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Mecanismos constitucionais de superação de crises - Quem tem medo do art. 142 da Constituição?

Amauri Feres Saad

O povo é a fonte do poder que a constituição disciplina e não se pode admitir que um dos poderes possa atuar fora dos limites que lhe são traçados.

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Atualizado em 9 de junho de 2020 09:43

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A interpretação a ser dada ao art. 142 da Constituição1 tem gerado intenso debate nas últimas semanas. Tal debate não foi motivado por disputas doutrinárias ou de escolas acadêmicas, algo que muito raramente ganha notoriedade pública, mas, ao contrário, por um problema político real: o escancarado desrespeito, por parte do Supremo Tribunal Federal e de outras autoridades, a prerrogativas do poder executivo e a direitos individuais. Não é o caso aqui de retomar em detalhe cada uma das graves violações STF à Constituição, algumas já comentadas por mim em artigos anteriores2, aos quais remeto o leitor3.

Considerando tal cenário, e atento ao que já se discutia na sociedade, Ives Gandra da Silva Martins, jurista sem aspas, passou a expor, em artigos e entrevistas, o seu entendimento de que as forças armadas poderiam, com base no art. 142, intervir para reconduzir o STF ao papel que lhe cabe sob a vigente constituição, impedindo assim as arbitrariedades que vêm sendo cometidas por aquela corte, inclusive contra os direitos humanos4.

Em resposta a tal posicionamento ergueu-se uma ampla reação - e por "ampla" designo mais um aspecto quantitativo que qualitativo: a simples menção a uma intervenção militar, ainda que seja aquela prevista pela própria Constituição, excitou mais a bile do que o intelecto dos seus adversários, e estes são legião. Sobreveio uma enxurrada de artigos5, entrevistas e notas de repúdio6, condenando, explícita ou implicitamente, o posicionamento de Gandra como uma heresia, uma loucura, um atentado à constituição e à democracia.

Em dois de junho o Conselho Federal da OAB emitiu um parecer, assinado por seu presidente e pelos advogados Marcus Vinicius Furtado Coelho e Gustavo Binenbojm, para marcar um contraponto à posição de Gandra. O documento, que pretende cristalizar o entendimento da classe dos advogados, estrutura-se sob os seguintes argumentos: (i) o poder moderador deixou de existir no Brasil com a proclamação da república, donde decorreria a inadequação de pretender que às Forças Armadas coubesse tal papel sob a Constituição de 1988; (ii) a ideia de supremacia da constituição, inerente ao atual regime, repeliria a ideia de um poder moderador, que seria um poder extraconstitucional (ou seja, arbitrário); (iii) os mecanismos de freios e contrapesos previstos pela Constituição de 1988 seriam suficientes para equacionar eventuais conflitos entre os poderes, e a previsão da intervenção das forças armadas representaria uma interferência externa (e por isso inconstitucional) nesse equilíbrio; (iv) a função de "garantia da lei e da ordem", constante do art. 142 e regulada pela LC 97/1999, teria hipóteses restritíssimas de utilização, apenas para "graves situações de perturbação da ordem" (fls. 12).    

O primeiro aspecto a ser levado em conta na compreensão da intervenção prevista pelo art. 142 é a sua natureza de mecanismo constitucional de superação de crises.

As constituições, com as muitas ressalvas que as teorias contratualistas merecem, assemelham-se a contratos. Explicitam as obrigações e direitos de cada uma das partes contratantes, delimitam os campos da legalidade, da licitude e da ilicitude, e vinculam os sucessores dos contratantes (no caso das constituições, as gerações futuras). Como todos os contratos, pressupõem que os mecanismos previstos irão funcionar como imaginados, mas também, em muitos casos, se preparam para o pior: disciplinam a própria crise. Se tais mecanismos forem apropriados às circunstâncias das partes contratantes, a constituição se mantém. Se forem inadequados, os fatos vencem: a ordem constitucional acaba inevitavelmente sendo substituída por uma nova; rescinde-se o contrato anterior e assina-se outro7.

A experiência constitucional internacional é pródiga em mecanismos de solução de crise, e eles variam conforme a natureza do problema a ser enfrentado. Para problemas sociais, de instabilidade interna ou agressão externa, em que seja necessário suspender temporariamente direitos individuais a bem do interesse público, preveem-se normalmente os instrumentos excepcionais de restrição de direitos individuais: a decretação dos estados de sítio, defesa ou emergência, são só alguns exemplos. Para problemas político-institucionais, os mecanismos mais comuns são a dissolução do parlamento (seguida da convocação de novas eleições) e o impedimento de agentes políticos (normalmente o chefe do executivo) e juízes.

