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A nova regulação dos acordos de leniência: fim do bicho de sete cabeças?

Se a longa formulação principiológica do acordo de cooperação técnica aponta na direção correta, o plano de ação deixa a desejar.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Atualizado às 12:27

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No dia 6 de agosto, por iniciativa do STF, a Advocacia Geral da União, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, o Tribunal de Contas da União e o próprio STF, assinaram acordo de cooperação técnica (ACT) com o objetivo de aprimorar o ambiente regulatório dos acordos de leniência no Brasil. A Procuradoria Geral da República, apontada como Signatária, deixou de assinar o acordo em razão do posicionamento da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF.

Acordos de leniência são aqueles assinados entre autoridades investigativas e pessoas jurídicas implicadas na prática de atos lesivos à administração pública e infrações conexas, com a redução das sanções aplicáveis em troca da cooperação com as investigações. Essa ferramenta, que segue a tendência internacional de desenvolvimento de instrumentos cooperativos de investigação, foi formalmente introduzida na legislação brasileira anticorrupção por meio da Lei 12.846/2013, a Lei Anticorrupção. 

A celebração do ACT segue anos de controvérsia na agenda anticorrupção, que ao lado de todas as polêmicas acumuladas, tem nos acordos de leniência seu maior "bicho de sete cabeças" jurídico. A despeito da centralidade do instrumento para investigação e punição de atos de corrupção nos anos recentes, a inadequação da regulação existente e a insuficiência da coordenação entre autoridades tornou esses acordos objeto de conflito entre as muitas cabeças da hidra anticorrupção no Brasil. Sua mitologia foi assim construída com profundas divergências sobre a distribuição de competências e os parâmetros e procedimentos para celebração desses acordos, em uma fábula tanto central quanto paralela à própria Lava Jato  e que, certamente, não se encerra aqui.

Muitos foram os caminhos propostos ao longo destes anos para dar rumo a essa história: do frequentemente ventilado, mas nunca formalizado, "guichê único" - que reuniria todas as autoridades pertinentes em uma mesa única de negociações - à natimorta tentativa de reforma legislativa por meio da MP 703 de 2015.

De lá pra cá, os acordos de maior notoriedade no âmbito da Operação Lava Jato seguiram o ritual não escrito em que as negociações se iniciariam com o MPF, endereçando em conjunto ou em paralelo as repercussões cíveis e criminais (estas em relação às pessoas físicas vinculadas à pessoa jurídica colaboradora). O Executivo Federal, por meio da CGU e da AGU, entraria em segundo plano, para celebração de acordos cujo ponto central tende a ser a quantificação do dano provocado e o compromisso de não aplicação de sanções administrativas, sendo a declaração de inidoneidade a principal delas. Correndo por fora, o Tribunal de Contas da União, enquanto guardião das contas públicas federais, poderia questionar os valores acordados se os julgasse insuficientes para fazer frente à necessidade de reparação.

Mas isso nem sempre foi verdade. Esse ritual espontâneo pôde ser facilmente invertido quando a proponente do acordo era multinacional ou empresa de capital disperso. Em contraste com as empresas brasileiras sob controle familiar que alimentaram as páginas iniciais da Lava Jato, aquelas tiveram mais facilidade em recorrer inicialmente ao Executivo Federal. A hipótese é que, nesse caso, o destino de seus prepostos, a ser selado pelas investigações criminais, não seria elemento crítico na decisão de colaborar ou não com as investigações. Daí a pouca ou nenhuma urgência em se recorrer às autoridades criminais.

Só que nem o roteiro principal, nem o alternativo são obrigatórios e qualquer outro caminho, tanto quanto possível, tornou-se viável nestes anos de leniência anticorrupção, a depender das circunstâncias. Os acordos de leniência viraram assim uma espécie de chave-mestra, servindo a muitas funções (ou a nenhuma delas): obter provas sólidas para condenação de agentes políticos, socorro reputacional às empresas envolvidas, solução consensual de investigações para evitar anos de batalhas judiciais, preservação da capacidade competitiva de players nacionais, etc.

