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Passagem forçada e servidão de trânsito: Uma breve análise das distinções dos institutos

Para a instituição da passagem forçada não existe a necessidade dos imóveis serem considerados contíguos, apenas é preciso que sejam próximos e que exista uma interferência entre eles.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Atualizado às 08:59

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A passagem forçada não se confunde com servidão de trânsito ou de passagem. Isso ocorre porque os institutos possuem naturezas jurídicas distintas, sendo o primeiro classificado como direito de vizinhança e o segundo como direito real na coisa alheia de gozo ou fruição. 

Essa diferença dos institutos está consagrada na própria jurisprudência, conforme entendimento do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:

APELAÇÃO CÍVEL. EXTINÇÃO DE SERVIDÃO. SERVIDÃO DE PASSAGEM. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. IRRESIGNAÇÃO QUE NÃO MERECE ACOLHIMENTO. SERVIDÃO DE PASSAGEM QUE NÃO SE CONFUNDE COM PASSAGEM FORÇADA. PRELIMINARES DE AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO E CERCEAMENTO DE DEFESA REJEITADAS. Cinge-se a controvérsia acerca da necessidade de manutenção da servidão de passagem instituída no terreno do Autor. A servidão no direito civil consiste em um gravame real de um prédio sobre o outro, retirando o proprietário do imóvel dominante a utilidade para o seu bem do imóvel serviente. No caso dos autos, a instituição da servidão ocorreu em 1998, anterior a aquisição do terreno pelo Autor, em 2004. Alega o Autor que no caso incide o disposto no art. 1.388, II do CC, argumentando que a servidão de passagem não é a única forma possível para que os Réus acessem seus respectivos terrenos. A existência de outro acesso não impede a servidão de passagem que não se confunde com a passagem forçada. A servidão exige tão somente que proporcione utilidade, nos exatos termos do art. 1.378 CC. Já a passagem forçada é hipótese de direito de vizinhança na qual o dono do prédio que não tiver acesso à via pública pode, mediante pagamento de indenização cabal, constranger o vizinho a lhe dar passagem. Ao contrário do alegado pelo Autor, não se encontra presente nenhuma das situações que autorizam a extinção da servidão.  Ademais, o uso prolongado e aparente de uma serventia assegura proteção possessória, inclusive em face do proprietário. Sentença que não merece reparo. RECURSO DESPROVIDO.1

Assim, a servidão de trânsito "tem por finalidade estabelecer um prédio em comunicação com outro, ou com a via pública, através de prédios intermediários"2 Em outras palavras, consiste em uma determinação de passagem em um imóvel alheio.

A sua instituição pode ser realizada por um ato de vontade das partes, não representa uma imposição legal, ou seja, ela "se coloca no cômodo e até supérfluo, havendo a imposição de que venha convencionada"3.

Esse instituto, depende da anuência do proprietário do prédio serviente para a efetivação da servidão, conforme estabelecido pela jurisprudência, vejamos:

APELAÇÃO CÍVEL. REINTEGRAÇÃO DE POSSE DE PASSAGEM. CAMINHO POR PROPRIEDADE ALHEIA. TERRENO NÃO ENCRAVADO. SERVIDÃO INEXISTENTE. MERA TOLERÂNCIA DA PROPRIETÁRIA DO IMÓVEL. TUTELA POSSESSÓRIA NEGADA. SENTENÇA CONFIRMADA. PLEITO RECURSAL DESPROVIDO. Se a prova coligida nos autos demonstra que a posse exercida pelos autores sobre servidão não titulada construída pela ré era precária, já que o seu uso era apenas tolerado, e também que os imóveis que o caminho dava passagem não estão encravado, porquanto possuem outro acesso próximo, o pleito de proteção possessória encontra óbice nos artigos 497 e 559 do Código Civil.4

De outro lado, se dá em caráter perpétuo, todavia, as partes podem estipular um prazo caso tenham interesse, sendo necessário o registro nas matrículas dos imóveis servientes.

