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Mulher, política pública e profissão jurídica

O interesse da sociedade melhor se satisfaz se formos capazes de aproveitar de forma produtiva as diferenças entre homens e mulheres.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Atualizado às 13:38

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Nunca fui feminista, talvez porque minha trajetória profissional tenha sido impulsionada por liderança de vanguarda que valoriza competência e acredita que as mulheres têm singularidades que as tornam até mais qualificadas do que os homens para diversas atividades.

Os maiores preconceitos que sofri foram na vida social, ou de pessoas que não aceitavam liderança feminina. De um lado, tive sorte pelo lugar que comecei a vida profissional valorizar as mulheres. De outro, tive resiliência para estudar mais, dedicar-me mais do que os outros nas tarefas que me eram determinadas no departamento jurídico.

O fato de ser mulher não havia sido a minha única referência de minoria. Judia, cursei Engenharia com poucas mulheres, a qual larguei para me formar em Direito e ir trabalhar no mercado financeiro, reduto masculino, como sabido. Na época, algumas instituições conceituadas nem sequer davam oportunidade para mulheres, salvo em cargos de menor importância.

Tornei-me chefe de área antes de me formar, participei de processos empresariais de relevância nacional nos quais sempre fui desafiada a fazer mais do que acreditava ser capaz. Enfrentei uma guerra empresarial sem precedentes no mercado de telefonia. Sofri na pele as consequências de um processo judicial, cuja justiça tardou a me devolver a dignidade.

Nesse período de mais de vinte e cinco anos na empresa, encarei questões próprias das mulheres como um câncer de mama e duas gestações.  Sempre tive apoio nas fases difíceis. Ser mulher não foi um fardo a superar, nem desculpa para não produzir. Não vou dizer que foi um processo de desenvolvimento simples. Ao contrário, porque, no mundo jurídico, homens são a maioria, basta ver escritórios de advocacia e tribunais.  

Todavia, minha visão sobre o papel das mulheres tornou-se mais abrangente em 2020, ao ser convidada a participar como ouvinte do Women Global Forum for Economic & Society, inspirado na diretriz do presidente da França, Emmanuel Macron, de criar políticas públicas para reduzir a desigualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho. Políticas públicas são escolhas, sempre influenciadas pela consciência pública.

O mundo progrediu com o desenvolvimento da ciência. A Revolução Industrial iniciou a automação do trabalho e a força física masculina deixou de ser importante, o que, em tese, colocaria as mulheres em igualdade de condição com os homens. As evidências científicas não indicam que os homens sejam mais capazes do que as mulheres.  A ideia de que a mulher só é valiosa se for igual ao homem não se justifica, para valer igual não é necessário ser igual e a humanidade se beneficia com as diferenças que tornam homens e mulheres complementares.

No século passado, a Europa liderada por homens protagonizou duas guerras mundiais. No pós-guerra, as mulheres começaram a trabalhar para assegurar a sobrevivência das famílias, porque muitos homens morreram em combate. Difícil imaginar que essas guerras teriam ocorrido, ao menos da mesma forma, sob liderança feminina. De qualquer modo, teria sido impossível superar as dificuldades econômicas de então, sem aquela nova força de trabalho que invadiu o mundo corporativo.

Agora, o covid-19 ampliou também a crise econômica mundial. Metade da população vê-se composta por mulheres. A recuperação da economia não pode prescindir dessa mesma força de trabalho feminina, seja do ponto de vista quantitativo como qualitativo.

A pandemia trouxe dados a serem observados sobre esse aspecto. Países governados por mulheres, como a Nova Zelândia, a Finlândia e a Alemanha, têm tido maior sucesso no combate ao vírus. Estudos indicam que líderes mulheres reagiram mais rápido, se pautaram de forma mais rigorosa pela ciência e estiveram mais propensas do que os líderes masculinos a assumir custos econômicos para proteger vidas. 

O comportamento feminino em questões políticas tende a ser mais humano e protetivo e essas são características a serem valorizadas diante dos atuais desafios globais como as consequências devastadoras para a humanidade da alteração climática. Tempestades e terremotos não serão intimidados por escolhas agressivas, imediatistas e sem conexão com a ciência, como o vírus também não se intimidou.

As decisões políticas ganham contornos dramáticos com o avanço da tecnologia, em especial da inteligência artificial e da engenharia genética que moldam uma nova comunidade mundial confrontada com desafios éticos cada vez mais críticos. O nível de tecnologia hoje disponível inspira cuidados, já existe um arsenal nuclear capaz de destruir o mundo.

O uso responsável da tecnologia é pauta atual e urgente. Protocolos devem ser criados para evitar que a tecnologia seja apropriada para servir o mal e para ampliar as desigualdades. Empregos precisam ser repensados. Carros auto dirigíveis devem ser programados para escolher quais vidas salvar em caso de acidente. A humanidade deve se preocupar, pois vírus poderão ser produzidos em laboratório e usado para infectar inimigos. Há uma escala de valores a serem priorizados que envolve discussões sobre eficiência e ética que não devem ser conduzidas sem representatividade feminina mais disposta a sacrificar a eficiência quando outros valores estão em risco.

O interesse da sociedade melhor se satisfaz se formos capazes de aproveitar de forma produtiva as diferenças entre homens e mulheres. A diversidade - não apenas de gênero - tem a vantagem de produzir decisões mais maduras e protege a humanidade dos excessos. A diversidade protege cada um de nós até mesmo dos nossos próprios preconceitos e julgamentos. A pauta de inclusão não é mais apenas uma questão feminista, de raça, credo, justiça ou empatia, é uma necessidade do mundo atual e da sobrevivência da espécie.

Os países do G-7 já se movimentam nessa direção, com a destinação de verbas para criar políticas públicas de inclusão feminina e programas educacionais para qualificar mulheres para as oportunidades de emprego que surgirão relacionadas a STEM, nomenclatura para designar Science, Technology, Engineering & Mathematic

O Brasil deve adotar essa agenda. A pandemia mostrou que já passou da hora de agir. Na verdade, há atraso histórico. A pauta da inclusão traz oportunidade de construirmos algo de melhor. E o mundo jurídico tem muito a refletir sobre meios e modos de incluir mulheres e de lhes reconhecer liderança. Histórias isoladas como a minha apresentam-se poucas. É preciso sonhar o sonho de que o sucesso individual será de muitas mulheres, não de poucas.

Danielle Silbergleid

Danielle Silbergleid

Sócia do Opportunity. Participou do Women Global Forum for Economic & Society de 2020.

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