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Uma corte aterrorizada

A revogação da soltura de André do Rap parece ser a exceção que comprova a regra das prisões preventivas no país: reflexo de um judiciário que, tomado pelo medo, só tem a oferecer aos acusados seu encarceramento.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Atualizado às 13:16

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Dia 14/10, em decisão histórica da 3ª seção, o Superior Tribunal de Justiça decidiu de forma unânime pela concessão de habeas corpus coletivo em favor de todos os presos que tiveram sua liberdade provisória condicionada ao pagamento da fiança1. Dali a quase um quilômetro, no entanto, o insustentável era sustentado na Praça dos Três Poderes.

Trata-se da sessão que terminou somente ontem, no Supremo Tribunal Federal, no julgamento da SL 1.395, que submeteu ao referendo da corte a decisão tomada pelo ministro Luiz Fux, de suspender a liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio no HC 191.836, em que figura como paciente André de Oliveira Macedo, popularmente conhecido como "André do Rap".

Importante destacar, nesse sentido, que a pretensão do julgamento, ao menos em tese, era de analisar a legalidade da medida que, sob o argumento de "risco de grave lesão à ordem e à segurança", suspendeu a medida liminar concedida por Marco Aurélio. Perigosa, para dizer o mínimo, a discussão, vez que versa sobre a possibilidade de um membro da corte intervir diretamente sobre as decisões tomadas por outro colega. Em outras palavras, sem exagero, estávamos diante do chancelamento da reforma de decisões pelo mesmo órgão que as prolata.

Julgou-se tudo, menos a dita legalidade da decisão de suspensão. No lugar, o debate foi colonizado pelo mesquinho populismo penal, pelo falacioso discurso de defesa social e por um nítido pânico moral: o que se observou, sem sombra de dúvida, foi uma análise que sequer poderia ser feita no próprio habeas corpus cuja liminar foi concedida e agora, suspensa. Tudo isso meio a erros de sintaxe que, se cometidos em prova, decerto não garantiriam ao examinado a nota necessária para sua aprovação.

Debruçaram-se os ministros sobre os motivos que justificariam o cárcere cautelar de André do Rap, discorrendo sobre a "ordem pública" que genericamente integra a vasta massa de decisões que, diuturnamente, mantém encarcerados milhares de brasileiros. Nada apontaram sobre a ordem pública que seria apta a ensejar a suspensão da liminar concedida por Marco Aurélio dentro dos estritos limites da legalidade.

Legalidade essa que, impassível de distorções, se apequenou diante da nova bússola decisória do Supremo, a colegialidade. Colegialidade essa que sequer faz muito sentido, já que dos últimos posicionamentos do Supremo, tem significado a mera submissão de entendimentos divergentes da corte ao entendimento majoritário ali professado. Ora, não nos enganemos pela aparência: a essência da função exercida pelos ministros que ocupam aquelas cadeiras é discordar. Afinal, por mais que o tempo presente talvez faça necessária a lembrança e advertência, é missão constitucional da corte seu caráter contramajoritário.

Mesmo assim, insiste-se na dita colegialidade. Colegialidade essa que beira a hipocrisia, ao ser invocada na corte como parâmetro de defesa de sua institucionalidade, ao mesmo tempo que é utilizada para o assoberbamento de poder que franqueou a suspensão de medida liminar concedida por um colega do mesmo órgão. Mesma colegialidade que, em 2018, não nos esqueçamos, negou2 a liberdade a Lula e a outros 253 mil presos provisórios ao longo de todo país.

Não é esse um texto sobre a possibilidade ou não de suspensão de seguranças, no entanto; mais interessa aqui a análise interpretativa conferida ao parágrafo único do art. 316 do Código de Processo Penal, que, frise-se, deveria ser objeto do julgamento do HC 191.836, não da Suspensão de Liminar em questão.

Nesse sentido, vale dizer, desde logo, que se o juiz que decretou a prisão preventiva tivesse procedido à referida reanálise, o caso sequer teria chegado ao STF.

Mas assim não o fez. Diante da ordem de habeas corpus recebida, então, Marco Aurélio procedeu nos exatos dizeres da norma. Pela estrita inobservância da autoridade judiciária em reavaliar, de ofício, a prisão por ela decretada, após o prazo de noventa dias, a prisão foi relaxada.

E fato é que, para aqueles que acreditam que o legislador não utiliza palavras inúteis, ao atribuir nova redação ao parágrafo único, assim o quis.

