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Sobreestadia de container no cenário pandêmico e pós-pandêmico

Todo o modelo de negócio a partir de agora deve ser repensado considerando a pandemia, que já não é mais inesperada ou imprevisível.

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Atualizado às 11:50

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Cenário pandêmico ou não, é necessário, antes de tudo, tecer algumas pontuações iniciais. A primeira delas é no sentido de que a sobreestadia é considerada na jurisprudência uma indenização pré-fixada em favor do transportador pelos prejuízos experimentados em razão da não devolução do container dentro do free time.

No passado houve discussão sobre a natureza jurídica da sobreestadia, se seria indenização ou cláusula penal. Todavia, essa controvérsia restou completamente superada e atualmente é pacífico na jurisprudência que se trata de indenização.

Da mesma forma, está assentada na jurisprudência - inclusive no STJ - a inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, por não vislumbrar a figura do destinatário final na prestação do serviço de transporte marítimo.

O contrato é de adesão, com cláusulas prontas, como permite a lei.

As tarifas aplicadas pelas transportadoras são os instrumentos anexos ao contrato de transporte que versam sobre os prazos de free time, valores de sobreestadia e demais informações pertinentes, de forma suficientemente claras, precisas e de ampla publicidade. Muitas vezes essas tarifas são divulgadas nos sites das empresas e acessíveis a qualquer momento ou até mesmo registradas em cartório, para lhes dar maior transparência, como deve ser.

Além disso, a jurisprudência reconhece, não é de hoje, os usos e costumes nesse tipo de relação, que é de natureza puramente comercial, o que, aliás, é sempre motivo de muita crítica nas defesas judiciais. Porém, com "usos e costumes" quer se dizer que os "players" estão habituados com a dinâmica do negócio, com os prazos de estadia, com os valores fixados, por exemplo. Digo mais. Digo que, a depender do importador, exportador, embarcador (ou seja, a figura do negociante em geral), existe um enorme poder de negociação comercial com as empresas de navegação.

Sobre os valores cobrados a título de sobreestadia, é preciso que se mencione que, não raras vezes, vemos a comparação do valor da sobreestadia com o valor do próprio container (ou mesmo o frete), esquecendo-se que, por se tratar de indenização pré-fixada, o que deve ser levado em consideração é o tamanho do prejuízo do transportador ao deixar de receber novos fretes diante da indisponibilidade dos containers no prazo ajustado. Nesse particular, tem sido bastante divulgada a preocupação das empresas de navegação com a falta de containers no mercado global (principalmente os refrigerados) devido à crise provocada pelo coronavírus. Isso não pode ser ignorado. Portanto, o valor da sobreestadia está atrelado ao prejuízo do transportador e essa circunstância não pode ser ignorada. Se o usuário não quer pagar sobreestadia, basta devolver os equipamentos dentro do free time. Se o usuário não quer pagar vultuosas quantias a título de sobreestadia, basta também devolver os equipamentos no menor prazo possível, até porque já sabe de antemão os valores gradativos que se pagará pelo excesso. Isso é importante ter em mente.

A propósito, é oportuno destacar que a própria Antaq reconhece o caráter indenizatório da sobreestadia e a sua dupla função como indenização que é no sentido de: reparar o prejuízo e, ao mesmo tempo, coibir abusos. Isso está na Cartilha da Antaq divulgada por ocasião da RN 18 que será abordada a seguir. Logo, a pretensão de se estabelecer limites (ou tetos) para a sobreestadia não é possível de ser acolhida pelo simples fato de que, se assim for entendido, haverá descaraterização da sua própria natureza jurídica como indenização que é.

E mais: anoto que a indenização é pré-fixada e, sendo assim, tendo conhecimento das tabelas, é possível de ser calculado no exato momento da devolução do container. Por isso é plenamente possível cobrar a sobreestadia nesse exato momento (o da devolução), com maior agilidade. Por que não ? Essa prática não se confunde com a cobrança antecipada. Cobrança antecipada é diferente de cobrança no ato da devolução do container, em que já se sabe exatamente a extensão do montante a pagar.

Esses são alguns apontamentos básicos a respeito da sobreestadia numa rápida introdução para prosseguirmos com maior clareza.

Com efeito, quando se fala em sobreestadia, é inevitável citar a Resolução Normativa 18 da Antaq, até porque, dentre outras disposições que agora não convém abordar, existe uma seção específica sobre o tema.

A importância fica ainda mais evidente nos tempos de pandemia em que estamos vivemos. Isso porque o artigo 21, parágrafo 2º. da resolução trata da suspensão da contagem do prazo de estadia livre do container em decorrência de caso fortuito e força maior, mas, em contrapartida, ressalva que não haverá a suspensão se houver responsabilização expressa do usuário por esses eventos.

E no parágrafo 3º. seguinte do mesmo dispositivo consta ainda que a contagem da sobreestadia que já tiver sido iniciada não se suspende na intercorrência de caso fortuito e força maior.

Logo, pergunta-se: o usuário utiliza o container por mais 10, 20, 30 dias, além do free time, será devida a sobreestadia nos tempos de pandemia ?

