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A necessária atualização das realidades díspares em jogo

A conturbada audiência da influencer Mariana Ferrer nos revela o quão a justiça encontra-se desatualizada para fatos e peculiaridades contemporâneas, o ambiente torna-se hostil às realidades díspares.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Atualizado às 09:30

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O direito é um ambiente formalista e tradicional, que por vezes não condiz com valores de uma sociedade contemporânea, não à toa, ao passo em que a sociedade caminha, o direito rastejasse na busca incessante de uma proteção jurisdicional, ainda que não tenhamos soluções jurídicas para novos fatos, ou mesmo hard cases. Afinal, difícil é prever acontecimentos que sequer tenhamos consequências práticas, no entanto, remediá-los e assegurar um direito, ainda que ínfimo, parece transmitir uma sensação de justiça, uma luz ao fim do túnel, sobretudo em um país que interpreta erroneamente o justo como sinônimo de justiça.

Essa desatualização jurídica, ou mesmo, o não acompanhamento da sociedade, pode ter consequências não somente às lacunas das normas, mas aos próprios operadores do Direito, uma vez que o pensamento e comportamento, dentro dessa dinâmica, não perceba uma atualização da realidade contemporânea. A sociedade está reinventada, a própria sociedade digital, com suas peculiaridades de um ambiente interconectado, produz inúmeros questionamentos jurídicos e sociais, que acabam afastando àqueles que a enxergam por ''velhos olhares'', proporcionando um nítido distanciamento.

O caso recente de Mariana Ferrer, a jovem influencer, celebridade dessa nova realidade, demonstra-nos o quão prejudicial pode se tornar essa segregação, ao qual sua exposição e exibicionismo nas redes, fora utilizado como um desfavor, um descrédito à pretensão jurídica. A audiência do caso, deflagra tanto a fragilidade de uma jovem que visa no poder judiciário às suas pretensões, quanto a inexistência de expertise do sistema ao lidar com tais situações contemporâneas.    

O caso Mariana Ferrer ganhou a grande mídia, e como se não bastasse, permitiu uma indignação e um descontentamento diante das particularidades de um caso de estupro, uma situação sensível em que a vítima, fora vítima não somente de um estupro, mas de uma ausência de defesa, vislumbrada repugnantemente em vídeo.

A interpretação sobre o caso não me impressiona, em quaisquer graus de jurisdição desse imenso país continental, estamos diante de interpretações variadas e conceituações rasas. Na procura de um precedente cuja decisão se encaixe à peça processual, sob uma estrutura jurídica que consiste em 92 tribunais, fácil é encontra-lo no emaranhado de interpretações jurídicas, com decisões variadas em ambientes diferentes de jurisdição, eis aí o advento do ''estupro culposo'', interpretado pela mídia no que foi julgado em erro essencial do tipo.

Claro, não existe estupro culposo, não existe essa tipologia no Código Penal brasileiro, o próprio termo está equivocado ao associá-lo com ''estupro'', contudo, a bem da verdade, ainda que o mesmo advém de interpretações de uma sentença, não me impressiona. Em suma, a cultura do estupro no país, um tema tão sensível, mas notório, ganhou um aliado ao ambiente de discussões, uma incipiente ''nova figura'' interpretativa, cuja interpretação permite um estupro que não se pune o estuprador.  

Uma jovem aos prantos pede socorro, sob uma justiça que a pede calma, o silêncio de todos, na busca de se recompor, demonstra o ''logro'' do advogado, o promotor inerte e calado externaliza o êxito. Valores da justiça foram visivelmente suprimidos, a publicização da audiência evidencia um cenário em meio às trevas, que por mais profundo e obscuro, impõe o mínimo de decência e uma defesa digna, no ambiente ao qual o acesso à justiça tornou-se uma punição.

A jovem, uma influencer das media, vive uma realidade díspar, longe de uma realidade das pessoas da corte, mas que transmite os anseios e os direitos dos cidadãos, na busca por uma tutela jurisdicional. Contudo, expõe uma preocupação latente, o direito, ou melhor, seus operadores, não vislumbram as mudanças de uma sociedade ambientada pela dinâmica tecnológica, onde a exibição é traduzida em imoralidade.

Situações como essa desmotivam os esperançosos, em um país que encontra no excesso de litígios uma natureza angelical de atingir e assegurar um direito, esse contraste explicita, mais do que nunca, a justiça não é justa e a imprevisibilidade jurídica espanta não somente os cidadãos, mas os próprios operadores do direito.

Em meio a uma justiça que permite a humilhação, uma ausência de defesa, pobres serão as inocentes pessoas que enxergam no ideário de justiça como uma garantia de direito, um desejo, um sonho, serem atormentados e tolhidos tão depressa. O ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes sintetiza, ''o sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação''1, sob um caso tão sensível, a justiça fez um papel inverso, no sistema ao qual a própria audiência torna-se uma penitência.

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1 Disponível clicando aqui

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 *Salus Henrique Silveira Ferro é advogado mestrando em Direito e Ciência Jurídica pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL). Graduado em Direito pela Universidade Franciscana e em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

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