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Vieses dificultam diálogo entre gestores públicos e controladores

É possível perceber que está na hora de se reconhecer a existência de vieses que prejudicam o diálogo, potencializam as incertezas e, até mesmo, obstaculizam o reconhecimento do outro como parte da solução dos complexos problemas que ainda subsistem na Administração Pública.

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Atualizado em 24 de julho de 2020 07:27

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Há, na atualidade, imensa dificuldade na relação entre gestores públicos e controladores, com implicações jurídicas significativas, a exemplo das recentes alterações da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (art. 28, em especial) e da edição da MP 966, de 13/5/2020, que, no geral, com a justificativa de propiciar mais segurança jurídica aos gestores no desempenho de suas atribuições, limitaram eventual responsabilização às hipóteses de dolo ou erro grosseiro.

Os gestores públicos reclamam, de um lado, dos excessos do controle, assim atribuindo, com respaldo em combativa doutrina, a ineficiência existente em órgãos e entidades públicas ao propalado "apagão das canetas"1; de outro lado, os controladores revelam as deficiências da gestão, daí promovendo, muitas vezes, precipitadas generalizações acerca da ineficiência e corrupção existente no âmbito da Administração Pública. O problema não pode ficar adstrito aos limites dogmático-jurídicos, aqui se revisitando alguns contributos teóricos da economia comportamental, para melhor compreensão das possíveis causas do imbróglio entre gestores públicos e controladores.

Em síntese, a economia comportamental revelou as limitações da racionalidade ínsita aos indivíduos e, a partir disso, explicitou a possibilidade de erros sistemáticos de avaliação e julgamento. Há, explica Daniel Kahneman, processos cognitivos inconscientes e automáticos que influenciam os indivíduos, assim se reconhecendo que impressões, preferências e sentimentos geram, muitas vezes, incentivos enviesados e, a partir de julgamentos intuitivos, ocasionam conclusões precipitadas. Os vieses podem decorrer de vários fatores, a exemplo da simples facilidade que um indivíduo tem acesso à informação e da importância dada a um evento guardado em sua memória2.

Os gestores públicos e controladores também estão sujeitos a vieses, a explicitar, nessa lógica, inclusive por influências corporativistas, a possibilidade de prevalência de crenças equivocadas e erros involuntários em suas avaliações e julgamentos. Assim, em acréscimo, levando-se em consideração suas respectivas atuações profissionais, até mesmo as diferenças de atribuições, de características de local de trabalho e de informações a que tais profissionais têm acesso, é factível depreender que gestores públicos tendem a ter vieses parecidos, assim como controladores também tem propensão a possuir vieses semelhantes.

O problema já delimitado pode, então, em alguma medida, ser explicado com auxílio da economia comportamental, a denotar que suas respectivas controvérsias podem não ter correlação apenas com falhas do arcabouço jurídico. Os gestores e controles, ao avaliarem e julgarem uns aos outros, podem incorrer em vieses decorrentes de suas respectivas profissões, o que pode ocasionar, quando considerada a assimetria informacional existente, erros recíprocos de avaliação e julgamento, provenientes de processos cognitivos inconscientes e automáticos, sem a devida racionalização. 

Portanto, os gestores públicos são suscetíveis a vieses que ocasionam distorção inconsciente de percepção, sob influência da realidade do seu próprio trabalho e do ambiente específico de sua repartição, normalmente permeada de profissionais probos e competentes. E, por conta disso, os gestores podem, inconscientemente, a partir daquilo que veem na sua rotina, ao não se depararem com problemas sérios no seu dia a dia, extrapolar tal realidade para outros contextos, a refletir na avaliação e julgamento dos controladores, com a possibilidade de considerarem seu trabalho desnecessário, atribuindo a eles os problemas da ineficiência da Administração, especialmente se detectarem, nesse ínterim, algum excesso pontual em suas atuações.

Os controladores também são suscetíveis a vieses que ocasionam distorção inconsciente de percepção, em especial quando impactados por irregularidades constatadas em órgãos e entidades em que realizam suas auditorias e fiscalizações e/ou conduzem seus processos sancionadores. E, por conta disso, dominados por ilusão de foco, heurística de disponibilidade ou viés de confirmação, os controladores podem, inconscientemente, a partir daquilo que veem em sua rotina, aqui permeada de casos problemáticos, envolvendo, muitas vezes, problemas de ineficiência e corrupção na Administração, passar a fazer pré-julgamentos indevidos ou generalizações equivocadas quanto ao trabalho realizado por gestores públicos.

Os vieses podem, então, acabar dificultando a relação entre gestores públicos e controladores, o que pode, até mesmo, exclusivamente com base naquilo que lhes vêm à mente com mais facilidade3, consolidar posicionamentos que nada contribuem para a evolução da Administração Pública, com prejuízos às políticas públicas. Afinal, assim como não existem dados que demonstram que mais controle proporciona mais eficiência e probidade na consecução das políticas públicas, também não há dados que comprovam que a simples eliminação do controle contribui para o aumento da eficiência e probidade nos órgãos e entidades públicas4.

Há, pois, a necessidade de cautela e equilíbrio nessas discussões, a exigir, a partir disso, a superação de visões antagônicas. Podem, é fato, acontecer excessos na atuação dos órgãos de controle, o que deve ser evitado e combatido; mas também acontecem, ainda que a maioria dos gestores públicos seja constituída por profissionais dedicados e íntegros, desvios significativos em órgãos e entidades públicas. Então, com um olhar distanciado da controvérsia exposta, é possível perceber que está na hora de se reconhecer a existência de vieses que prejudicam o diálogo, potencializam as incertezas e, até mesmo, obstaculizam o reconhecimento do outro como parte da solução dos complexos problemas que ainda subsistem na Administração Pública.

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1 Ver, por exemplo: GUIMARÃES, Fernando Vernalha. O Direito Administrativo do Medo: a Crise da Ineficiência pelo Controle. Revista Colunistas de Direito do Estado, vol. 1, n. 71, Ano 2016, n. 71. Acesso em: 2 jun. 2020.

2 KAHNEMAN, Daniel. Rápido e Devagar - Duas Formas de Pensar. Trad. Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012..

3 KURAN, Timur; SUNSTEIN, Cass R. Availability Cascades and Risk Regulation. Stanford Law Review. Vol. 51. Apr. 1999. p. 683-768.

4 RODRIGUES, Ricardo Schneider. Responsabilização do Agente Público: Grande Novidade ou Mais do Mesmo? Acesso em 18 jun. 2020. 

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*Rafael Amorim de Amorim é advogado doutorando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Consultor legislativo da Câmara dos Deputados, área Direito Administrativo e Administração Pública. Professor.

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