Como as tradições jurídicas e a criatividade constitucional variam de país para país, nada impede que outros mecanismos, fora dos moldes mencionados, possam ser previstos. Na constituição do Canadá um mecanismo "heterodoxo" de solução de crises é a chamada "notwithstanding clause", que permite que as legislaturas federal e provinciais editem legislação contrária à constituição, por um período de cinco anos, renovável por mais cinco (seção 33 da Carta de 1982). Isto significa excluir da apreciação do judiciário (incluindo a corte suprema) matérias relevantíssimas. Caso invoque a notwithstanding clause, o parlamento responsável só terá o ônus político de sustentar perante a opinião pública que está contrariando a constituição. Todavia, contra ele nenhuma medida judicial poderá ser aplicada. Apenas para que se tenha ideia da excepcionalidade de tal instrumento, ele nunca foi empregado pelo governo federal, e pouquíssimas vezes pelas províncias. Perto da notwithstanding clause canadense, o art. 142 é um brinquedo de criança, e nem por isso alguém terá a coragem de sustentar que aquele país passará por um regime de exceção sempre que o mecanismo for (como tem sido) utilizado.  

Analisemos agora os argumentos levantados pela OAB em seu parecer. Quanto ao primeiro e segundo argumentos, a ideia de que o poder moderador seria um poder externo e incondicionado, capaz de se sobrepor e anular os demais poderes, é falsa. Quem se der o trabalho de analisar a redação da Constituição de 1824 e de pesquisar o seu funcionamento prático no período monárquico verá que o que caracterizava o poder moderador era a concentração, na figura do monarca, dos mecanismos de superação de crises (p. ex., dissolução do parlamento, suspensão de juízes processados criminalmente, perdão ou comutação de penas, e anistia) e de alguns poderes que normalmente são do chefe de Estado (p. ex., a nomeação de senadores8 e suspensão de leis provinciais9). Dito de outro modo, o poder moderador não era um poder exterior à constituição e superior aos demais poderes: ele era, por definição, um poder constitucional. Tanto isto é assim que não há notícia de abuso do poder moderador por parte dos nossos dois imperadores; quando se produziu uma crise mais grave, opondo o imperador e a constituição, esta é que prevaleceu (falo naturalmente da abdicação de D. Pedro I). Mas há um fundo de razão em sustentar que o poder moderador não sobreviveu à Constituição de 1824: nenhum dos regimes subsequentes reproduziu os mecanismos de superação de crises que estavam enfeixados no poder moderador, e este não se confunde com a atuação das forças armadas sob o art. 142 da atual Constituição.

O terceiro dos argumentos contidos no parecer da OAB, de que os mecanismos de "freios e contrapesos" da Constituição de 1988 seriam suficientes para tratar de eventuais crises, envolve pelo menos dois grandes equívocos. O primeiro é o de querer transportar para o debate constitucional brasileiro o termo "freios e contrapesos", com a mesma carga semântica que este possui no debate norte-americano. A experiência constitucional dos EUA é tão rica e bem-sucedida que é impossível compará-la com qualquer outra. A Constituição americana tem uma importância transcendente naquele país: é parte (talvez a mais importante) da identidade nacional, sendo objeto de uma veneração popular que não possui paralelo em qualquer outra nação. Por que digo isto? Porque o arranjo institucional que se aplica naquela ordem constitucional não é o mesmo que o do Brasil: simplesmente invocar o termo "freios e contrapesos" para transferir ao Brasil o mesmo significado e os mesmos resultados institucionais que se verificam nos EUA é obscurecer a verdade. O segundo equívoco é ainda mais sério: invocar uma ideia abstrata de "freios e contrapesos" para sustentar que as forças armadas seriam um elemento estranho e disruptivo de um equilíbrio estabelecido na Constituição de 1988 é ignorar que o art. 142 é tão constitucional quanto os demais. A intervenção das forças armadas para garantia dos poderes constitucionais é ela própria um ingrediente dos freios e contrapesos constitucionalmente previstos. Dito de outra forma: o equilíbrio entre poderes na atual constituição leva em consideração necessariamente o conteúdo do art. 142 e não pode ser compreendido sem ele.

