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A medida provisória 984/2020 e o atleta profissional de futebol

Nada ou muito pouco se aborda sobre quais as mudanças que alteração legislativa importará aos atletas profissionais de futebol, tema deste artigo, que mostra grande parte dos impactos e os prejuízos que referida alteração traz para essa categoria de trabalhadores.

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Atualizado às 11:46

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A medida provisória 984/20 editada no dia 18.06.20 traz uma profunda alteração no ordenamento jurídico do futebol brasileiro, alterando de maneira substancial o artigo 42, da lei 9.615/98 que trata sobre a questão do direito de arena no futebol profissional brasileiro.

Observa-se, em grande parte dos comentários, menções fundamentadas sobre o entendimento de que tal alteração incentivaria os clubes a negociarem de maneira coletiva o direito de arena, o que poderia gerar um incremento nessas receitas de exploração de direitos audiovisuais; outros, mais céticos, pensam que teremos uma situação diametralmente oposta, com poucos clubes beneficiados e mais clubes recebendo um valor menor. Eventual quebra de monopólio. Novas formas de transmissão. Tem opinião para quase todos os lados. O único lado que ainda não tive a oportunidade de ouvir nesses intensos debates é o lado do atleta profissional de futebol, peça fundamental para a realização desse espetáculo audiovisual que gera milhões de reais para quem o explora e para os clubes que cedem o direito de arena para essas empresas. 

O prisma do atleta profissional de futebol fica de escanteio, como se fosse de menor importância. Talvez até pensem que assim o seja. 

De plano se observa a inconstitucionalidade desta MP, uma vez que é editada em razão da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da pandemia da covid-19. Bom, é preciso muito esforço argumentativo para buscar alguma relação entre a pandemia que assola o mundo e os direitos de arena e as transmissões e exploração dos espetáculos audiovisuais dos clubes de futebol, o que evidencia o desvio de finalidade desta MP, sem haver qualquer urgência e relevância para a sociedade por estar completamente fora do espectro e anseios civis decorrentes do caos sanitário presente no país. 

Afora esse aspecto, a MP mantem o percentual de 5% das receitas audiovisuais para serem distribuídos entre os atletas participantes dos jogos do clube mandante da partida. Aqui, uma alteração é a retirada das entidades sindicais dos atletas profissionais de futebol quanto a realização dos rateios desta parcela, o que enfraquece não apenas os sindicatos, mas em especial os próprios atletas, pois deixam de ter um ente que fiscalize a retenção e cobre o pagamento de maneira impessoal, sem afetar a relação de pessoalidade que existe entre clube e atleta. 

Com a mudança legislativa passará ao clube a responsabilidade da distribuição? Ou passará a empresa que paga pelo direito de exploração? E mais, haverá o pagamento desse direito, ou serão impostos aos atletas contratos para cessão sem ônus, ou pagamento do direito de arena de maneira embutida dentro do direito de imagem, ou mesmo do salário? Seria o direito de arena a gorjeta de 10% que nos é cobrado nos bares e por vezes não repassados aos garçons? 

A realidade jurídica de grande parte dos grandes clubes de futebol (aqueles que recebem para ceder os direitos de exploração de seus jogos) nos permite acreditar que a possibilidade de retirada desse direito aos atletas seja algo factível e praticamente certo de acontecer. Logo, mais um prejuízo aos atletas profissionais. 

Na eventualidade de estar equivocado, temos que o direito de arena será pago apenas ao clube mandante. Então, para o Campeonato Brasileiro o clube passa a negociar individualmente 19 jogos e não 38 jogos, o que em conta matemática, ocorrendo negociação individual, importa numa redução de 50% do valor total, algo que também reflete nos atletas, que receberão somente sobre esses jogos em que atuar como mandante, em contraponto a atualidade que recebem em todas as partidas que atuem. A princípio, portanto, um valor menor do que hoje praticado e com possibilidades estritas de haver o recebimento desta participação. 

Além desses prejuízos mencionados, aqui, a meu ver, reside outra inconstitucionalidade. Isso porque o artigo 5º, XXVIII, "a", CF assegura a proteção às participações individuais em obra coletiva, inclusive nas atividades desportivas. Ora, o jogo de futebol (obra coletiva) pressupõe a disputa coletiva entre duas equipes e não somente com os atletas de uma equipe. Assim, a restrição do direito de arena somente para os atletas da equipe mandante despreza a obra coletiva (o jogo) e sua natureza intrínseca de confronto entre duas agremiações, o que importa dizer na necessidade de que todos os atletas envolvidos nessa obra coletiva tenham garantidos seus direitos fundamentais de proteção às participações individuais dentro dessa obra, que se materializa no pagamento de um percentual do direito de arena. 

Sem contar que tal situação se trata de direito fundamental, cláusula pétrea, não podendo ser objeto de tentativas jurídicas que visem restringir ou abolir direito constituído. 

Denota-se que ainda que não se saiba quem serão beneficiados com a edição desta MP, se eles haverão, ou como esse novo panorama legislativo impactará na relação e na forma de se explorar os direitos audiovisuais, os atletas profissionais de futebol têm todos os motivos, razões e fundamentos para se preocuparem com a manutenção dos termos desta MP, ante a profunda retirada de direitos dessa categoria de trabalhadores. 

Ainda assim, não se pode perder de vista que a imagem do atleta, como de qualquer pessoa, também é um direito fundamental personalíssimo protegido pela Constituição Federal, sendo que sua violação com a transmissão de jogos em que não há autorização expressa, constitui dano à imagem passível de reparação.

Nesse cenário de intensos debates sobre o tema, não se pode deixar de lado parte principal dessa engrenagem e desse espetáculo, os atletas profissionais de futebol, pois, por incrível que pareça, sem eles nada disso aconteceria. 

Esperamos que o Poder Legislativo realize as alterações necessárias, se entender como constitucional essa medida provisória; que a academia seja ouvida e, principalmente, que as partes integrantes dessa obra coletiva (inclusive os atletas) participem desse debate complexo para construir caminhos conjuntos que corrija os rumos deste ato presidencial unilateral. 

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t*Gabriel Sandoval é advogado da banca Laporta Costa Advogado Associado, pós-graduando em Direito Desportivo pelo CEDIN e pós-graduado em Direito Constitucional pela Faculdade Damásio.

 

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