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Pelotas: a cidade que ganhou um lockdown para resguardar o direito ao lazer da população

Por decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a cidade de Pelotas/RS ganhou um lockdown que não protege o direito à vida, tampouco a sua economia. Ganhou, na realidade, um decreto que garante o direito ao lazer, através do sofisma do direito de ir e vir.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Atualizado às 09:32

 

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Originalmente, o Decreto Municipal 6.300, emitido pela Prefeitura de Pelotas/RS, restringia os direitos de ir e vir. Em virtude de liminar concedida em ADI proposta pelo parquet estadual, tal previsão foi suspensa.

 

Entretanto, pretendo demonstrar que o bloqueio total de atividades (lockdown), em atendimento ao princípio da primazia da realidade dos fatos, emprestado do Direito do Trabalho, sempre que assim proposto pelos órgãos municipais e estaduais, deve ter a sua implementação legitimada, ainda que não exista expressa instituição do Estado de Defesa ou de Necessidade.

 

No atual cenário pandêmico, essa medida é adotada quando o objetivo é desacelerar a propagação do Covid-19, principalmente quando as medidas de isolamento social e de quarentena já adotadas não forem suficientes para frear o aumento de casos. É preciso dizer que vivemos num país de grande dimensão geográfica, com suas diferenças culturais, climáticas e etc. Ao se analisar a raiz dos fatos oriundos da atual pandemia, é fácil de se chegar na constatação de que o constituinte originário, em 1988, não tinha como prever todas as possibilidades jurídicas para o nosso país. 

 

Em seus mais de 30 anos de existência, a Constituição Federal já foi, por diversas vezes, alvo de alterações. Diversos institutos, antes sem previsão legal, ganharam identidade na Carta Magna, podendo citar, a título exemplificativo, o instituto do casamento, que hoje já abarca em seu rol a possibilidade da união homoafetiva, antes sem origem legal. Ou seja: fica claro que a Carta Magna nada mais é, em sua natureza, que um embrião legislativo, o qual resta aberto para as alterações que o avanço de nossas relações assim exija.

 

E num momento de pandemia como o atual, que exige determinadas previsões legais extraordinárias, não é razoável que se considere como inconstitucional a imposição de lockdown por não existir, efetivamente, a decretação de Estado de Sítio ou de Defesa, devendo imperar, ainda que momentaneamente, a descentralização desta decisão.

Hoje temos cenários diferentes em nosso país: a) o Sul vive o seu pico, estando o número de mortes e casos em alta; b) a região central encontra maior estabilidade; c) a região norte mostra seus números em franca queda.

 

Diante deste cenário, devemos refletir o seguinte ponto: é ilógico e impraticável que a instauração de lockdown (bloqueio total) dependa de um produto legislativo federal e que o mesmo seja capaz de regular, de maneira equânime, todas as regiões brasileiras.

 

Fosse o Brasil um país de dimensões similares ao do vizinho Uruguai, talvez a possiblidade fosse maior. Mas a realidade mostra que não é. A proporcionalidade e o interesse local devem ser levados em consideração.

 

E no que diz respeito ao lockdown instaurado na cidade de Pelotas/RS, os princípios acima mencionados se justificam, senão vejamos: a) média de 36 casos novos por dia; b) número totais de leitos reduzidos e permanentemente lotados; c) cidade é referência na região e vem recebendo pacientes de várias cidades.

 

Da decisão do Egrégio Tribunal deste Estado, tem-se que perdeu objeto o lockdown municipal proposto, já que: a) volta a possibilidade de locomoção, extinguindo-se, assim, o objetivo de freio dos casos e de tutelar o bem jurídico da vida; b) mantém as atividades comerciais fechadas, o que, também, não ajuda em eventual justificativa de incentivo ao comércio, a economia local e a tutela do direito econômico, já que não haverá consumo.

 

Sendo assim, vemos que, na verdade, o Decreto Municipal, com as alterações judiciais, ganha o escopo de garantir um feriado prolongado de luxo, já que possibilita às pessoas irem para outras casas de parentes e, sem o comércio aberto, tutela, a bem da verdade, o direito ao lazer, travestindo-se do sofisma de proteção do direito de ir e vir.

 

É hora de menos hermenêutica jurídica e mais empatia. O que realmente importa, neste momento, são os fatos que ocorrem, ainda que, documentalmente, as regras indiquem o contrário.

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*Matheus Passos da Silva é advogado e sócio proprietário do Escritório MPS Advocacia e Consultoria Jurídica, de Pelotas/RS.

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