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Transporte Rodoviários de Pessoal: Excesso de regulação e os prejuízos ao consumidor

Alyne Calistro

É evidente que o fomento ao setor de transporte privado coletivo é necessário para a construção de um mercado mais competitivo, que trará mais liberdade de escolha ao consumidor e consequentemente melhor qualidade de serviços e preço justo.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Atualizado às 13:26

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O Brasil apresenta extensão territorial imensa, com dimensões continentais, sendo o 5º maior país do mundo1. Assim, apenas pelos seus aspectos geográficos o deslocamento dentro do próprio país não é fácil, atravessar de norte ao sul demanda tempo,dinheiro e muita paciência! E para tornar mais dificultoso tal processo, apesar dos muitos quilômetros de malha viária2 construída por todo território, o transporte público terrestre não é efetivo.

É através das rodovias que a maior parte da população de desloca, por veículos individuais ou através do transporte público coletivo, seja para chegar à universidade ou ao trabalho seja para fins turísticos ou de lazer. Tais necessidades denotam que a questão do deslocamento não se encerra apenas em grandes distâncias, mas verifica-se a problemática também ao observar o escasso serviço de transporte público coletivo oferecido à população quando se trata de deslocamentos entre municípios e entre estados limítrofes e regionais.

Ao verificar o transporte público coletivo disponibilizado aos consumidores, seja com destino a grandes cidades ou para pequenas cidades vê se poucas ofertas de linhas. Ainda, as linhas disponíveis não apresentam qualquer flexibilidade, mas sim horários fixos e predeterminados, bem como custo elevado, não levando em consideração grande parte da população, que acaba sendo excluída, tornando a prestação de serviço de baixa qualidade e verdadeiramente não efetiva.

A ausência de linhas que conectam as cidades do interior do país, com maior flexibilidade de horários, com maior frequência e que atendam a grupos específicos com desejo de viagens dispersas reduz o poder de mobilidade do consumidor, e consequentemente, acarreta prejuízos econômicos e sociais.

De forma indireta a dificuldade em se deslocar também leva ao não fomento da economia regional, que poderia ter seu turismo e setor hoteleiro mais explorado, especialmente hoje em que o turismo nacional deve ser incentivado3, tendo em vista os desdobramentos da Pandemia.

Assim, tornar o transporte coletivo de passageiros mais abrangente (e democrático) se faz urgente para atender ao mercado consumidor que não é visto pelo Estado. A atuação do setor privado, para criar possibilidades de ir e vir das pessoas pode ser uma solução.

Para tanto, o incentivo ao uso da tecnologia e o uso de meios de transporte alternativos ao serviço público como o vanpool/buspool e transporte de fretamento, devem ser observados para garantir a efetividade ao direito ao transporte, estabelecido no artigo 6º da Constituição Federal4.

Esclarece que o vanpool ou buspool, seguem o mesmo princípio do carpool, termo inglês para carona onde o condutor utiliza seu próprio veículo para transportar a si e outras pessoas com destinos de próximos aos seus. Há revezamento de motoristas e não existe o intuito lucrativo, apenas compartilhamento das despesas do veículo como combustível e pedágios5.

Outra alternativa é o transporte de fretamento, de caráter coletivo e privado6, que pode ser realizado por pessoa física ou jurídica, a depender do tipo de fretamento. Cabe esclarecer que para o exercício dessa atividade é necessário que a empresa de fretamento urbano realize registro na ANTT - Agência Nacional de Transportes Terrestres- e no Poder Público estadual ou municipal, a depender de sua atuação, bem como as viagens a serem realizadas devem ser previamente definidas e comunicadas ao órgão responsável.

Há de se enfatizar a segurança que o transporte de fretamento oferece, posto que além do registro supramencionado, há de se fazer também o registro da frota, que deve cumprir as exigências do Poder Público. Assim como é obrigatória a inspeção técnica, registro da viagem e menção de eventuais cidades que serão realizadas paradas, caso haja mais de uma, relação de passageiros transportados e obrigatoriedade de seguro de responsabilidade civil, e registro do motorista profissional.