O ACT, que traz em si o ineditismo de produzir um aparente consenso entre algumas dessas autoridades, pousa sobre essa confusa teia de possibilidades e expectativas. O documento ocupa metade de suas páginas com uma declaração de princípios e "pilares" que em muito ecoam o debate dos últimos anos: a ideia de que o Estado precisa fazer sentido. Isto é, independentemente de quantas sejam as autoridades com possível competência para celebrar ou interferir nesses acordos - ou quantas cabeças surjam da hidra, para gastar a metáfora -, o resultado de suas atuações somadas deve ser racional e conferir ao sistema jurídico suficiente segurança para que os incentivos à cooperação sejam preservados.

Se a longa formulação principiológica do documento aponta na direção correta, o plano de ação, ali chamado de "ações operacionais", deixa a desejar. A primeira delas estabelece o compromisso mútuo de comunicar às demais autoridades a existência de fatos que se sujeitem à competência das demais, desde que tal medida "não coloque em risco os trabalhos em andamento". Em um contexto em que boa parte das investigações será sigilosa, em que podem estar pendentes medidas importantes para obtenção de provas, como pedidos de busca e apreensão, e muitos dos investigados, se não pertencentes à elite política ou econômica, com elas terão conexões, a percepção de risco envolvido em convidar mais um à mesa tende a ser alta. Sem uma articulação ampla capaz de efetivamente criar um relacionamento cooperativo na ponta, o cumprimento desse item tende a se traduzir em frias folhas de ofícios informando sobre a existência de uma investigação, quando não concluída, bastante madura.

Chama a atenção também que o documento não mencione a criação de um banco de dados unificado referente a essas investigações (ainda que limitado apenas a procedimentos públicos, por exemplo), por meio do qual fosse possível a todas as autoridades interessadas verificar com celeridade a existência de investigação contra determinada pessoa jurídica, os atos a ela relacionados, eventuais informações sobre pessoas jurídicas utilizadas para lavagem de capitais, entre outras informações. Se o objetivo é celeridade e coordenação, avançar em uma agenda de produção e gerenciamento de dados eficiente parece ser crucial.

A segunda ação operacional diz respeito à comunicação ao TCU, pela CGU e pela AGU, de negociação de acordo em que haja indícios de prejuízo ao erário, a fim de que juntos estabeleçam o valor a ser pago a título de ressarcimento. O documento, assim, caminha para consolidar a reparação do dano como condição necessária para celebração de acordos, o que, à risca, não é exigido pela Lei Anticorrupção. Nesse sentido, a disposição retira versatilidade e burocratiza os acordos de leniência.

Em um cenário em que os fatos e provas apresentados pela empresa sejam de interesse para responsabilização de outros agentes públicos e privados, mas o valor ou mesmo a existência de dano ao erário sejam controversos, o acordo pode ser inviabilizado. Ainda que o ACT lide com a possibilidade de alguma divergência entre as autoridades, não parece lidar com a possibilidade de uma divergência insuperável entre proponente e autoridades neste ponto, ou ainda, de ser mais conveniente para as autoridades buscar a reparação por via específica. Caminha assim no sentido de fazer dos acordos de leniência mais um mecanismo de recuperação de valores do que de obtenção de provas para instruir investigações.

A terceira e a quarta operacionais dizem respeito à importante ideia de que as provas apresentadas durante a negociação não podem ser utilizadas antes de sua formalização e que, depois disso, não podem ser utilizadas contra a empresa colaboradora. Aqui, o ACT parece não enxergar a complexidade de negociações paralelas envolvendo as esferas cível, administrativa e criminal, em que um dos acordos pode vingar enquanto os outros fracassam ainda que todos eles decorram de um único esforço de colaboração da empresa e de seus empregados. Se formalizado o acordo com a empresa, mas frustrada a tentativa de colaboração premiada de um empregado que contribuiu para a leniência, podem ser utilizadas contra ele de cuja produção ele participou? O ACT não esclarece. Com isso, nos casos em que houver esse risco, a celebração de acordos leniência tenderá a ser secundária à solução da situação das pessoas físicas na esfera criminal, o que não altera de forma substantiva o cenário atual.

