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Desigualdade de vozes no Mercosul

Nos debates do grupo, encontramos enorme desigualdade entre representantes do setor produtivo e representantes da sociedade civil. Faltam, assim, vozes que tragam as perspectivas da sociedade.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Atualizado às 09:20

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É sabido que a garantia do ambiente democrático demanda espaços plurais de debate, construção e implementação de políticas públicas. De um lado, acompanhamos avanços neste sentido no ambiente de muitas das Agências Reguladoras brasileiras. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por exemplo, prevê em seu "cardápio de participação social" uma série de aberturas para diálogo com a sociedade, caso dos grupos de trabalho, grupos focais, consultas dirigidas e diálogo setorial, estratégias que antecedem a abertura de processo regulatório específico, aprimorando a capacidade da Agência de identificar o problema regulatório e apurar os possíveis impactos de cada qual das soluções que aventar para solucionar o problema identificado. Contudo, a sistemática que vigora no Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) está ultrapassada, na medida em que é pouco permeável à participação social, fato que fragiliza o próprio sistema regional.

O MERCOSUL é uma organização intergovernamental fundada em 1991, pela Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, signatários do Tratado de Assunção, cuja personalidade jurídica internacional se consolidou por intermédio da celebração, em 1994, do Protocolo de Ouro Preto, incorporado à ordem jurídica brasileira por meio do decreto 1.901/96, o qual dispôs sobre a estrutura organizacional do bloco econômico regional.

O grande objetivo do Tratado de Assunção foi permitir a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre os países-membro, o que perpassaria pela necessidade de harmonização das políticas macroeconômicas e setoriais, inclusive no que se refere aos parâmetros relacionados à produção e comércio de alimentos.

A estrutura organizacional do MERCOSUL é formada pelo Conselho do Mercado Comum (CMC), o Grupo do Mercado Comum (GMC), a Comissão de Comércio do MERCOSUL (CCM), a Comissão Parlamentar Conjunta (CPC), o Foro Consultivo Econômico-Social (FCES) e a Secretaria Administrativa do MERCOSUL (SAM).

O GMC, órgão executivo, é composto por diversos subgrupos de trabalho, formados por representantes dos países-membro e que são responsáveis pela apresentação de propostas de novos regulamentos e/ou da revisão dos existentes, os quais, para serem aprovados, demandam a unanimidade de entendimento sobre os temas que serão objeto de regulamentação.

Surge, aqui, o primeiro ponto de atenção em relação ao tema: a busca por unanimidade tem se mostrado desafiadora por questões linguísticas (inclusive entre os países de língua espanhola), culturais, econômicas e, necessidades específicas relacionadas ao contexto de saúde pública de cada país, isso sem mencionar a diversidade que existe por conta da legislação previamente aprovada em algum dos países, inclusive em razão de decisões judiciais, ou grau de avanço no tocante ao debate interno sobre determinados temas, a exemplo das discussões sobre a necessidade de revisão dos requisitos de rotulagem nutricional.

Todavia, apesar dos desafios acima apontados, há casos em que estes obstáculos são superados e que é possível chegar a um consenso ao longo das reuniões dos subgrupos, resultando em uma proposta de regulamento, que é, então, submetida à consulta pública em cada um dos países.

A resolução GMC 45/17, que cuida dos "Procedimentos para elaboração, revisão e revogação de Regulamentos Técnicos MERCOSUL e Procedimentos MERCOSUL de Avaliação da Conformidade", e que estabeleceu prazos para discussão de proposta de elaboração, revisão ou revogação de Regulamentos Técnicos do MERCOSUL (RTM), prevê que as propostas de elaboração ou revisão de RTM devem passar por "consulta interna antes da submissão ao GMC com o objetivo de confirmar a sua conveniência técnica e jurídica e de estabelecer os procedimentos e o prazo necessários para a sua incorporação aos ordenamentos jurídicos internos dos Estados Parte". Finda esta etapa, o texto volta para apreciação do Subgrupo e, acertada de modo consensual a redação final, o texto é submetido ao GMC, ao qual compete aprovar o respectivo RTM, que, nos termos do artigo 42 do texto do Protocolo de Ouro Preto, tem caráter obrigatório e, quando necessário, deve ser incorporado aos ordenamentos jurídicos nacionais mediante os procedimentos previstos pela legislação de cada país.

