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A abusividade da recusa da abertura de conta-salário e a mitigação da liberdade contratual

Como a mitigação da liberdade de contratação entre instituição financeira e consumidor caracteriza a recusa da abertura de conta-salário como prática abusiva.

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Atualizado às 11:44

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Regulamentada pela Resolução 3.402/06 do Banco Central do Brasil, a conta-salário por definição da própria instituição1 "é uma conta aberta por iniciativa e solicitação do empregador para efetuar o pagamento de salários aos seus empregados. Não é uma conta de depósitos à vista, pois somente pode receber depósitos do empregador, não sendo admitidos depósitos de quaisquer outras fontes." Desde a sua criação, tem sido um instrumento facilitador no pagamento dos proventos mensais dos funcionários e por isso, muito utilizado pelas empresas empregadoras.

Uma situação corriqueira surge então: pode a instituição financeira se negar a abrir a conta-salário, ainda que pela existência de débitos anteriores junto à instituição?!

Como a própria definição sugere, a conta-salário é criada a partir de um convênio da empresa pagadora, a empregadora, e a instituição financeira. Sendo assim, ao contratar um funcionário, a empregadora, não somente solicita que a conta seja aberta, mas impõe esta condição para o pagamento regular dos proventos mensais.

Diante da existência de qualquer elemento extraordinário, mais comumente a existência de débitos anteriores do funcionário na instituição, o banco então, se recusa a abrir a conta ainda que, o funcionário esteja munido de toda a documentação necessária, inclusive, a carta de encaminhamento da empregadora.

Sendo a instituição financeira uma empresa privada, e a relação estabelecida entre ela e o consumidor sendo contratual de natureza consumerista2, a empresa só estará obrigada a fazer ou deixar de fazer algo em virtude de lei3. Aplicando a interpretação extensiva, entende-se por lei, todas as normas jurídicas vindas não só de lei, mas também, de resoluções, instruções normativas, cartas circulares, entre outras. Assim sendo, a instituição financeira só seria obrigada a abrir a conta-salário se assim estivesse disposto em qualquer texto normativo. Nesse caso, o assunto poderia ser regulamentado por lei, ou ainda por atos internos do Banco Central do Brasil (BCB).

Assim, os bancos vêm fundamentando sua recusa no disposto no Art. 2º da Resolução 4.753/19, que prevê a obrigação dos bancos em adotar procedimentos e controles que permitam verificar a qualificação dos titulares das contas. Qualificação essa que é definida como o conjunto de informações que permite às instituições apreciar, avaliar, caracterizar e classificar o cliente com a finalidade de conhecer o seu perfil de risco e sua capacidade econômico-financeira4. Inseridas nesse contexto, estão as informações de crédito do funcionário.

Incorreta a aplicação desse dispositivo para as recusas de abertura de conta-salário porque o Art. 1º da Resolução 4.753/19 traz que o texto estabelece os requisitos a serem observados pelas instituições financeiras na abertura, na manutenção e no encerramento de conta de depósitos. Por definição o próprio BCB estabelece que "a conta-salário não é movimentável por cheques e não admite outro tipo de depósito além dos créditos da entidade pagadora." Dessa forma, temos claramente que a conta-salário não é uma conta de depósitos e por isso, não se admite que a recusa se justifique com base no dispositivo citado.

E ainda que aplicáveis a conta-salário, o texto da Resolução não impede que o banco, diante de restrições ao crédito ou, débitos anteriores junto a instituição, abra as contas-salário, quando entregue a documentação devida pelo funcionário e existência de convênio prévio entre a própria instituição e a empresa pagadora.

Com a inaplicabilidade das normas constantes na Resolução 4.753/19, não há até o momento, texto normativo que obrigue ou impeça a abertura de contas-salário, ainda que os titulares contenham as restrições já citadas. 

Analisando a relação estabelecida, neste caso, entre consumidor e banco temos que essa relação é contratual e, portanto, em teoria está presente a autonomia da vontade, elemento essencial e caro ao ordenamento jurídico brasileiro5. Logo, ambas as partes, não são obrigadas a contratar ou prestar determinado serviço, sendo lícita essa recusa. Contudo, a liberdade de contratar só está presente para o empregador, que firmou convênio com a instituição financeira que lhe pareceu mais conveniente. O funcionário e consumidor ficou vinculado a um contrato que ele nem mesmo participou, e em relação a ele se esvaiu o poder de escolha. A autonomia da vontade é direito que pode ser suavizado nas relações e, a partir disso temos o que chamamos de liberdade de contratação mitigada.

