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Fim da competência territorial?

A pandemia nos fez entrar num paradoxo do mundo bizarro do Super-homem, fazendo com que experimentássemos novidades antes impensadas, contudo, introjetadas no momento como verdades inexpugnáveis.

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Atualizado às 08:13

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Todo mundo já até se habituou ao novo novo, que já não tem mais tanto frescor ou causa tanto espanto, ao menos em termos jurídicos, tendo em vista que vivenciamos essa crise há quase cinco meses.

A pandemia nos fez entrar num paradoxo do mundo bizarro do Super-homem, fazendo com que experimentássemos novidades antes impensadas, contudo, introjetadas no momento como verdades inexpugnáveis.

Sua empresa não admitia home office, que pena, teve que engolir.

Seu trabalho ficava dentro do expediente, pois bem, hoje ele te persegue de manhã, de tarde e de noite, por todos os meios de comunicação.

Bom, ruim, não sei, são julgamentos muito humanos para uma era tão tecnológica e digital.

Não obstante, malgrado um juízo de valor seja prescindível, a análise das suas repercussões não se esgota, ao contrário, a cada dia, um portal do inusitado se abre e temos que nos adaptar e fazer com que a legislação corra atrás dos fatos reais.

Nesse compasso, proponho uma verificação da (in)utilidade do critério da competência territorial.

Outrora, impossível cogitar-se como, após a revolução pandêmica tecnológica, nós, juízes, advogados e jurisdicionados vimos que a presença física antes inexorável pode ser substituída pelas chamadas de vídeos, e-mails, telefonemas etc.

A competência conhecida como a medida da jurisdição e um de seus métodos de atribuição a diferentes órgãos é a forma administrativa de se dividir a responsabilidade pelo número de processos, bem como organizar a produção de prova e facilitar o acesso à justiça.

O juiz é competente para determinada causa quando tiver relação de adequação legítima, ou seja, quando houver um elemento de ligação com o território e a lei atribui a tal elemento a eficácia de fazer competente o território, ou seja, a existência de uma conexão física com o local vincula o magistrado ao processo.

A distribuição do processo entre juízes é calcada no princípio do juiz natural, do qual se retira a imparcialidade. A competência territorial torna esse processo de divisão compreensível e um não obsta o outro.

Contudo, vivenciamos um processo de atenuação de barreiras físicas, um afrouxamento das fronteiras e um caminho sem estradas para os fóruns e ofícios judiciais.

A dimensão territorial cede espaço à dimensão digital. Vimos a possibilidade da consecução de uma carta rogatória pelo próprio magistrado que a determinou, aliás, diante da realização das audiências por videoconferência, ela perde seu escopo, pois se todos juízes exercem a mesma jurisdição, não há porque se pedir vênia para o cumprimento de um ato que ele mesmo pode executar, diretamente, com amplo domínio do fato, isto é, não existe soberania ou hierarquia entre juízes que exercem a mesma jurisdição.

 Em verdade, o princípio do juiz natural seria levado à última instância. Toda prova estaria concentrada no mesmo julgador.

A citação pode ser feita por email, a intimação, por uma mensagem, a instrução pela videoconferência. O uso da pessoalidade física é somenos importância, aliás, o destacamento do juiz da terra vem muito mais ao encontro da imparcialidade, pois tanto partes como suas causas receberão definitivamente o mesmo tratamento.

Na mesma senda, cogita-se da divisão equitativa de processos entre juízos de mesma competência, desde que se permita e seja factível a realização das audiências e demais atos de forma digital.

Qualquer juiz poderá julgar qualquer causa dentro daquilo para o qual a Constituição lhe atribuiu competência, bastando que os fóruns tenham meios de permitir o ingresso do jurisdicionado a uma sala de videoconferência, ou ainda, de que a parte ou a testemunha seja portador de um telefone servido de câmera.

Seria permitido propor ação em qualquer lugar, e ela seria distribuída livremente aos juízes que detêm a competência material para tanto, respeitando-se o princípio do juiz natural, da imparcialidade e até mesmo da identidade física do juiz, que não se confunde com a competência territorial.

Como ensina Dinamarco, a disciplina da competência é calcada em seis pilares, sendo eles a unidade da jurisdição; a existência de uma estrutura judiciária; a existência de conflitos de variadas naturezas; a necessidade de se distribuir esses processos; a liberdade das partes, por meio da qual se concede certa dose de faculdade na escolha do órgão judiciário; e razões de ordem pública limitando essa liberdade por meio de determinações constitucionais.

Imagine um cenário no qual os juízes poderiam receber efetivamente o mesmo número de feitos, com a mesma densidade de dificuldade. Nesse contexto, plausível a mensuração da produtividade, pois teríamos o compartilhamento equitativo da responsabilidade. Igualmente, razoável idealizar uma maior especialização dos julgadores, com a criação de foros específicos para determinadas matérias. Em verdade, isso já era mencionado com os foros regionais, ou até mesmo com nossos tribunais, os quais recebem ações de todos lugares, mostrando que a competência territorial tem um certo nível de importância, contudo, no contexto digital ela é atenuada.

A implementação de órgãos jurisdicionais espraiados no território nacional tem como principal substrato o acesso à população. Se entendermos que o alcance à justiça já está facilitado pela tecnologia e a conexão com o território foi dirimida pela projeção da comunicação, teremos um novo horizonte pela frente.

O direito deve ter sempre como norte o princípio da razoabilidade e proporcionalidade, de modo que devemos refletir e repensar sobre a eficiência e efetividade do acesso à jurisdição, tendo em mente que o fio condutor para tais princípios é a celeridade, a qual se dá por meio de uma justiça organizada e dinâmica, atenta às mudanças do mundo globalizado.

Pode ser uma ideia pandêmica, mas já não se mostra tão absurda, e o momento exige certa dose de audácia e criatividade.

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*Marina Freire é Juíza de Direito no Tribunal de Justiça de São Paulo. Mestre em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo.

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