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Consenso e humanização da Administração Pública para a resolução de conflitos

O implemento das câmaras administrativas de prevenção e resolução de conflitos cria novos canais de comunicação entre o Estado e o cidadão, abrindo espaço para a humanização da esfera administrativa.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Atualizado às 13:07

 (Imagem: Arte Migalhas.)

(Imagem: Arte Migalhas.)

A lei 13.140/15, que dispõe sobre a autocomposição também na Administração Pública, em seu artigo 32, e o Código de Processo Civil, em seu artigo 174, afirmam que a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios têm como prerrogativa criar câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos. A prerrogativa abre espaço para que os cidadãos tenham a oportunidade de compor disputas sem o ingresso de uma demanda no Poder Judiciário, passando o Direito Administrativo contemporâneo a ser "permeado e combinado com a lógica do consenso, negociação e multilateralidade"1.

Daí surge um enorme desafio: diagnosticar os casos para utilizar as formas consensuais e criar os meios materiais para sua implementação, ou seja, os parâmetros definidos em lei e normativas administrativas, as autoridades responsáveis pela análise de risco e de custo-benefício da escolha autocompositiva, o treinamento de gestores e servidores, a elaboração do quadro de mediadores, entre outros.  

A administração dos conflitos administrativos por meios consensuais interrompe a lógica da cultura da hostilidade, marca da administração pública adversarial2 que, além de trazer danos ao Poder Judiciário, coloca o cidadão em situação de invisibilidade. Passar da invisibilidade à visibilidade pressupõe uma série de ajustes que permitirão que o cidadão recupere sua voz, seja visto como sujeito de direitos (que possui vínculo permanente com o Estado) e seja efetivamente escutado.   

Por sua vez, a gestão pela via única do processo, conhecida pelo seu alto índice de ineficiência (em razão do contexto de crise causado pelo excesso de litigância), acabou por incentivar mecanismos disciplinadores que obstruíram por anos os canais de comunicação para a resolução dos conflitos administrativos de forma amigável.

Na perspectiva dos meios não adversariais, o princípio da eficiência acaba ganhando novos contornos. Mas isso não pode criar a falsa ideia de que ele signifique apenas maximizar recursos e resultados. A eficiência, no contexto dos meios consensuais, pode significar: agir de acordo com as finalidades administrativas; preservar o relacionamento harmônico entre Estado e cidadão; propiciar uma gestão democrática com disponibilização de diversos métodos para solução de conflitos; e, também, resolver conflitos com celeridade e economicidade.

A proposta de consensualidade na Administração Pública traz uma mudança em várias dimensões. A primeira delas é a pedagógica. A educação jurídica para os meios consensuais envolve práticas que precisam contar com o ensino de habilidades e competências historicamente negligenciados em favor da análise normativa do litígio. Investiu-se mais em conhecimentos normativos e menos em competências e habilidades para resolver conflitos, conhecimento que hoje é fundamental. Portanto, é desejável o aperfeiçoamento permanente de administradores e servidores não apenas a respeito dos meios consensuais, mas também das soft skills, que são competências subjetivas, como a escuta ativa, a cooperação e a comunicação. Esta última é uma importante ferramenta para fomentar diálogos que foi lembrada nas novas diretrizes curriculares dos cursos jurídicos no art. 4º, incisos III e V, da resolução CNE/CES 5/183. A proposta de um processo político de educação e liderança para o diálogo pode trazer novas perspectivas para a Administração Pública porque se desdobrará diretamente na cultura e nas práticas do local de trabalho.4

Outra importante mudança ocorre em uma dimensão política, pois os meios consensuais propiciam a escuta do cidadão e sua participação ativa na solução dos conflitos, fortalecendo-se a noção de autonomia. Trata-se de importante conquista da cidadania, alcançada em razão do desenvolvimento da ideia de "consenso como modalidade substitutiva de uma ação unilateral e imperativa do Estado"5.

Ainda, mencione-se a mudança que ocorre na dimensão gerencial da Administração Pública. Esta passa a oferecer alternativas plurais de acesso à justiça, para que o cidadão resolva conflitos administrativos também de forma amigável. Há, também, uma mudança social, na medida em que a consensualidade propicia uma relação de convivência harmônica entre o administrador e cidadão sem violência, opressão e hostilidade.