Diferentemente da maior parte dos prazos adotados por nosso CPP, o parágrafo único do art. 316 atribui sanção específica à sua inobservância. Apesar da ginástica argumentativa pretendida pelos ministros, a sanção estabelecida é clara: a prisão torna-se ilegal. E prisão ilegal, ordena o art. 5º, inciso LXV, da Constituição da República, tem de ser imediatamente relaxada pela autoridade judiciária.

A conclusão óbvia do exposto acima e da interpretação do dispositivo não pode ser outra senão a seguinte: se o juiz, por qualquer motivo que seja, mantém-se inerte durante o prazo nonagesimal de reavaliação do decreto prisional, a prisão torna-se ilegal, e deve ser imediatamente relaxada. É fato que a soltura não é automaticamente realizada, afinal, não se abrem de súbito as portas das celas, se vencido o prazo. No entanto, diante dessa ilegalidade, deve o juiz proceder de uma única maneira: determinando referida soltura.

Não cabe, como foi apontado, defender que diante da inércia do magistrado, deveriam as partes instá-lo a manifestar-se, conforme uma interpretação que se diz teleológica e sistemática. Aqui, tomados pelo medo e pressionados pela pressão popular, os ministros dão azo ao inquisitório vício que pretende decretar prisões de ofício, mas que vê em suas revogações a necessidade de prévia provocação jurisdicional. A lei é clara. Atribui ao Estado o encargo de atentar-se ao período pelo qual mantém enjaulados seus custodiados.

Mas eis uma corte aterrorizada, que precisa a qualquer custo colocar o tráfico atrás das grades. Afinal, não estaria correta a constatação de que o tráfico é um crime sem vítimas: famílias são destruídas e é óbvia a correlação do crime com a violência e o crime organizado. Assim se estrutura a ponta do iceberg, como ensina Marcelo Semer3. E como resultado, haja vista que "a construção dos pânicos morais é a matriz do populismo penal4", no lugar do contramajoritário exercício de defesa de direitos, relativiza-se a presunção de inocência em nome de "direitos fundamentais da próxima vítima" e do combate à sensação de impunidade que "assusta o cidadão que anda na rua".

Está posto, portanto, o populismo penal. As vozes dos especialistas são substituídas pela voz do povo, e quando menos se vê, ameaça-se a ordem pública ao se utilizar o medo como instrumento de sua defesa. Faz-se da democracia refém dos pânicos morais que ela própria produz, conforme aponta Denis Salas5.

Eis, portanto, uma corte aterrorizada. Em choque, incorre nos mesmos erros que tem por missão combater. Amedrontada, debocha daqueles que esperam de si a combatividade necessária para garantia de direitos e a sobriedade necessária para a condução de seu trabalho constitucional.

A título de remate, fica ao leitor a reflexão: se o magistrado competente se esqueceu de reavaliar a prisão de André do Rap, líder de uma importante organização criminosa, que se dirá então do reexame do cárcere dos ninguéns, os donos de nada, primários, presos em flagrante dia e noite pela Polícia Militar. Ninguéns que, nos casos de tráfico, como se sabe, compreendem a esmagadora maioria dos presos preventivos no país.

A decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal na tarde de ontem é simplesmente errada. Pergunte-se a qualquer professor com formação rigorosa. A hermenêutica, aqui, amparada pela legalidade, não deixa dúvidas. O fato de a decisão ter sido tomada por maioria, na mais alta corte do país, não a torna certa, frise-se - apenas evidencia a legitimação do pânico moral como norte da agência judiciária do terceiro país que mais encarcera no mundo.

Eis, então, uma corte aterrorizada. Tranca a qualquer custo aqueles que teme, e esquece daqueles que nada tem a temer, trancando-os também. Diante do medo, só lhes tem a oferecer o flagelo.

Se no STJ parece residir alguma esperança de que há luz no fim do túnel, no STF parece desmanchar-se no ar qualquer alento, ao se revelar que, dos indícios, a luz parece ser, em fato, o trem vindo.

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1 HC STJ 568.693. Rel. Min. Sebastião Reis Júnior

2 HC STF 152.752. Rel. Min. Edson Fachin. Veja-se em especial o voto da Min. Rosa Weber.

3 SEMER, Marcelo. Sentenciando o tráfico: o papel dos juízes no grande encarceramento. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019. p. 109

4 SALAS, Denis. La volonté de punir: Essai sur le populisme penal. Paris: Pluriel, 2017. p. 110

5 SALAS, Denis. La volonté de punir: Essai sur le populisme penal. Paris: Pluriel, 2017. p. 16

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*Matheus Baptiston Herdy Menossi Pace é graduando pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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