Nessa ordem de ideias, é também um erro supor que, ao se reconhecer a força normativa do art. 142, haveria um desequilíbrio em favor do executivo. O presidente da república é, de fato, o chefe supremo das forças armadas, e de sua anuência depende a atuação destas para a garantia dos demais poderes. Mas isto não elimina o fato de que a proteção prevista no art. 142 está disponível a todos os poderes, sem distinção. Podem invocá-la tanto o legislativo quanto o judiciário. E se injustificadamente o presidente da república se recusar a dar o seu assentimento, cometerá crime de responsabilidade, podendo vir a sofrer impedimento. Quando se analisa a dinâmica do seu funcionamento, resta inevitável a conclusão de que a intervenção das forças armadas prevista no art. 142 faz parte do equilíbrio institucional desejado pelo constituinte de 1988.

O quarto argumento é o de que, à luz da LC 97/1999, que regulamenta o art. 142, a intervenção militar se limitaria às hipóteses de segurança pública e somente quando ineficazes as forças locais de segurança (art. 15, §§ 2º a 7º). Isto significa interpretar a Constituição a partir da lei, o que é um erro. Mas há aí também o equívoco, que de tão primário só pode ser proposital, de identificar a intervenção militar em caso de impasse entre poderes como uma manifestação da competência das forças armadas para garantir a "lei e a ordem". Isto é evidentemente errado: o art. 142 assinala três núcleos de competências para a forças armadas: a defesa da pátria, a garantia dos poderes constitucionais e a garantia da lei e da ordem. O núcleo de atribuições que autorizaria a intervenção militar em caso de invasão inconstitucional de um poder sobre outro é o segundo, de garantia dos poderes constitucionais, e a hipótese evidente do seu cabimento é a ocorrência de uma invasão de um poder por outro(s). Tanto isto é assim que a própria LC 97/1999, no parágrafo 1º do art. 15 prevê genericamente que "[c]ompete ao Presidente da República a decisão do emprego das Forças Armadas, por iniciativa própria ou em atendimento a pedido manifestado por qualquer dos poderes constitucionais, por intermédio dos Presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados".  É este o dispositivo que se aplica para uma intervenção para proteção dos poderes constitucionais, e não os demais parágrafos do art. 15 da lei, que fazem referência, por sua própria redação, à hipótese de garantia da lei e da ordem.

Por último, um pouco de história constitucional. Num longínquo 5 de maio de 1987 a subcomissão da Constituinte que tratava do capítulo das forças armadas na nova constituição recebeu dois generais, Euler Bentes Monteiro e Andrada Serpa, que palestrariam sobre o tema do papel das forças armadas na democracia10. O que importa para nós das discussões ali havidas é o seguinte: os constituintes tinham consciência do papel histórico das forças armadas na garantia da estabilidade das instituições, sobretudo após o advento da república, e com base em tal consciência o que se procurava era garantir que a sua participação no regime a ser instituído pela nova constituição fosse sempre subordinado aos poderes civis11. Constitucionalizar a participação das forças armadas foi a maneira encontrada para evitar que rupturas constitucionais ocorressem por iniciativa dos militares: somente assim se poderia evitar um novo regime militar como o que vigorou entre 1964 e 1985. O conteúdo deste rico debate está disponível para quem se der o trabalho de o consultar.   

Entre o originalismo e o textualismo, a OAB (e parte da classe jurídica que com ela concorda) preferiu enfiar a cabeça debaixo da terra para não ver nada. Não é esta a melhor solução. É muito mais importante, para a manutenção da atual ordem constitucional, analisar sem preconceitos o art. 142 e extrair dele o sentido que sirva para garantir o regime democrático, inclusive de forma a evitar interferências inconstitucionais de um poder sobre o outro - sobretudo quando tais eventos obstruam a realização da vontade popular. O povo é a fonte do poder que a constituição disciplina e não se pode admitir que um dos poderes possa atuar fora dos limites que lhe são traçados. O judiciário, assim como os demais poderes, não possui a prerrogativa de violar a constituição.    

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1 O art. 142 da Constituição de 1988 estabelece que as "Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem".

2 Ver os meus artigos: "'Um presidente da república está limitado pela ciência.' Mas que ciência?", publicado em 9.4.2020 no jornal Brasil Sem Medo; "O que fazer quando a Corte Suprema toma o poder?", publicado no jornal Brasil Sem Medo em 4.5.2020; e "O STF e a nomeação de ministros de Estado - rumo à juristocracia?", publicado no jornal Brasil Sem Medo em 5.5.2020.

3 O que de mais recente aconteceu, na mesma linha do já apontei, foi a determinação, pelo ministro Alexandre de Moraes, no bojo do inquérito 4781 (o chamado inquérito das "fake news"), de medidas de busca e apreensão e censura contra um grupo de indivíduos apenas porque estes emitiram opinião desfavorável a ministros ou à própria corte (igualmente, dois indivíduos que se manifestavam pacificamente na frente da residência do ministro Alexandre de Moraes estão presos até agora; seu crime único crime foi exercitar o direito que a constituição, no art. 5º, XVI, lhes outorga - ver). 