Importante destacar que os meios consensuais não necessariamente precisam ser uma escolha inicial para compor um conflito. Podem e devem ser utilizados a qualquer tempo, especialmente quando surgirem janelas de oportunidade para o consenso, ainda que haja uma ação judicial em curso. Para que essas janelas se abram, uma estratégia possível é investir em táticas que possibilitem o diálogo em qualquer instância e a qualquer tempo. Empregar uma linguagem compassiva e não violenta em peças jurídicas pode ser um passo importante para que o caminho processual se abra na direção do diálogo. Nesse passo, o caminho contencioso pode ser revisto a qualquer tempo, sendo possível mudar a rota, caso necessário. Possível, assim, usar a mediação e o processo, por exemplo, de forma simultânea; em sequência; ou, em arranjos criativos customizados para determinado contexto fático.

Aos poucos, a Administração Pública brasileira deixa de ser excludente e unilateral e passa a conviver com aqueles a quem deve servir6. Com o incentivo para pautar sua atuação também por meios consensuais, recupera-se o poder de decisão do Administrador para dirimir conflitos, passando a refletir esta atuação não adversarial na superação do contexto de crise pelo qual passa o próprio Poder Judiciário.

Os meios consensuais trazem novos caminhos para Administração Pública, no sentido de contribuírem para a construção de uma Administração Pública democrática e se apresenta como um desafio político à cultura jurídica brasileira, passando o Estado a incentivar que grupos, empresas e cidadãos sejam protagonistas na composição dos seus conflitos, para que que deixem a condição de súditos e passem a ser parceiros da atuação do Estado, "passando a ter no consenso e não na coerção a primeira das opções relacionais"7.

O acesso à justiça significa acesso à ordem jurídica justa, em que temos diversas possibilidades de resolução dos conflitos à nossa disposição. Isto é o que está na Constituição Federal de 1988, na promessa contida em seu preâmbulo e no artigo 5º: resolver conflitos prioritariamente de forma pacífica e em tempo razoável. No âmbito da Administração Pública, o implemento das câmaras administrativas de prevenção e resolução de conflitos cria novos canais de comunicação entre o Estado e o cidadão, abrindo espaço para a humanização da esfera administrativa.

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1 OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Os acordos administrativos na dogmática brasileira. In: MOREIRA, António Júdice et al. Mediação e Arbitragem na Administração Pública: Brasil e Portugal. São Paulo: Almedina, 2020, p.106-107.

2 FREITAS, Juarez. Direito administrativo não adversarial: a prioritária solução consensual de conflito. Revista de Direito Administrativo: Rio de Janeiro, v. 276, p. 25-46, dez. 2017. Disponível clicando aqui. Acesso em: 01 set. 2020.

3 NUNES, Diego; Goulart, Juliana Ribeiro. As formas consensuais de solução de conflitos e as novas Diretrizes curriculares para os cursos de Graduação em Direito. Disponível clicando aquiAcesso em: 13.dez.2020.

4 SALM, João; ORDWAY, Jared L. New Perspectives in Public Administration: A Political Process of Education and Leadership Through Mediation. Administrative Theory & Praxis, v.32, n.3,2010, p.438-444.

5 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. "Novos Institutos Consensuais da Ação Administrativa", Revista de Direito Administrativo 231/154. Rio de Janeiro: FGV, 2003. Disponível clicando aquiAcesso em 15 dez, 2020. p.153.

6 MOREIRA, Egon Bockmann; CUÉLLAR, Leila. A Administração Pública e a Mediação: notas Fundamentais. In: CUÉLLAR, Leila; MOREIRA, Egon Bockmann. GARCIA, Flávio Amaral; CRUZ, Elisa Schmidlin.  Direito Administrativo e Alternative Dispute Resolution: arbitragem, dispute board, mediação e negociação. Com comentários à legislação do Rio de Janeiro, São Paulo e União sobre arbitragem e mediação em contratos administrativos e desapropriações. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 43-74.

7 MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. "Novos Institutos Consensuais da Ação Administrativa", Revista de Direito Administrativo 231/154. Rio de Janeiro: FGV, 2003. Disponível clicando aquiAcesso em 15 dez, 2020. p.156.

Juliana Ribeiro Goulart

Juliana Ribeiro Goulart

Advogada, professora da Unisociesc, Doutoranda pela Universidade Federal de Santa Catarina. Conselheira da comissão de mediação e conciliação do Conselho Federal da OAB.

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