 A mitigação da autonomia da vontade, contudo, traz a relação de consumo pretendida entre o consumidor e a instituição financeira, um desequilíbrio, uma disparidade. É essa disparidade que viola o direito do consumidor, porque o desequilíbrio em si, causado por esta mitigação, restringe direito fundamental do consumidor, inerente à natureza do contrato que ameaça o equilíbrio contratual, ofendendo o Princípio da Equidade. É esse desequilíbrio que traz vantagem manifestadamente excessiva6 à instituição financeira, portanto, caracterizando a prática como abusiva.

Um dos fundamentos estruturais do Direito do Consumidor, firmado pelo próprio CDC é o Princípio da Equidade. Em uma definição simplista e completa, Sérgio Cavalieri Filho define equidade como a ideia fundamental da igualdade real, de justa proporção7. Esse princípio, aliado ao Princípio da Vulnerabilidade do Consumidor8 direcionou também, o objetivo da Política Nacional das Relações de Consumo e do próprio Código de Defesa do Consumidor que é de, também, coibir e reprimir de forma eficiente todos os abusos praticados no mercado de consumo9 de forma harmônica.

A justa proporção proposta pelo Princípio da Equidade tutela o equilíbrio de toda a relação. Dela deriva a harmonização dos interesses10 que, assim como o nome sugere, visa equilibrar o interesse de todas as partes inseridas na relação, ou seja, tanto a proteção ao consumidor, quanto o desenvolvimento econômico e tecnológico11. Por isso, é de suma importância que seja possível que essa autonomia da vontade seja mitigada, mas, também, que essa relação seja reequilibrada.

Em decisão sobre o tema, a 26ª Câmara Cível do TJ/RJ, através do voto do desembargador-relator Wilson do Nascimento Reis, julgando a Apelação Cível 0149159-53.2016.8.19.0001 reconheceu a necessidade de reequilíbrio da relação consumerista com a mitigação da liberdade de atuação da instituição financeira:

"Ocorre que, tal mitigação deve atingir ambas as partes. Assim, se é vedado ao empregado, em razão de convênio do qual nem mesmo participou, optar por contratar com outro banco, também este deve ficar impossibilitado de se negar a celebrar contrato com funcionário da empresa."

Assim sendo, recusar solicitação de abertura de contas e portanto, inviabilizar o pagamento de verbas salariais e alimentares, com base na existência de débitos anteriores, é vantagem manifestadamente excessiva, por isso, prática abusiva com base no artigo 39, V, do Código de Defesa do Consumidor.

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1- Disponível em: Clique aqui.

2- Art. 3º, §2º - Código de Defesa do Consumidor: "Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes de caráter trabalhista."

3- Art. 5, II, CF - Princípio da Legalidade

4- Art. 2º, §1º da Resolução 4.753/2019 - Banco Central do Brasil.

5- A autonomia da vontade é direito fundamental trazido pela Constituição Federal que garante ao brasileiro e ao residente estrangeiro, a liberdade de forma ampla e ainda, a legalidade da obrigação, ou seja, só estão obrigados a fazer ou deixar de fazer o previsto em lei.

6- Art. 51, §1º, I, II e III - Código de Defesa do Consumidor

7- FILHO, Sérgio Cavalieri. Programa de Direito do Consumidor. São Paulo: Atlas. 5ª Ed, 2019, p. 74.

8- José Geraldo Brito Filomeno conceitua essa vulnerabilidade, como a fragilidade dos consumidores, em face dos fornecedores,  quer no que diz respeito ao aspecto econômico e de poder aquisitivo, quer no que diz respeito às chamadas informações disponibilizadas pelo próprio fornecedor ou ainda técnica. (Direitos do Consumidor. São Paulo: Atlas. 15ª Ed., 2018).

9- Art. 4º, VI,

10- Art. 4º, III.

11- O desenvolvimento econômico e tecnológico são princípios que se funda a ordem econômica e estão previstos no art. 170 da Constituição Federal, assim como a proteção ao consumidor.

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*Gabriela de Freitas Novaes é advogada no escritório GN Advocacia, formada pela Universidade Salgado de Oliveira, especialista em Direito Civil e Processo Civil pelo Instituto Goiano de Direito (IGD).

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