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A retroatividade da nova regra de desempate no CARF

Bruno de Abreu Faria e Rafael Alves dos Santos

A nova lei deve retroagir para extinguir créditos tributários que foram constituídos pelo voto de qualidade.

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Atualizado em 5 de junho de 2020 11:38

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Em 14.04.20, foi publicada a lei 13.988, que, dentre outras novidades, (I) extinguiu o voto de qualidade previsto no § 9º do art. 25 do decreto 70.235/72 e (II) passou a prever que, em caso de empate havido em julgamento de processo administrativo tributário no âmbito do CARF, a controvérsia se resolverá em favor do contribuinte.

Deixaremos de entrar aqui no campo de politização do tema, que já conta com generalizações desacompanhadas de qualquer marcador científico, as quais parecem sugerir que o monopólio da virtude seria posse dos Conselheiros Representantes Fazendários, ao mesmo tempo em que todos os contribuintes litigantes no CARF seriam perigosos sonegadores. Basta dizer, quanto a tal ponto, que a reação a esse tipo de colocação deve ser a de contundente repúdio.

Feito esse breve alerta, o objetivo do presente estudo é avaliar se a nova regra de desempate em julgamentos administrativos federais deve retroagir para alcançar créditos tributários que foram mantidos no CARF pelo famigerado voto de qualidade.

Sabemos todos que, como regra geral, a lei tributária aplica-se apenas aos fatos geradores pendentes e futuros, não alcançando aqueles que já tenham se materializado no tempo, conforme dispõe o art. 105 do Código Tributário Nacional (CTN).

Entretanto, como toda regra é confirmada por uma exceção, o art. 106 do CTN elenca as hipóteses nas quais a norma deve retroagir, merecendo destaque, vis-à-vis o objeto deste artigo, os comandos tratados no inciso II, alíneas "a" e "b":

"Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito:

(...)

II - tratando-se de ato não definitivamente julgado:

a)   quando deixe de defini-lo como infração;

b) quando deixe de tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo;" (grifou-se)

A questão que se coloca, então, é saber se os requisitos de aplicabilidade acima se fazem presentes em se tratando de um julgamento já encerrado no CARF pela via do voto de qualidade.

De início, é importante destacar que muitos são os precedentes do STJ1 e manifestações da própria RFB2 que afirmam que a expressão "ato não definitivamente julgado" alcança não apenas o âmbito administrativo, mas também o judicial, inclusive em obediência ao princípio da inafastabilidade de jurisdição, de modo que, para fins de imposição de regra retroativa mais benéfica, pouco importa que o crédito tributário já tenha sido objeto de decisão final administrativa.

Aliás, a bem da verdade, ainda segundo a Corte Superior de Justiça3, a norma posta pelo art. 106, II, do CTN deve ser aplicada sem qualquer embaraço desde que, ao tempo da entrada em vigor da regra benigna, ainda não tenham sido ultimados os atos destinados à satisfação da pretensão executória (arrematação, adjudicação ou remição) ou extinto o crédito tributário na forma do art. 156 do mesmo Diploma.

Superado o primeiro obstáculo, cremos que a nova previsão legal de solução de desempate de julgamentos no âmbito do CARF é inegavelmente capaz de deixar de definir determinado ato como infração à legislação tributária ou como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão.

E assim dizemos, pois, longe de se tratar de uma simples norma de natureza processual, o voto de qualidade acabava exercendo a inquestionável função finalística de ser a palavra determinante de confirmação quanto à ocorrência ou não de determinada infração tributária.

Noutras palavras, o voto de qualidade encarnava uma norma de "direito processual material"4, pois, para além de regular o simples ritual de votação numa dada sessão de julgamento, possuía reflexo direto e imediato no direito substantivo submetido ao crivo do CARF.

Logo, se é verdade que uma determinada conduta fiscal outrora tida como contrária à legislação fiscal agora passa, em razão da simples supressão do voto de qualidade e da instituição da nova regra de desempate em favor do contribuinte, a ser tida como legítima, cremos que a lei 13.988/20 atrai a aplicação da retroatividade benigna de que trata o art. 106, II, "a" e "b", do CTN.

E essa conclusão, não apenas jurídica, perpassa por uma simples questão de bom senso.

Imagine-se um cenário no qual um determinado contribuinte é autuado por cometimento da infração "X" e, ao fim do contencioso administrativo, ocorrido em 13.04.20 (dia anterior à entrada em vigor da lei 13.988/20), vê o crédito tributário confirmado pelo voto de qualidade.