Depende.

Vamos analisar com calma.

O primeiro ponto a ser considerado diz respeito ao fato de que algumas tarifas aplicadas por transportadoras expressamente fazem alusão à cobrança da sobreestadia independentemente da ocorrência do caso fortuito e força maior. Portanto, há nesses casos expressa responsabilização contratual do usuário, tal como versa a norma da Antaq.

Embora nem todas as transportadoras façam essa previsão contratual, fato é que algumas têm e essa questão é muito sensível porque, em resumo, se o usuário se responsabilizou contratualmente e de forma expressa pela sobreestadia, mesmo em caso fortuito ou força maior, cabe a cobrança com o aval da Antaq. Ponto final.

Na via contrária, se não houver essa responsabilização contratual pelo caso fortuito ou força maior, para se invocar a pandemia, como excludente de responsabilidade, entendo, salvo melhor juízo, que cada caso deverá ser analisado individualmente. A exemplo disso, cito que algumas empresas de navegação já estão analisando as situações individualmente e até abrindo algumas concessões, por mera liberalidade, ainda na esfera comercial.

Vale reforçar, nesse contexto, outra disposição da RN, prevista no parágrafo 3º. do artigo 21, que trata da hipótese em que, uma vez iniciada a sobreestadia, a mesma não se suspende no caso fortuito ou força maior.

Retornando, portanto, à pergunta inicial, temos, a meu ver, algumas possibilidades:

A primeira: se há pandemia e no contrato de transporte e seus anexos o usuário assume a responsabilidade por caso fortuito e força maior, cobra-se a sobreestadia.

A segunda: se há pandemia, mas o contrato silencia sobre a hipótese de caso fortuito ou força maior, a excludente de responsabilidade, se reconhecida judicialmente (ou mesmo por liberalidade), deve ser analisada caso a caso.

Como terceira possibilidade, após o free time, iniciada a contagem da sobreestadia, esta não se suspende na hipótese de pandemia, independentemente de previsão contratual a esse respeito. Tanto faz, segundo autoriza a própria Antaq. Exemplo disso: estadia livre do dia 01/03 até 10/03, dia 11/03 iniciou a sobrestadia, dia 16/03 é declarada a pandemia e devolução do container apenas em 30/03. Sobreestadia será devida de 11 a 30/03.

Mas uma questão que deve ser posta em relevo é a de que atualmente já vivemos há mais de 03 meses em estado pandêmico e que certamente viveremos ainda por muito mais tempo no que se chama de o "novo normal".

Dito isso, o covid19 é uma realidade que deve ser considerada em todo negócio, seja qual for.

Não é mais uma surpresa.

A pandemia não é mais inesperada e inevitável.

Ela é realidade, a despeito da sensação geral de estarmos vivendo uma ficção científica.

Por outro lado, o dado concreto apurado é que o porto não parou em momento algum. Pelo contrário. Alguns deles, Brasil afora, inclusive, bateram recordes (principalmente de exportação), a depender da carga movimentada, mesmo em plena pandemia. Se isso se alterará no futuro, ainda não sabemos.

Mas, seja como for, certo é que todo o modelo de negócio a partir de agora deve ser repensado considerando a pandemia, que já não é mais inesperada ou imprevisível.

A pandemia, diga-se de passagem, é fato público e notório.

E, dessa forma, deve fazer parte do risco do negócio.

Será então que deveria se considerar a pandemia como excludente de responsabilidade nesse "novo normal" em que vivemos ou a situação deveria ser tratada como é, por exemplo, o caso de greve ou mesmo aqueles em que há dificuldades burocráticas para desembaraço aduaneiro ? A se pensar.

Sabemos que a jurisprudência não reconhece a greve e eventuais dificuldades burocráticas como excludentes de responsabilidade justamente por se tratarem de fatos públicos e notórios.

Nessa quadra, cumpre enfatizar que a greve ou entraves burocráticos são circunstâncias que devem ser enfrentadas diretamente com quem os deu causa, não podendo, assim, ser transferidas ao transportador marítimo para amargar o prejuízo.

Então, se o estado pandêmico, repito, passou a ser o nosso "novo normal", não haveria de ser tratado como fato público e notório e, portanto, circunstância insuficiente para romper o nexo de causalidade ?

Fica o questionamento para as reflexões necessárias.

Obviamente ainda não existem precedentes sobre a matéria, mas a tradição da judicialização no país nos leva a crer que em breve haverá e isso não tardará.

Essa é, portanto, a minha singela contribuição acerca do tema e o faço consciente de existirem opiniões bastante fortes em sentido contrário. Todavia, esses argumentos não me convencem em sentido diverso, sobretudo porque levam em conta mais o contexto econômico do que jurídico.

__________

*Luciana Vaz Pacheco de Castro é Membro da Comissão de Direito Marítimo da OAB de Santos/SP membro da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo; membro da Wista Brazil Women's International Shipping & Trading Association, advogada especializada em Direito Marítimo e sócia da Advocacia Pacheco de Castro Sociedade de Advogados.

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