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A securitização de créditos tributários e os impactos no planejamento financeiro do Estado Brasileiro

Os avanços tecnológicos e de comunicação, presentes no denominado "paradigma da informação", auxiliam ou (I) na criação de novos instrumentos financeiros ou (II) na materialização de novos negócios jurídicos, os quais passam a ser utilizados pelos agentes econômicos.

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Atualizado às 07:56

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Não há como desconectar o direito financeiro do contexto histórico. Os avanços tecnológicos e de comunicação, presentes no denominado "paradigma da informação", auxiliam ou (I) na criação de novos instrumentos financeiros ou (II) na materialização de novos negócios jurídicos, os quais passam a ser utilizados pelos agentes econômicos. A nova economia - informacional, global e em rede - não possui fronteiras e circula por meio do espaço de fluxos, os quais são, por sua vez, moldados de forma cibernética, caracterizados por serem constantes e imediatos, o que altera, sem dúvida, o dia a dia, das relações de produção e o próprio capital, bem como suas interações, como os próprios Estados.

A securitização, em sentido estrito, nasceu, nas décadas de 1960-1970, como uma alternativa para o Estado estadunidense aumentar as denominadas "linhas de crédito" relacionadas à política habitacional. Surgiu, portanto, como um instrumento de crédito, com o fim de fomentar políticas públicas (no caso, de acesso à moradia). Contudo, o instrumento cresceu, ganhou corpo com o processo de financeirização, o qual, diga-se de passagem, elegeu a securitização como o principal mecanismo. E por que agiu desta forma? Porque a securitização é um instrumento mais ágil e, a longo prazo, com o custo mais reduzido do que os típicos contratos de crédito. E mais: refere-se a um instrumento no qual o risco do negócio jurídico é diluído entre vários agentes. Trata-se da noção do "managed money".

Vários atrativos envolvem a securitização em sentido estrito. Quando o cedente (originador do ativo subjacente) não estiver atrelado às garantias, a securitização representa a "geração própria de antecipação de receita". Isto é: o próprio originador do pool de ativos subjacentes, em uma técnica de transformação de obrigações em res, passa ter acesso imediato à liquidez, o que é possível graças a emissão de valores mobiliários (mediante o deságio). A obtenção imediata de receita representa liquidez, o que, por sua vez, permite (I) o uso da carteira de créditos, eis que os canais estão livres, (II) o início de novas iniciativas, ou mesmo (III) a diminuição de débitos pré-existentes. Como é o cedente que coordena a securitização, por meio de um Veículo de Propósito Específico (VPE), ele determina o custo da operação e as formas de distribuição de risco (a qual poderá ser repassada para os investidores). Trata-se de um "dinheiro" mais barato, eis que não há mais a figura do agente intermediador. Além disso, o instrumento da securitização representa uma melhoria das relações de balanço. Concerne à chamada técnica "off-balance sheet", eis que é retirado do balanço de uma empresa uma massa de direitos creditórios que passa a ser substituído pelo preço pago pela cessão.

Outro ponto positivo da securitização refere-se à gestão do risco. Ora, por meio da operação de securitização, a pessoa interessada extrai do seu balanço e lança para o mercado o risco inerente à carteira cedida. Trata-se de uma medida para reduzir as desvantagens da concentração de crédito. Isto porque o ônus de eventual inadimplemento é retirado de uma única pessoa jurídica. Eis daí a principal vantagem para as instituições financeiras bancárias: no modelo da intermediação financeira clássica - Originate-to-Hold (OTH) -, a instituição financeira deve ter recursos de forma a garantir os empréstimos, no caso dos agentes superavitários pleitearem os saques (os depósitos); na securitização, modelo Originate-to-Distribute (OTD), a perda das instituições financeiras é mínima, eis que a circulação de recursos é elevada.

Mas, e para o Estado? A securitização é recepcionada pelo direito financeiro brasileiro? Em especial: é possível alienar direitos tributários creditórios?

Antes, contudo, uma observação deverá ser realizada. O instrumento jurídico da securitização, no âmbito do direito público, diferente do âmbito privado, deve ser regulado (princípio da legalidade), mediante lei complementar, conforme determinam os artigos 163, inciso I e 165, parágrafo 9º, inciso II, ambos da Constituição Federal de 1988 (eis que cuida, basicamente, da receita pública e de seu regime, em especial, ao tratar de receitas advindas de operações de crédito). A competência para ditar normas gerais é da União Federal (legislação nacional), com fundamento no artigo 24, inciso I também do texto Constitucional.

O VPE - Veículo de Propósito Específico, no âmbito do Estado, poderá ter o formato de sociedade de economia mista - artigo 2º conjugado com o artigo 11, inciso I, ambos da lei 13.303/16. O VPE deverá obter a autorização legislativa específica (artigo 37, inciso XIX da CF e artigo 2º, parágrafo primeiro da lei 13.303/16), materializada via lei ordinária, na qual deverão estar descritos, além do seu objeto de atuação (securitização), a indicação do interesse coletivo a ser buscado.