Por outro lado, esse mesmo contribuinte é autuado em razão da ocorrência da mesma infração "X", relativamente a outros períodos de apuração, mas, por ter seu julgamento ocorrido após 14.04.20, tem o respectivo crédito tributário exonerado em razão de empate havido quando do julgamento de sua defesa.

Ora, se todo o componente fático foi o mesmo, não é da mais latente evidência que o que definiu a existência de infração no primeiro caso e a inexistência no segundo foi apenas e tão somente o fato de que agora o empate deve beneficiar o contribuinte?

Agora imagine essa mesma situação considerando contribuintes distintos. Haveria inequívoco problema concorrencial, pois, enquanto um contribuinte foi condenado por cometer determinado ato, outro foi absolvido ao praticar a mesmíssima conduta.

Nessa mesma linha foi a manifestação do procurador Geral da República, Augusto Aras, ao subscrever o ofício 57/2020/ASSEP/PGR, enviado à presidência da República com pedido de veto à norma recentemente publicada:

"Isso porque a sua sanção pode dar azo à aplicação retroativa do art. 19-E da Lei n.º 10.522/2002, com fundamento no art. 5º, XL, da Constituição Federal de 1988, bem como no art. 2º, parágrafo único, do Código Penal, desconstituindo inúmeros créditos tributários definitivamente constituídos a partir de julgamentos do CARF em que, verificado o empate, houve o voto de qualidade por parte dos Presidente das Turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais, das câmaras, das suas turmas e das turmas especiais, conselheiros representantes da Fazenda Nacional, e provocando, por consequência, o trancamento de várias e importantes ações penais em curso.

(...)

Em tais casos, alegar-se-á que, tratando-se de lei que repercute na esfera penal de forma mais benéfica, deve ser aplicada retroativamente, comprometendo-se importantes investigações e processos em curso, impedindo-se que tantas outras se iniciem a partir das representações encaminhadas pelas RFB.

Por fim, do ponto de vista tributário, a aplicação retroativa do art. 19-E da Lei n.º 10.522/2002 poderá embasar inúmeros pedidos de restituição dos tributos e/ou valores acessórios recolhidos, em prejuízo ao erário." (grifou-se)

Embora exista quem se posicione no sentido de que o art. 106, II, do CTN se aplica exclusivamente às multas, nos parece que essa restrição se encontra somente na alínea "c". As alíneas "a" e "b" preveem que a lei se aplica retroativamente quando deixe de definir determinado ato como infração ou quando esse ato deixe de ser tratado como contrário a exigência de ação ou omissão.

Em relação especificamente à alínea "a", a palavra "infração" em nada altera esse entendimento. Por óbvio, o auto de infração somente é lavrado porque o contribuinte cometeu uma infração fiscal. Se não há infração à norma tributária, significa que o contribuinte agiu dentro da lei, não havendo que se falar em cobrança suplementar de tributo.

Como leciona o professor Paulo de Barros Carvalho5, "toda a exigência de ação ou de omissão consubstancia um dever, e todo o descumprimento de dever é uma infração".

Pelos motivos acima expostos, somos da opinião que a lei 13.988/20 deve retroagir para extinguir créditos tributários que foram constituídos no CARF pelo voto de qualidade.

_________

1 Nesse sentido: RESP 295.762/RS, EDcl no RESP 332.468/SP, RESP 200.781/RS e REsp 488326/RS.

2 SCI COSIT nº 14/2012: "O inciso II do art. 106 do CTN refere­se a qualquer ato ou procedimento que o contribuinte tenha contestado ­ ou que seja passível de contestação ­ perante o Judiciário, e que não esteja definitivamente julgado. Assim, em relação a um crédito não extinto na RFB, ainda que esgotadas as instâncias administrativas, seu lançamento é considerado não definitivamente julgado para efeito de aplicação da retroatividade benigna."

3 Nesse sentido: REsp 852647/RS e REsp 488326/RS.

4 Vide acórdão proferido pela Corte Especial do STJ nos autos do EAREsp nº 1.255.986.

5 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

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*Bruno de Abreu Faria é sócio do escritório Abreu, Goulart, Santos & Freitas Advogados. MBA em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas. Advogado no Rio de Janeiro e em São Paulo.

*Rafael Alves dos Santos é advogado e contador. Sócio do escritório Abreu, Goulart, Santos & Freitas Advogados. Coordenador e professor do Curso Avançado de Jurisprudência Tributária (PJT). Membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF).

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