Enquanto a quinta ação diz respeito à possibilidade de responsabilização judicial de terceiros com base nos acordos celebrados, a sexta se relaciona ao que se chamou de "cobranças em duplicidade", indicando que as autoridades "procurarão estabelecer" formas de compensação e abatimento de valores quando destinados ao mesmo ente ou relacionados ao mesmo fato, negligenciando que o debate mais difícil aqui não são as cobranças "em duplicidade", e sim um somatório de penalidades que pode ser simplesmente proibitivo ou desestimulante para a celebração de acordos, já que se o destino dos valores pode ser variado, a fonte pagadora será a mesma.

O ACT abraça uma noção de acordo de leniência que tem a ver com casos de corrupção capazes de rechear as páginas de jornais por dias, em que o proponente tem recursos para enfrentar uma negociação burocratizada e com expectativa de desembolso de grandes quantias. Para as empresas cuja celebração de acordos de leniência é quase inescapável, por já estarem implicadas em investigações bem lastreadas, o ACT apontaria para um caminho relativamente organizado ainda que dispendioso. O esforço feito parece ter sido o de cobrir os "e se" que aparecem em uma negociação desse tipo, que de fato são muitos.

Para os "e se" não contemplados no documento (e não são poucos) e para as empresas Brasil afora sem os recursos necessários para percorrer esse caminho, não cooperar com as investigações deve seguir como a opção mais econômica, especialmente nos casos em que, sem sua colaboração, o ilícito tenha poucas chances de conhecer a luz do dia. Sabendo-se que a corrupção no país opera em escalas que nem sempre são as da Lava Jato ou do Mensalão, uma regulação mais flexível de acordos de leniência seria importante para que outras histórias pudessem ser contadas, ampliando o alcance dos acordos de leniência como instrumento de uma política anticorrupção.

A polêmica não escrita, e elemento-chave para o fundado ceticismo em relação ao ACT, é a previsão de que o Ministério Público saia de cena na negociação desses acordos. O MP, que deu a largada dos acordos de leniência em 2015 e os faz com base na interpretação sistêmica de uma salada de normas domésticas e internacionais, cederia o papel de negociador ao Executivo Federal.

Em sua Nota Técnica sobre o ACT, a 5ª CCR tece diversas críticas ao documento e além de reafirmar a competência do MP par celebração dos acordos, critica a ausência de outros órgãos investigativos (como Cade, Bacen e CVM), questiona as estruturas de governança da cooperação e aponta para a insegurança jurídica para acordos pretéritos e futuros. Além disso, ecoa os questionamentos relacionados à maior independência do MP quando comparado ao Executivo e à expertise desenvolvida nestes anos de Lava Jato.

A Nota Técnica, assim, sinaliza que a PGR não conta com apoio interno para celebração do acordo nos moldes propostos. Se uma coisa a experiência até aqui nos ensina é que a agenda anticorrupção é tão política (no sentido de política institucional) quanto jurídica. Acordar com a PGR que procuradores e promotores estarão alijados da negociação de acordos de leniência, um dos instrumentos que lhes é mais caro, no momento em que membros da instituição estão em pública confrontação com essa mesma PGR parece ser a fórmula para não pacificar o tema.

Na contagem de cabeças do ACT do Supremo, seis são os possíveis signatários. Apenas cinco assinaram. A sexta, a da PGR, vive um conflito interno. Sem certa acomodação do tema com os membros do MP, o provável é que continuem assim: batendo cabeças. E, nesse caso, serão mais de sete.

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*João Victor Freitas Ferreira é advogado, mestre em Direito Comercial pela USP, LL.M. pela Harvard Law School.

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