Eis, aqui, o segundo ponto de atenção: a realização de consulta pública, que deveria ser uma janela para diálogo com a sociedade, se mostra, na prática, como uma pequena fresta. Isto porque o texto já vem praticamente fechado, já calejado pelo histórico de difíceis concessões entre os países-membro no momento de sua construção, visando atingir a unanimidade, e em linguagem técnica, dificultando a efetiva contribuição por parte da sociedade.

O processo ganharia outro contorno se houvesse maior abertura para o diálogo no período de construção da proposta, por meio da garantia de maior pluralidade de atores nas reuniões preparatórias que acontecem (ou deveriam acontecer) em cada um dos países antes das reuniões entre os países-membro do MERCOSUL. A realidade é que, nos últimos anos, há enorme desigualdade entre representantes do setor produtivo e representantes da sociedade civil. Não há dúvida de que estes processos não são construídos em base em maiorias versus minorias, mas falta diversidade de vozes que tragam as perspectivas da sociedade, que, para além do prisma dos consumidores, revelem outras nuanças, tais como aspectos ambientais ou perspectiva de pequenos produtores.

Para a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, a qualidade regulatória está diretamente associada à implementação das melhores práticas de participação social. Em 2012, na Recomendação do Conselho sobre Política Regulatória e Governança, documento elaborado no contexto de enfrentamento da crise financeira e econômica mundial que naqueles anos revelou grandes falhas em governança e regulação, a Organização recomendou a todos os seus países-membro:

Respeitar os princípios de um governo aberto, incluindo transparência e participação no processo regulatório para garantir que a regulação sirva ao interesse público e para que seja informado das necessidades legítimas dos interessados e das partes afetadas pela regulação. Isto inclui a oferta de canais efetivos (incluindo online), para que o público possa contribuir para o processo de preparação de propostas regulatórias e para a qualidade da análise técnica. Os governos devem assegurar que regulações sejam compreensíveis e claras e que as partes possam facilmente compreender seus direitos e obrigações.

Ainda que o MERCOSUL conte com estruturas organizadas para discutir atos regulatórios e recomendatórios para seus membros, com mecanismos de consulta e procedimentos de colaboração, ainda é necessário usar sistematicamente e de forma estruturada ferramentas de qualidade regulatória como consultas públicas aproveitadas plenamente. Há que se criar mecanismos que garantam a participação da sociedade civil desde o início do processo, convocando-a para contribuir com a identificação do problema e na construção da proposta. Existe a necessidade premente de que a voz dos consumidores seja efetivamente ouvida.

A pouca representatividade da sociedade civil impacta a própria legitimidade das normas aprovadas no contexto regional, uma vez que, sem a consideração das demandas sociais, o que aparenta ser um consenso entre os países se torna objeto potencial de litígio interno em cada um deles. Muitas vezes, isto resulta na aprovação de leis que desviam do objetivo tido como comum naquele contexto ou na judicialização de temas críticos para a sociedade, a exemplo do processo que resultou na aprovação de requisitos de rotulagem nutricional no Brasil, a RDC 26/15, fruto da demanda da sociedade civil organizada por informações claras sobre a presença de alergênicos nos rótulos (movimento Põe no Rótulo) e por decisão judicial (Ação Civil Pública, 2008.85.00.001185-2, 2a Vara Federal de Sergipe). Tivéssemos um processo aberto, que envolvesse a sociedade civil, representantes da população que convive com alergia alimentar e profissionais de saúde de todos os países-membro, talvez, hoje, existiria uma legislação única para todo o MERCOSUL, tendo em vista que o tema fora apresentado pela delegação brasileira em 2012 e, desde então, nunca se chegou a um consenso, o que gera condenações que vão no sentido oposto dos RTM outrora aprovados e que limitam o espectro de atuação das autoridades competentes.

A garantia de participação qualificada de representantes da sociedade civil ao longo do processo de discussão de um novo RTM mostra-se como uma estratégia adequada tanto no que toca ao fortalecimento do sistema regional, que passa a ter maior lastro de representatividade, quanto para que os avanços pretendidos com a regulamentação regional, de fato, representem as demandas de toda a sociedade.

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t*Maria Cecília Cury Chaddad é advogada mestre Direito do Estado e doutora em Direito Constitucional pela PUC/SP. Advogada do escritório Cecilia Cury Advocacia.




t*Igor Rodrigues Britto é diretor de Relações Institucionais | Idec - Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor.





t*Mariana Gondo dos Santos é advogada do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC).

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