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O tribunal do júri sob ataque: todos nós somos "justos", só que, ao que parece, alguns acreditam ser mais "justos" do que outros

As críticas e os debates sempre serão saudáveis, principalmente quando lidamos com a prestação jurisdicional.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Atualizado às 10:38

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A secular instituição do tribunal do júri sempre foi motivo de discussões quanto à sua eficiência na prestação jurisdicional e como sistema de pacificação social, nunca tendo sido imune às críticas. Argumentos favoráveis e desfavoráveis colocados à parte (pois não é esse o propósito neste momento), parece haver um consenso na ideia de que uma das principais características do tribunal popular é a sua maior sensibilidade ao examinar um fato narrado como crime pelo Ministério Público, e que o colegiado formado pelo povo tem o potencial de julgar este fato sem alguns dos vícios que naturalmente acometem os atores do Direito em razão de anos de profissão e sem o apego apaixonado à letra fria da lei.

As críticas e os debates sempre serão saudáveis, principalmente quando lidamos com a prestação jurisdicional. Entretanto, parece haver um movimento recente que não tem como propósito debater a manutenção da instituição do tribunal do júri em si como sistema de julgamento, mas sim que visa atacar a instituição a partir de uma concepção, desculpem a aspereza, potencialmente arrogante, de que alguns gozam de uma sabedoria superior para serem mais "justos" do que outros. Em outras palavras, uma concepção infeliz de que alguns são mais preparados para dizer o que é "justo" ou "injusto" na deliberação sobre um determinado fato posto sob julgamento.

Esse possível movimento é notado na recente quantidade de artigos produzidos e manifestações públicas desprestigiando a existência do tribunal popular e tentando abalar a credibilidade das decisões proferidas pelo Conselho de Sentença. As decisões absolutórias parecem ser a única Geni a ser alvo dos ataques. Promotores de Justiça e Procuradores estão entre os principais críticos, com especial destaque para as críticas direcionadas à absolvição do réu por parte do Conselho de Sentença com base no quesito obrigatório ("O jurado absolve o acusado?" - art. 483, § 2º, do CPP).

Desconfia-se que por trás de alguns dos artigos com títulos marcantes e das manifestações bem articuladas contrárias à existência do tribunal popular e de inconformismo quanto a algumas decisões tomadas por Conselhos de Sentença em todo o país, nas quais sobram retóricas bonitas e discursos sedutores sobre "injustiça", residem, na verdade, a manifestação implícita de potenciais traços de arrogância de pretensos sentimentos de sapiência elevada sobre "o que é fazer justiça". Desconfia-se que por trás de alguns desses discursos apelativos à (in)segurança pública, residem opiniões veladas de que "o jurado é ignorante" e, por que não, de que "o jurado é burro". Afinal, o que é a decisão baseada nos valores e convicções íntimas de uma pessoa leiga (e, no mais das vezes, sem nem mesmo ensino superior) perto da credibilidade e sabedoria presente na leitura refinada de nós, profissionais do Direito, seja você advogado, pós-graduado, concursado ou togado, sobre aquele mesmo fato submetido ao julgamento do jurado, não é mesmo?

O "justo" quase sempre está somente na retina de quem está defendendo uma determinada posição, e não posto de maneira objetiva num manual sobre "Justiça". Essa, aliás, é expressão de densidade profunda, analisada e estudada exaustivamente há séculos pela Filosofia. É por isso que Michael J. Sandel, professor da Faculdade de Direito de Harvard, escreveu um livro tão encantador sobre "Justiça - O que é fazer a coisa certa?". Aproveitando o gancho: o que é fazer a coisa certa, na condição de jurado, quando lhe é imposto o fardo de julgar um fato narrado pelo Estado-Acusação como crime doloso contra a vida?

Como qualquer pessoa, o jurado também tem os seus valores, dramas, sentimentos, crenças, história, religião etc. Tudo isso é levado em consideração pela nossa consciência, ou mesmo inconscientemente e numa filigrana de tempo, no momento de tomar qualquer decisão importante na vida, inclusive a de julgar um fato possivelmente criminoso cometido por um semelhante. É a própria Constituição Federal que autoriza o jurado a decidir, com soberania, de acordo com a sua consciência, na sua convicção metafísica ou transcendental, com base no sinal que "a vida lhe mandou" ou no que lhe disseram na seita, e até mesmo, apenas, com base naquilo que ele extrai da prova do processo (o que, convenha-se, é o que ocorre na maioria dos processos submetidos ao rito processual do júri, a despeito dos recentes alardes).

É por isso que se há algo de diferente - positivamente falando - no tribunal do júri é justamente a possibilidade de sete pessoas da sociedade compreenderem que determinado fato tido como criminoso é, digamos, compreensível "caso eu estivesse naquela mesma situação". Isso é até um clichê. O que não é clichê é que, além disso, o Conselho de Sentença, por vezes, costuma ser mais apegado à toda-aquela-técnica-jurídica-chata do que os próprios operadores do Direito (um pouco contraditório, não?), pois aos olhos do leigo "disparo onde estava a vítima" não necessariamente é o mesmo que "disparo em direção à pessoa da vítima", por exemplo. O jurado parece não tolerar manipulações de narrativas e dos próprios sentidos semânticos das palavras, que ocorrem em "processos criminais comuns", não raro, "porque é preciso fazer justiça", ao invés de se proceder um aditamento quanto aos termos da denúncia, por exemplo. Em português mais claro: o jurado talvez tenha mais chances de reconhecer que "boné" não é o mesmo que "chapéu" do que um profissional do Direito, embora seja possível a adoção de um discurso retórico para tratá-los como se iguais fossem por parte de nós, operadores do Direito. Sob esse enfoque, quem é o "mais justo" agora?

Definitivamente, se o tribunal do júri tem proferido decisões que fomentam, por assim dizer, a impunidade, a matriz do problema não está num - inexistente - sentimento afrouxado de "justiça" dos jurados. Pode estar, talvez, no trabalho mal conduzido e realizado pelo Estado que não passou despercebido pelo julgador leigo. Ou pode ser apenas porque o jurado teve uma outra percepção sobre qual é o desfecho mais "justo" para solucionar o fato. E o jurado deve, sempre, ser respeitado em sua tomada de decisão.

Alguns dos mais recentes críticos com relação à instituição do Júri e decisões tomadas por Conselhos de Sentença, ao que parece, dão sinais de que acreditam piamente que os seus respectivos pontos de vista são, na verdade, "o justo", e não o do jurado, o que, infelizmente, seria a representação de um sentimento arrogante de pretensa habilidade humana superior para "cuidar dos assuntos importantes da sociedade". Pretender se colocar nessa posição de superioridade em razão de certificados, diplomas e títulos adquiridos ao longo dos anos é uma infeliz arrogância.

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*Rafael Valentini é sócio do escritório Fachini, Valentini e Ferraris Advogados.

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