Ademais, o fretamento atende as necessidades do mercado, visto que os horários, escolha da linha e valores são flexíveis e atingem a demanda do consumidor7. Entretanto, hoje não é possível alcançar o real exercício de escolha do consumidor e o desenvolvimento efetivo de transportes alternativos, pois a atividade de fretamento enfrenta excesso burocrático para seu desenvolvimento devido aos inúmeros regulamentos e também à restrição do exercício da atividade apenas para o circuito fechado.

A imensa quantidade de regulamentação do setor, sua complexidade, pluralidade institucional, que varia de estado para estado, além dos regulamentos e registros na ANTT, bem como a ausência de comunicação entre os órgãos formam grande mecanismo de ineficiências que inviabilizam o setor.

Cabe citar, como exemplo, as diferenças de regulamento nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, no primeiro a validade do registro do prestador de serviço é de 5 anos já no segundo estado a validade é de 1 ano, ambos renovados sucessivamente. Em São Paulo as empresas prestadoras que podem realizar esse tipo de serviço são e somente são8: empresas de transporte coletivo intermunicipal de passageiros e pessoas físicas (limitadas ao fretamento de estudantes), sendo exigido para cada tipo de prestadora documentos diferentes para a emissão da licença/autorização.

Ainda, dentro do próprio estado de São Paulo caso a prestadora de serviço deseje atuar em todo o estado deve observar 4 regramentos diferentes: municipal, metropolitano, intermunicipal não metropolitano e interestadual9, cada um com suas especificidades e critérios.

Já no estado do Rio de Janeiro10 as prestadoras de serviços podem ser empresas de transporte rodoviário de passageiros, cooperativas de transporte rodoviário de passageiros, agências de turismo (fretamento turístico) e empresas de locação de veículos (fretamento por meio de locação/aluguel de veículos com motoristas).

Ao todo são 27 regulamentos estaduais mais os regramentos da ANTT, sem citar os regulamentos municipais, ou seja; o excesso regulatório é evidente, o que torna o exercício da atividade oneroso.

Outro grande impeditivo para o desenvolvimento do ramo é a possibilidade de realização das atividades somente através da modalidade circuito fechado, que caracteriza se pela realização de viagens de ida e volta para os mesmos locais de origem e destino e para o mesmo grupo de pessoas.

Tal disposição é excessivamente restritiva, tornando demasiado limitado o mercado de fretamento, sem qualquer justificativa plausível. Cabe informar que referida determinação encontra-se na Resolução nº4777/2015, que dispõe sobre a regulamentação da prestação do serviço de transporte rodoviário coletivo interestadual e internacional de passageiros realizado em regime de fretamento, em seu artigo 3º, inciso XIV11.

Todo esse excesso de regramento vai de encontro com os próprios fundamentos constitucionais, sendo que a Carta Magna já em seu artigo 1º, inciso IV12 preconiza a livre iniciativa como um dos fundamentos do estado democrático de direito, assim como novamente o menciona em seu artigo 17013 da ordem econômica, em conjunto com os princípios da livre concorrência e defesa do consumo.

Ainda, em que pese a atividade de transporte coletivo não constituir monopólio da União, com base no artigo 177 da CF14 que apresenta rol taxativo de tais atividades, a existência dessa grande variação de regras e preenchimento de procedimentos para o exercício da atividade demonstra o interesse do próprio estado em inviabilizar o desenvolvimento econômico do setor.

Há de se lembrar que nem mesmo a saúde15 e a educação16 são executadas de forma exclusiva pelo estado nem recebe tratamento tão inibidor, por que deveria ser o transporte privado coletivo?

Assim, diante não só dos aspectos geográficos do país, mas com fito a oferecer verdadeiro poder de mobilidade e de transporte para todos, é necessário que o transporte terrestre privado não sofra tamanha inibição através dos inúmeros regulamentos, seja de ordem federal, estadual ou municipal, que se encontram totalmente desatualizados e contrários aos próprios fundamentos constitucionais.

Ainda, cabe citar a recente Lei 13.874/19 que trata sobre o direito e liberdade econômica, onde em seu artigo 4º17 preconiza que a administração pública deve evitar o abuso do poder regulatório como forma indevida de criar reserva de mercado, impossibilitar a entrada de novos agentes econômicos, o impedimento da adoção de novas tecnologias e modelos de negócios e introduzir limites à liberdades econômicas.

