bens ou serviços, realização de despesas com pessoal, concessão de benefícios fiscais, movimentações financeiras, dentre outros. Ainda que eventualmente o julgamento compreenda o exame de balanços, relatórios ou outros demonstrativos, e ainda que parte da análise possa eventualmente ser automatizada, o juízo efetivamente recai sobre a regularidade ou não de condutas, evidentemente praticadas por pessoas.  

De forma semelhante, ao julgar ação de improbidade ou ação penal, o que o órgão jurisdicional efetivamente julga são condutas praticadas por pessoas. A procedência ou improcedência dos pedidos manifesta juízo a respeito da ocorrência e autoria de determinada conduta caracterizada como ato de improbidade ou como elemento do fato típico penal. Não cabe ao juiz decidir se determinada pessoa é desonesta, e sim se restou comprovada a prática por ela de ato ímprobo ou delituoso. No estado democrático de direito, pessoas não devem ser julgadas pelo que são, mas pelos seus atos1.

Assim, conquanto haja diferenças entre a atividade judicante dos tribunais de contas e a atividade jurisdicional, tal desigualdade não se exprime na máxima de que aqueles tribunais não julgam pessoas, pois o centro do julgamento em ambos os casos são condutas praticadas por pessoas.

Esse aspecto é facilmente perceptível na Lei Orgânica do TCU (lei 8.443/1992). Em seu art. 16, inciso III, consta que a as contas serão julgadas irregulares quando houver comprovada:

a) omissão no dever de prestar contas;

b) prática de ato de gestão ilegal, ilegítimo, antieconômico, ou infração a normas legais ou regulamentares;

c) dano ao Erário decorrente de ato de gestão ilegítimo ao antieconômico;

d) desfalque ou desvio de dinheiros, bens ou valores públicos;

e) reincidência no descumprimento de determinação.

Observa-se que todas as hipóteses que ensejam o julgamento pela irregularidade das contas consistem em condutas, omissivas ou comissivas, praticadas por pessoas. Dito isso, importa analisar se esse julgamento das contas, quando implicar responsabilização, poderia prescindir da aferição de culpa.

Afirmar que o tribunal de contas não afere culpa ou dolo implica dizer que a responsabilidade do gestor no âmbito do controle externo é objetiva. Afinal, responsabilidade objetiva, por definição, é aquela imputável independentemente da existência de culpa em sentido amplo. Como observa Caio Mário, a noção genérica de culpa "é o elemento distintivo em relação à teoria objetiva"2.

Nesse caso, estaríamos diante de uma questionável hipótese de responsabilidade objetiva, pois em desacordo com o art. 927, parágrafo único, do Código Civil, haja vista a ausência de previsão em lei (ao menos no caso do TCU) e sem que se possa argumentar que o dano decorre de risco criado para terceiros pela atividade exercida, pois a vítima (no caso, o ente público) não é um terceiro, mas o próprio titular da atividade:

Código Civil. Art. 927, p. único. "Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem". (grifamos)

Em verdade, é importante esclarecer que a responsabilização perante os tribunais de contas prescinde da caracterização de dolo3, mas não prescinde da existência de culpa em sentido estrito.

Com efeito, no âmbito do próprio TCU é pacífico o entendimento de que a responsabilidade apurada em seus processos é subjetiva, requerendo-se ao menos conduta culposa como pressuposto para condenação ou aplicação de penalidades4.

Ademais, para além da ausência de previsão legal, considerar que a responsabilidade perante os tribunais de contas é objetiva vai em sentido contrário ao da alteração promovida na Lindb pela lei 13.655/2018, que, ao inserir o art. 28, restringiu a responsabilização de agentes públicos aos casos de dolo ou erro grosseiro. Buscou a referida lei elevar o padrão das análises de responsabilização por ato decisório ou opinião técnica, requerendo não apenas culpa, mas culpa qualificada5, com intuito de conferir maior segurança para a tomada de decisões e, assim, evitar possível quadro de inação generalizada dos administradores públicos por temor de responsabilização, apelidado de "apagão das canetas".

É verdade que em certos casos apreciados pelos tribunais de contas não se requer explícita aferição de culpa, quando essa possa ser presumida a partir da própria conduta flagrantemente contrária a norma jurídica (culpa contra a legalidade), a exemplo da omissão no dever de prestar contas, conduta que originou a controvérsia apreciada no RE 636886.

