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Breve análise sobre a construção social das relações abusivas

Melissa Ourives e Alliny Burich da Silva

Quando pensamos nestas relações que denominamos abusivas percebemos, por vezes uma normatização da conduta, a partir inclusive da romantização das relações, onde espera-se que o homem proteja e guarde a mulher na figura de sexo frágil.

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Atualizado às 12:21

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Nos últimos dias a temática abuso psicológico ganhou maior visibilidade pelo depoimento de uma "digital influencer" a respeito do seu relacionamento conjugal (que segundo ela, continha) características de abusividade.

Relacionamento abusivo não é um assunto novo, aliás é fruto de discussões e lutas antigas para que seja lhe dado a devida atenção, uma vez que por vezes a violência que deixa marcas aparentes é fruto de maior credibilidade que a violência tão brutal quando que deixa marcas invisíveis, mas que exigem um profundo processo de cura, eis que atingem o emocional.

Conceitualmente relacionamento abusivo1 é aquele em que há predominância, excesso de poder de um sobre o outro ou ainda, é o "desejo" de controlar o outro, de modo a tê-lo para si.

Uma pesquisa realizada pela plataforma de notícias G12, em março de 2019, indica que o Brasil teve 4.254 homicídios dolosos contra mulheres no ano de 2018, sendo que, deste total, 1.173 são feminicídios (crime motivado pelo fato de a vítima ser mulher). Outra estatística desta década, agora apontada pelo Instituto Maria da Penha, mostra que "a cada 2 minutos 5 mulheres são violentamente agredidas"3.

Mas para real compreensão é importante entender o poder. Segundo o dicionário "poder" significa possuir força física ou moral; ter influência, valimento.

O poder é o ingrediente histórico que permeou e continua atuando na construção daquilo que denominamos sociedade, seja através de princípios, leis, visões de moral que constroem o comportamento dos seus componentes. Inicialmente poder era representado através de dogmas religiosos, onde algum ser superior detinha o poder da redenção do céu ou a ira do inferno, criando-se então a figura do todo Poderoso e, por conseguinte seus servos. Depois através destes mesmos dogmas o poder passou aos homens em detrimento às mulheres. Tal domínio influenciou diretamente a construção das relações humanas, especialmente as relações conjugais. Uma vez que era o homem o sábio, aquele que possuía capacidade seja moral ou legal de determinar todos os aspectos do núcleo familiar.

Ao longo dos anos com a emancipação das mulheres através de direitos muito mudou, mas não podemos ignorar que ainda estamos sob a égide de uma sociedade patriarcal, onde o poder encontra-se no domínio.

E neste jogo de poder, quando falamos de relacionamentos, encontramos por vezes, os relacionamentos abusivos. Neste modo relacional há predominância de poder de um para o outro, um desejo implícito ou explicito de ter para si, e tão somente para si, o outro.

Perceba que o modelo comportamental é fruto da construção social do poder, da ideia de ser o salvador, aquele que protege, que controla, que tudo vê e tudo sabe em face daquele que precisa ser protegido e inclusive se sente confortável, ainda que por um período, nesta posição.

Quando pensamos nestas relações que denominamos abusivas percebemos, por vezes uma normatização da conduta, a partir inclusive da romantização das relações, onde espera-se que o homem proteja e guarde a mulher na figura de sexo frágil. Importante dizer que o poder e a tentativa de domínio alcançam também relações de parceiros do mesmo sexo, uma vez que ainda nestas relações há a construção do masculino e feminino

Neste sentido, a conduta abusiva, geralmente, inicia de modo sutil e aos poucos ultrapassa os limites causando sofrimento e mal-estar.

Os principais indicativos de uma relação abusiva são comportamentos de ciúmes, possessividade, controle sob as decisões, isolamento do parceiro da família e amigos, tudo com o respaldo do cuidado, na visão de único sabedor do caminho a seguir.

Quando pensamos em porquê aquele que sofre abuso permanece na relação se faz necessário a reflexão que a visão de amor que foi-nos apresentado pelo sistema patriarcal de conotação religiosa traz a visão do amor romântico que tudo crê, tudo suporta e tudo perdoa.

Veja-se que a crença dominante é que aquele que abusa não está abusando mais protegendo e zelando pelo seu parceiro em contrapartida a vítima sofre pelo abuso, mas também por inconscientemente acreditar que está infeliz quando deveria ser grata pelo cuidado, ainda que excessivo. 

Aqui encontramos a cultura da culpabilização seja pela própria vítima ou por aqueles que se perguntam como assim ela não percebe? Como que ela caiu nessa? Ficou com ele por que então?

A resposta deveria ser simples, mas não é. Ficou porque não sabia que era abuso, ficou porque foi criada em uma sociedade que romantiza o excesso de cuidado, ficou porque entende que a figura do todo poderoso é fundamental para manter-se bem.  O silêncio, como no inferno de Dante, tem seus círculos concêntricos. Primeiro vem às inibições internas, as dúvidas, as repressões, as confusões e a vergonha, que tornam difícil ou impossível falar, justamente com o medo de ser punida ou condenada ao ostracismo por falar4.

E quem abusa, abusa porquê? Abusa porque teve sua masculinidade construída no poder sobre outrem, na dominação simbólica que são eles próprios produto dessa cilada sócio estrutural.  Ou ainda porque dentro do padrão social em que foi criado entende que sua conduta é imbuída de boas intenções, logo não abusivas.

Frisa-se uma relação não é saudável quando envolve comportamentos desrespeitosos, controladores e abusivos. É preciso descontruir nossa visão romantizada das relações conjugais onde sofrer faz parte.  De certa forma, torna-se urgente reconstruir a história do trabalho histórico de des-historziação, ou a (re)criação continuada continuada das estruturas objetivas e subjetivas da dominação masculina, que se realiza permanentemente desde que existem homens e mulheres, e por meio da qual a ordem masculina se vê continuamente reproduzida através dos tempos5.

Quando falamos de relações abusivas é importante esclarecer que tais formas relacionais, deixam os envolvidos por vezes confusos, uma vez que o abuso seja ele físico, emocional, verbal ou sexual, pode acontecer de modo eventual ou cíclicas. Em um jogo de momentos bons e maus. Em agressões abusivas e pedidos de desculpas, o que torna a percepção ainda mais difícil para aquele que sofre com o abusador.

Por fim, é de suma importância a compreensão que o amor não faz sofrer, que somos seres completos e capazes de sermos felizes e que uma relação amorosa nos serve para a construção de um caminho emocional afetivo, somos seres relacionais, mas não com a necessidade de completitude, mas na necessidade de simplesmente amar e ser amado.

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4 SOLNIT, Rebecca. Os homens explicam tudo para mim.

5 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina.

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*Alliny Burich da Silva é especialista, advogada, mediadora e professora especialista em Direito das Famílias e Sucessões, membro do Instituto Brasileiro de Direito das Famílias - IBDFAM.

 

 

*Melissa Ourives é mestre em Direito privado. Advogada colaborativa. Professora de direito civil. Diretora acadêmica do IBDFAM/CE. Coordenadora da comissão de diversidade e inclusão do IBPC.

 

 

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