Já a passagem forçada, por sua vez, tem natureza jurídica de vizinhança, e decorre da própria lei, consiste, portanto, em uma obrigação legal imposta, sendo que só se aplica em prédios encravados, ou seja, só pode ser determinada pela necessidade de obtenção da saída útil do prédio tido como encravado para via pública através do prédio serviente, conforme disposto no art. 1.2855 do Código Civil. Nesse caso, a concessão da passagem fica condicionada ao pagamento de uma indenização ao serviente, que poderá ser convencionada entre as partes, paga em uma só vez ou de forma parcelada.

Essa indenização será pautada na "diminuição de valor da propriedade pela passagem de terreno alheio e a moléstia por ela ocasionada. Independe de culpa e decorre simplesmente do direito de vizinhança."6 Para a caracterização do direito a passagem forçada, pressupõem a configuração de um prédio encravado, estando este na seguinte situação:

Não tenha saída para ela (via pública) nem possa buscar-se uma, ou, podendo somente a conseguiria mediante uma excessiva despesa; ou a saída de que disponha (direta, indireta, convencional ou mesmo necessária) seja insuficiente e não se possa adaptá-la ou amplia-la - ou porque isto é impossível, ou porque os reparos (com que se obtivesse uma saída não excessivamente incômoda) requereriam por iguais despesas desproporcionadas.7

Assim também define o STJ:

Civil. Direitos de vizinhança. Passagem forçada (CC/1916, art. 559). Imóvel encravado. Numa era em que a técnica da engenharia dominou a natureza, a noção de imóvel encravado já não existe em termos absolutos e deve ser inspirada pela motivação do instituto da passagem forçada , que deita raízes na supremacia do interesse público; juridicamente encravado é o imóvel cujo acesso por meios terrestres exige do respectivo proprietário despesas excessivas para que cumpra a função social sem inutilizar o terreno do vizinho, que em qualquer caso será indenizado pela só limitação do domínio.8

Resta claro que esse instituto tem como finalidade resguardar o interesse social, visto que a Constituição impõe a defesa da função social da propriedade, não sendo razoável que um imóvel comprometa a sua destinação, bem como o seu valor econômico por falta de acesso à via pública.

Segundo o entendimento da doutrina tradicional o encravamento deve ser considerado como absoluto, sem nenhum tipo de saída. Todavia, alguns tribunais e doutrinadores mais progressistas consideram que se o prédio tiver um único acesso, mas extremamente onerosa ou difícil, seria possível a aplicação da passagem forçada, considerando o princípio da função social da propriedade, conforme define Arnaldo Rizzarno:

O encravamento, pois, para tipificar a espécie, não precisa ser absoluto. Não se exige que o fundo não disponha nenhuma saída para a via pública. Se uma passagem penosa, longa, estreita perigosa ou incompatível existir, não fica afastado o direito de outra comunicação. A finalidade da lei é tornar possível a exploração ou o conveniente uso dos prédios, de sorte que o titular do domínio com uma saída insuficiente e que para melhorá-la ou ampliá-la se impõe um dispêndio excessivo, tem direito ao acesso, pois o prédio não deixa de ser encravado.9

Nessa mesma linha, está o enunciado 88 do Conselho de Justiça Federal (CJF):

Art. 1.285: O direito de passagem forçada, previsto no art. 1.285 do CC, também é garantido nos casos em que o acesso à via pública for insuficiente ou inadequado, consideradas, inclusive, as necessidades de exploração econômica.

Do mesmo modo, para a instituição da passagem forçada não existe a necessidade dos imóveis serem considerados contíguos, apenas é preciso que sejam próximos e que exista uma interferência entre eles.

A sua constituição pode ser por meio de convenção das partes ou por determinação judicial. Caso seja realizada por meio de acordo, este deve ser de forma expressa e seguindo as formalidades. É dizer, poderá ser celebrado um instrumento particular tendo por objeto uma concessão de passagem, firmado entre o prédio dominante e o prédio serviente. Esse acordo permitirá o acesso a propriedade privada do serviente, tendo em vista a necessidade de acesso a via pública.