Não há, nessa hipótese, responsabilidade objetiva, mas presunção relativa de culpa, sendo que, em tese, o imputado pode afastar tal presunção. Tampouco se trata de peculiaridade dos tribunais de contas, pois a tese da culpa contra a legalidade é tratada há muito tempo na doutrina da responsabilidade civil6 e é aplicada também por órgãos jurisdicionais7.

Há, por outro lado, casos mais complexos, mas não menos recorrentes, em que a discussão sobre culpa é inevitável, sobretudo quando a conduta em si não é ilícita, mas o resultado a ela associado pode ensejar responsabilização.

Tome-se, como exemplo, a situação em que o gestor assina contrato administrativo para realização de obra pública e autoriza os pagamentos decorrentes da respectiva execução contratual, materializando a ocorrência de dano ao erário por superfaturamento, uma vez que o valor do contrato continha sobrepreço. Se o orçamento estimativo com sobrepreço foi elaborado por outro agente - situação frequente, diga-se de passagem, pois a orçamentação de obra requer conhecimento especializado -, a responsabilização do gestor que assinou o contrato e autorizou os pagamentos demanda avaliação sobre a previsibilidade do resultado e se houve ou não dever de cuidado por ele descumprido, pois, embora haja nexo causal entre sua atuação e o resultado danoso (segundo o critério da eliminação hipotética), as condutas em questão (assinar contrato e autorizar pagamentos) não se caracterizam por si como ato ilícito. Será preciso verificar se a falha do orçamentista era conhecida ou, no mínimo, perceptível para o gestor, ou se este negligenciou a adoção de alguma cautela que lhe era exigível e que possuísse liame com o resultado, sem o que não deverá ser responsabilizado pelo dano, por ausência de conduta culposa ou dolosa.

O relator do RE 636886 também observou que não há, no processo dos tribunais de contas, ampla defesa e contraditórios efetivos. Assim, ainda que os ilícitos submetidos à apreciação desses tribunais eventualmente se caracterizem também como ato de improbidade, não haveria possibilidade de o fiscalizado se defender, "com todas as garantias do devido processo judicial, no sentido de eximir-se de dolo ou mesmo culpa".

De fato, conquanto haja oportunidade para o exercício do contraditório e do direito de defesa no processo de controle externo, os meios de defesa são em tese mais restritos que no processo judicial.

No processo de controle externo, pelo menos no âmbito do TCU, o direito de defesa consiste na possibilidade de apresentação de manifestação escrita e juntada de documentos obtidos pelo próprio interessado. Não há direito a produção de prova testemunhal, pericial, exibição de documentos ou inspeção a requerimento da parte. O TCU, inclusive, não costuma ser sensível a alegações de ex-gestores quanto a dificuldades de acesso a repartições públicas para obtenção da documentação necessária à comprovação de suas versões.8

Essa característica do processo de controle externo realmente pode proporcionar direito de defesa menos efetivo que no processo judicial, a depender do caso concreto. E, deve-se admitir, não parece desarrazoado que tal distinção seja considerada como fundamento para que se afaste do controle externo a hipótese de imprescritibilidade da pretensão de ressarcimento já reconhecida pelo STF para o âmbito do processo judicial, pois eventual dificuldade decorrente de limitação probatória tende a se agravar com o decurso do tempo.

Por outro lado, é preciso sopesar que o TCU muitas vezes flexibiliza regras processuais a favor da defesa, com fundamento na busca da verdade material, a exemplo do recebimento e análise de defesas intempestivas ou conhecimento de recursos que não seriam cabíveis, de maneira que apenas no caso concreto pode-se avaliar se o processo nos tribunais de contas é ou não menos benéfico à defesa em relação ao processo judicial9.

De qualquer maneira, o reconhecimento da relativa limitação ao direito de defesa não torna objetiva a responsabilidade perante os tribunais de contas, até porque interpretar nesse sentido a fundamentação do acórdão que julgou o RE 636886, paradoxalmente, destoaria da própria essência do referido precedente, que, em última análise, buscou prestigiar a segurança jurídica e o próprio direito de defesa. Com efeito, o abandono da posição de que a responsabilidade perante o controle externo é subjetiva - posição essa até então consolidada no próprio TCU - seria prejudicial sobretudo para a defesa, que não mais teria a possibilidade de alegar ausência de culpa.