Do exposto, é evidente que o fomento ao setor de transporte privado coletivo é necessário para a construção de um mercado mais competitivo, que trará mais liberdade de escolha ao consumidor e consequentemente melhor qualidade de serviços e preço justo.

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1 Segundo a Comissão Nacional de Classificação o país tem 8.514.876km2 clique aqui, acessado em 16/09/2020.

2 O Brasil apresenta 1.720.700 km de rodovias. clique aqui,  acessado em 16/09/2020.

3 Campanha estimula valorização do turismo interno após pandemia: Iniciativa da Confederação Nacional de Municípios se soma a esforços do Ministério do Turismo e busca definir um plano conjunto para a retomada da atividade. clique aqui, acessado em 17/09/2020.

 

4 Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Disponível em: clique aqui, acessado em 16/09/2020.

5 CONDEFERAÇAO NACIONAL DO TRANSPORTE, Transporte e Desenvolvimento: Transporte Rodoviário de passageiros em regime de fretamento, p.20. Ed.2017.

6 Lei nº12.587/2012, Art. 4º Para os fins desta Lei, considera-se: (...) VII - transporte privado coletivo: serviço de transporte de passageiros não aberto ao público para a realização de viagens com características operacionais exclusivas para cada linha e demanda. Dsiponível em: clique aqui, acessado em 16/09/2020.

7 CONDEFERAÇAO NACIONAL DO TRANSPORTE, Transporte e Desenvolvimento: Transporte Rodoviário de passageiros em regime de fretamento, p.17. Ed.2017.

8 Decreto Estadual nº 48.073/03 Disponível em: clique aqui, acessado em 17/09/2020.

Decreto Estadual nº 29.912/89. Disponível em: clique aqui, acessado em 17/09/2020

9 CONDEFERAÇAO NACIONAL DO TRANSPORTE, Transporte e Desenvolvimento: Transporte Rodoviário de passageiros em regime de fretamento, p.39. Ed.2017.

10 Decreto Estadual nº 3893/81 clique aqui

11 XIV - Circuito fechado: viagem de um grupo de passageiros com motivação comum que parte em um veículo de local de origem a um ou mais locais de destino e, após percorrer todo o itinerário, observado os tempos de permanência estabelecidos nesta Resolução, este grupo de passageiros retorna ao local de origem no mesmo veículo que efetuou o transporte na viagem de ida;

12 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

13 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...)IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor;

14 Art. 177. Constituem monopólio da União: I - a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos; II - a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro; III - a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores; IV - o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem; V - a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados, com exceção dos radioisótopos cuja produção, comercialização e utilização poderão ser autorizadas sob regime de permissão, conforme as alíneas b e c do inciso XXIII do caput do art. 21 desta Constituição Federal.

15 Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.

16  Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: I - cumprimento das normas gerais da educação nacional; II - autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.

17 Art. 4º  É dever da administração pública e das demais entidades que se vinculam a esta Lei, no exercício de regulamentação de norma pública pertencente à legislação sobre a qual esta Lei versa, exceto se em estrito cumprimento a previsão explícita em lei, evitar o abuso do poder regulatório de maneira a, indevidamente:I - criar reserva de mercado ao favorecer, na regulação, grupo econômico, ou profissional, em prejuízo dos demais concorrentes;II - redigir enunciados que impeçam a entrada de novos competidores nacionais ou estrangeiros no mercado;(...)IV - redigir enunciados que impeçam ou retardem a inovação e a adoção de novas tecnologias, processos ou modelos de negócios, ressalvadas as situações consideradas em regulamento como de alto risco;VII - introduzir limites à livre formação de sociedades empresariais ou de atividades econômicas;. Disponível em: clique aqui, acessado em 17/09/2020.

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*Alyne Calistro é investigadora do NOVA ConsumerLab. Graduada em direito pela faculdade de direito da universidade presbiteriana Mackenzie. Pós graduada em direito do trabalho pela PUC-SP. Mestranda em direito internacional e europeu pela NOVA School of Law, Universidade NOVA de Lisboa.

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