É importante esclarecer que o instrumento jurídico da securitização está intimamente relacionada ao mercado de crédito, típico de operação privada. Sendo assim, para o Estado exercer atividade econômica em sentido estrito, nos termos do artigo 173, caput da Constituição Federal, o ente subnacional deverá indicar um interesse coletivo a ser materializado. Referido interesse coletivo poderá estar relacionado à função social da sociedade de economia mista, regulada pelo artigo 27 da lei 13.303/16 (os quais podem ser, por exemplo, o bem-estar econômico e a alocação socialmente eficiente dos recursos).

Mas, não é só. Insiste-se que o ente da Federação que optar pela securitização, por força do artigo 174 da Constituição Federal, deverá incluir a operação em seu planejamento, além, é claro, de indicar todos os possíveis impactos positivos e negativos da atuação do VPE. Em miúdos: se não houver compatibilização da atuação do VPE com o planejamento financeiro, a operação será ilícita, eis o descumprimento de regras claras da Constituição Federal e da Legislação Infraconstitucional.

Sendo assim, a securitização deverá ser mencionada na LPP - Lei do Plano Plurianual (artigo 165, inciso I da CF) de cada unidade federada, eis que deverá restar claro tanto o interesse coletivo a ser perseguido pelo Estado, bem como o que será realizado com os recursos auferidos pela operação. O destino das receitas auferidas na operação (receita de capital) deverá estar delimitado em respeito, inclusive, aos artigos 167, inciso III da Constituição Federal e 44 da Lei de Responsabilidade Fiscal.

A securitização também deverá estar descrita na LDO - Lei de Diretrizes Orçamentárias (artigo 165, inciso II da CF), de diferentes formas: (I) tanto ao tratar da receita pública (a qual deverá englobar a dívida ativa e os valores em parcelamento, como, também, as Metas de Arrecadação - artigo 4º, parágrafo 1º da LRF); (II) como também ao regular o patrimônio do Estado (a avaliação do patrimônio líquido do ente da Federação - artigo 4º, parágrafo 2º, inciso III da LRF - eis que tal documento demonstra a sua capacidade de endividamento). Este segundo elemento é de grande importância em especial para analisar a natureza jurídica da operação (se de crédito ou não - artigo 29, inciso III e 32, ambos da LRF). Referida análise permitirá, inclusive, (III) a análise dos limites de endividamento definidos pelo Senado, nos termos do artigo 52, incisos VI e VII e VIII da Constituição Federal.

Não se pode esquecer o último instrumento de planejamento financeiro. Trata-se da Lei Orçamentária Anual. Ao longo da Lei Orçamentária (artigo 165, inciso III da CF), dados específicos a respeito da arrecadação e custo da operação deverão estar claros por meio, em especial, do Relatório Resumido da Execução Orçamentária (artigo 165, parágrafo 3º da CF conjugado com o artigo 52 da LRF).

Não há dúvidas de que o prospecto da operação de securitização a ser realizada pelo Estado-membro deverá conter todas as informações acima, ou seja, deverá levar ao público investidor as informações de forma detalhada. Nota-se, portanto, que o prospecto, documento responsável por nortear os investidores, é o instrumento apto a relacionar e a equacionar os interesses públicos (materializado no interesse coletivo a ser alcançado pela companhia securitizadora) e privados envolvidos. Por meio do referido documento, o princípio da transparência será respeitado, eis que o controle social poderá ser realizado, além, é claro do controle administrativo (Tribunal de Contas), político (Senado, Assembleias Legislativas e Câmara de Vereadores) e judicial.

E mais: não há dúvida de que o conjunto das leis acima representa uma barreira contra as intenções meramente especulativas. Isto porque retira a operação da securitização de um contexto puro de financeirização e a insere em um contexto de sustentabilidade orçamentária, materializada pelas técnicas de planejamento, o qual, na Constituição Federal de 1988, é realizado via leis orçamentárias.

Pensar e regular a securitização, no âmbito do direito financeiro, é um dever dos estudiosos. Isto porque o direito financeiro possui princípios e regras que poderão contribuir para torná-lo compatível com a realidade brasileira. Os fins do Estado brasileiro deverão guiar o governante, eis que a securitização deverá ser utilizada como um instrumento do Estado e não como fim em si mesmo (o que poderá gerar frutos positivos não apenas para investidores, mas também para a toda a sociedade). Para tanto, mecanismos de controle interno (relacionados a Lei de Diretrizes Orçamentárias, como os relatórios de execução orçamentária e anexo de riscos) e de controle externos - por outros órgãos e entidades - deverão estar sempre presentes.

Em suma: o problema está diante de todos nós. Cabe, portanto, enfrentá-lo e discuti-lo. Típicas tarefas da atividade política que envolvem a atividade financeira do Estado.

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 *Marina Michel de Macedo Martynychen é advogada e membro do escritório Clèmerson Merlin Clève - Advogados Associados.

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