Assim, para compatibilizar a fundamentação do acórdão proferido no âmbito do RE 636886 com a natureza subjetiva da responsabilidade perante os tribunais de contas, deve-se depreender daquela decisão que, para o STF, esses tribunais não aferem culpa ou dolo para fins de caracterização de atos de improbidade. Essa associação consta de forma explícita no voto do relator, a exemplo seguinte excerto (grifamos):

[...] o TCU não perquire nem culpa, nem dolo decorrentes de ato de improbidade administrativa, mas, simplesmente realiza o julgamento das contas à partir da reunião dos elementos objeto da fiscalização e apurada a ocorrência de irregularidade de que resulte dano ao erário, proferindo o acórdão em que se imputa o débito ao responsável, para fins de se obter o respectivo ressarcimento. Ainda que franqueada a oportunidade de manifestação da outra parte, trata-se de atividade eminentemente administrativa, sem as garantias do devido processo legal.

De fato, a lei 8.429/1992 não atribui função de julgar os atos nela previstos aos tribunais de contas, cujas competências estão discriminadas no art. 71 da Constituição Federal e nas respectivas leis orgânicas. Ainda que condutas sujeitas à responsabilização perante o TCU coincidam com atos de improbidade administrativa - a exemplo da omissão no dever de prestar contas (art. 16, III, "a", da lei 8.443/1992 e art. 11,VI, da lei 8.429/1992) -, não é atribuição da corte de contas caracterizá-las como tal.

Enfim, de tudo que foi exposto, é possível extrair as seguintes conclusões, de forma resumida: 1) o chavão de que tribunais de contas não julgam pessoas é vazio de sentido, pois não expressa apropriadamente a distinção entre as decisões daqueles tribunais e as decisões judiciais; 2) a responsabilização perante os tribunais de contas é subjetiva, não prescindindo da aferição de culpa em sentido estrito; 3) o direito de defesa no processo de controle externo em tese não é tão amplo quanto nos processos penais ou de improbidade administrativa, o que não descaracteriza a natureza subjetiva da responsabilidade, sob pena de dificultar ainda mais o exercício do próprio direito de defesa; 4) a fundamentação adotada pelo STF para fixar a tese da prescritibilidade da pretensão de ressarcimento baseada em decisão de tribunal de contas (RE 636886) deve ser compreendida no sentido de que, no processo de controle externo, não se afere culpa ou dolo para fins de caracterização de ato de improbidade administrativa, o que não afasta a necessidade de aferição de culpa para condenação em débito ou aplicação das sanções de competência desses tribunais.   

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1 Ainda que se apontem possíveis reminiscências do direito penal do autor na legislação, notadamente no que se refere à individualização da pena.

2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. 12 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

3 Embora eventualmente a caracterização de dolo se verifique no âmbito do controle externo, sobretudo nos casos em que se comprova ocorrência de fraude, o que pode repercutir na espécie e dosimetria das sanções aplicáveis.

4 Acórdãos 2006/2006, 1530/2008, 479/2010, 2781/2016, todos do plenário.

6 da SILVA, Wilson Melo. A culpa contra a legalidade, a culpa comum e a responsabilidade civil automibilística nos transportes de passageiros. Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Belo Horizonte, n. 13, p. 7-26, outubro/1973.

7 REsp 1.749.954/RO, STJ, 3ªTurma, Rel. Marco Bellizze, DJe. 15/3/2019.

8 Conforme se observa nos seguintes enunciados disponíveis no sistema "Jurisprudência Selecionada", acessível pelo portal do TCU (acesso em 27/5/2020):

Não cabe ao TCU determinar, a pedido do responsável, a realização de diligência, perícia ou inspeção para a obtenção de provas, uma vez que constitui obrigação da parte apresentar os elementos que entender necessários para a sua defesa. (Acórdãos 3343/2019-Primeira Câmara e 5.920/2016-2ª Câmara)

Eventuais dificuldades do gestor na obtenção dos documentos necessários à prestação de contas dos recursos geridos, inclusive as derivadas de ordem política, se não resolvidas administrativamente, devem ser por ele levadas ao conhecimento do Poder Judiciário por meio de ação própria, uma vez que a responsabilidade pela comprovação da boa e regular aplicação dos recursos públicos é pessoal. (Acórdãos 1.838/2019-Primeira Câmara e 437/2018-Segunda Câmara)

9 Acórdãos 324/2007, 1.643/2010, 3328/2015 e 259/2016, todos do plenário.

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*Victor de Oliveira Meyer Nascimento é conselheiro-substituto do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Foi auditor de controle externo do TCU entre 2004 e 2018.

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