Diante de uma resistência na via convencional, o caso pode ser solucionado pela via judicial, mediante o ajuizamento da Ação de Passagem Forçada, tendo como legitimados ativos para pedir a passagem o proprietário, usufrutuário, habitador ou possuidor.10  Todavia, em relação ao polo passivo da ação somente pode configurar o proprietário do prédio serviente.

O juiz levará em conta, para fixação de trajeto e largura, a menor oneração possível do prédio serviente e a finalidade do caminho. Para tanto, poderá valer-se de perícia para essa apuração, também sendo possível a inspeção judicial que é regulada pelo Código de Processo Civil.

Além disso, esse instituto tem um caráter obrigacional propter rem, ou seja, acompanha o imóvel, e o direito de requerer a passagem forçada é imprescritível, pode ser reclamada a qualquer tempo, considerando a existência do encravamento. Isso ocorre porque não mais existindo essa limitação, não mais assistirá o direito de passagem. Contudo, nessa situação, segundo Silvio Venosa, não há obstáculo para que as partes convencionem uma servidão de passagem.11

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1TJRJ - Acórdão Apelação 0008054-21.2012.8.19.0004, Relator(a): Des. Denise Nicoll Simões, data de julgamento: 15/05/2018, data de publicação: 15/05/2018, 5ª Câmara Cível
2 Rizzardo, Arnaldo, Servidões, 2ª ed. Rio de Janeiro Forense, 2014.
3
 Rizzardo, Arnaldo, Servidões, 2ª ed. Rio de Janeiro Forense, 2014.
4
 Ac. n. 00.002948-3, de Biguaçu, rel. Des. Carlos Prudêncio, j. 21.05.2002.
5
 Art. 1.285. O dono do prédio que não tiver acesso a via pública, nascente ou porto, pode, mediante pagamento de indenização cabal, constranger o vizinho a lhe dar passagem, cujo rumo será judicialmente fixado, se necessário.
§ 1 o Sofrerá o constrangimento o vizinho cujo imóvel mais natural e facilmente se prestar à passagem.
§ 2 o Se ocorrer alienação parcial do prédio, de modo que uma das partes perca o acesso a via pública, nascente ou porto, o proprietário da outra deve tolerar a passagem.
§ 3 o Aplica-se o disposto no parágrafo antecedente ainda quando, antes da alienação, existia passagem através de imóvel vizinho, não estando o proprietário deste constrangido, depois, a dar uma outra.
6 
Venosa, Sílvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. V. 5. 4. Ed. São Paulo: Atlas.
7
 Lenine, Nequete, Passagem forçada. São Paulo: Saraiva, 1978, p.5.
8
 Resp. 316.336/MS, 3ª Turma, j. 18.08.200, DJU 19.09.2005, rel. Min. Ari Pargendler.
9
 Rizzardo, Arnaldo, Servidões, 2ª ed. Rio de Janeiro Forense, 2014.
10
 Venosa, Sílvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. V. 5. 4. Ed. São Paulo: Atlas, 2004.
11 
Venosa, Sílvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. V. 5. 4. Ed. São Paulo: Atlas, 2004.

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Lenine, Nequete, Passagem forçada. São Paulo: Saraiva, 1978. 
Rizzardo, Arnaldo, Servidões, 2ª ed. Rio de Janeiro Forense, 2014.
Venosa, Sílvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. V. 4. São Paulo: Atlas, 2018.  

 
Bruna Prado de Carvalho

Bruna Prado de Carvalho

Advogada da Divisão de Direito Imobiliário/Agrário da MoselloLima Advocacia. Pós-graduanda em direito e gestão imobiliária da Faculdade Baiana de Direito.

Cristiane Adder Santos Melo

Cristiane Adder Santos Melo

Bacharela em Humanidades pela UFBA, Discente da Faculdade de Direito da UFBA, colaboradora da Divisão de Direito Imobiliário e Agrário da MoselloLima Advocacia.

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