4 O professor Ives Gandra publicou o artigo "Harmonia e independência entre os poderes?" em 2.5.2020. Um novo artigo, aprofundando o tema, foi publicado pelo jurista em 28.5.2020.

5 O ministro do STF Ricardo Lewandowski publicou em 1º.06.2020 na Folha de SP o artigo "A garantia da lei e da ordem em crises de maior envergadura". Ver também: Thomaz Pereira e Diego Werneck Arguelhes, "Intervenção militar é golpe: é só ler a constituição" 2.6.2020; e Conrado Hubner Mendes e Rafael Mafei Rabelo Queiroz, "Não existe 'intervenção militar constitucional'", Folha de SP, 30.5.2018.       

6 O Instituto Brasileiro de Direito Administrativo - IBDA publicou em 2.6.2020 uma "Nota de Repúdio", afirmando: "A intimidação ao livre exercício da jurisdição pelo Poder Judiciário, especialmente tendo em conta as recentes agressões aos Ministros do Supremo Tribunal Federal - STF, merecem nossa severa reprimenda. Em nosso sistema constitucional, cabe ao STF o papel de guardião maior da Constituição e atacar seus integrantes é uma afronta à democracia e à ordem jurídica vigente. Igualmente merece nossa repulsa a defesa do fechamento do Congresso Nacional por pessoas e grupos descomprometidos com a democracia brasileira." (disponível aqui). Um dia antes, o Instituto dos Advogados de São Paulo - IASP conseguiu ir mais longe na alucinação: afirmou em nota que "Mostra-se inquietante tanto a realização de marcha com máscaras e tochas, entoando agressões ao Judiciário e ao Legislativo". O que o IASP omitiu-se de revelar foi onde é que ocorreram tais manifestações, dignas da Sturmabteilung nazista.   

7 O exemplo de sucesso no mundo do constitucionalismo é o dos EUA, cuja constituição, promulgada em 1787 (e com apenas 27 emendas) permanece válida até hoje, sendo um verdadeiro sinônimo da identidade nacional naquele país; o exemplo oposto, da instabilidade,  apesar de haver muitos outros, é o da França, que promulgou 16 constituições no período entre a revolução (1789) e 1958 - quase uma por década. O Brasil não é o melhor aluno da sala, nem o pior: está no meio do caminho, com 8 constituições (até o momento, note-se bem).

8 O Senado no Império era o equivalente da Câmara dos Lordes britânica, cuja composição é ainda hoje predominantemente definida por nomeação do monarca.

9 Esta é uma competência comum nos países de estrutura unitária, e não uma particularidade do regime imperial brasileiro.

10 Toda a discussão de hoje está naquela sessão, registrada em notas taquigráficas. Ver. Acesso em 6.6.2020.

11 Andrada Serpa defendeu, em sua palestra, que o "papel [das forças armadas] é um só, está na Constituição do Império. As Forças Armadas não são deliberantes, obedecem às autoridades legítimas. Sobretudo, é evidente, está dentro do contexto de que as Forças Armadas são encarregadas da segurança externa, e quando as instituições fracassam, também da segurança interna" (há um erro nas notas taquigráficas: as palavras "externa" e "interna" estão invertidas. Somente do modo como transcrevi o parágrafo é que o trecho se torna condizente com o resto da fala). O relator da comissão, Ricardo Fiuza, concordando com os palestrantes, afirmou que "não se pretende, de forma alguma, alijar as Forças Armadas, até por tradição de uma figura constitucional em defesa das instituições ou qualquer outro título que se deva dar, para evitar extrapolações de interpretação. O básico, o fundamental, de tudo o que se tem dito é que as Forças Armadas deverão estar, sempre e exclusivamente, ao poder civil e à vontade da lei e da ordem. (...) O ponto de vista majoritário é que as Forças Armadas têm um papel relevante na defesa interna, desde que não seja dada a elas a iniciativa nem o arbítrio, nem julgar quando, como e onde deve ser essa intervenção. Isto deve ficar absolutamente submetido ao poder civil" (todos esses trechos estão contidos na Ata da 12ª Reunião Ordinária da Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança, disponível no link acima referido).  

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*Amauri Feres Saad é doutor e mestre em direito pela PUC/SP. Mestre em direito pela Universidade de Toronto. Professor de direito e consultor jurídico. 

 

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