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A não ultratividade das decisões da justiça eleitoral em representação sobre desinformação

Nathan Christian Coelho Silvestre

A limitação temporal da eficácia das decisões exaradas pela Justiça especializada afronta os preceitos constitucionais que gravitam em torno da matéria.

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Atualizado às 11:53

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Como já tivemos a oportunidade de defender,1 a atuação do Poder Judiciário, sobretudo da Justiça Eleitoral, e desde que observados os limites impostos pela liberdade de expressão, exerce relevante função no ordenamento jurídico pátrio quando se trata de combate à desinformação, ainda que não seja bastante, per se, para enfrentar essa disfunção do ecossistema comunicacional - deve operar, portanto, paripassu à regulação (tradicional ou autorregulada).

A eficácia da jurisdição como um todo não será objeto de discussão nestas breves linhas, eis que certamente não seriam suficientes para empreendê-la. Nada obstante, singelas considerações merecem ser tecidas especificamente sobre a não ultratividade das decisões exaradas pela Justiça Eleitoral nesta matéria: é que, vale recordar, conquanto a elas não mais se adstrinjam, as ditas fake news emergiram em um contexto eminentemente político.

Daí porque é extremamente relevante a orientação perfilhada por aquela Justiça especializada, mormente pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o mais alto órgão daquele ramo.

Antes de avançar, contudo, cabe trazer à baila duas previsões normativas que disciplinam o assunto em tela e assentam as premissas da presente análise.

Primeiro, a legislação eleitoral - referimo-nos aqui à lei 9.504/97 - goza de disposição expressa acerca da possibilidade de remoção de conteúdo digital infringente (art.57-D), assegurando aos candidatos a concessão de direito de resposta para, dentre outras hipóteses, os casos em que houver veiculação de "afirmação (...) sabidamente inverídica" (art. 58).

Com efeito, não há como se recusar o caráter protetivo da previsão em relação à liberdade de expressão, albergada pela Constituição, porquanto o escopo da norma é deveras restrito - característica essa que, antes de ser censurável, exsurge como louvável parâmetro legislativo, visto que o STF já consignara que, prima facie, devem prevalecer as liberdades comunicacionais, na qualidade de "superiores bens jurídicos e natural forma de controle social sobre o poder do Estado" (ADPF nº 130/DF, Rel. Min. Ayres Britto, Plenário, j. 30/4/2009).

Anote-se que, ao referir a informações sabidamente inverídicas, está-se a delimitar que o objeto de impugnação - a falsidade que se pretende combater - deve ser perceptível de plano, prescindindo de dilação probatória. Em outros termos, requer-se, para a concessão do direito de resposta, "uma prova pronta, de fácil constatação, [que] permite aquilatar a inveracidade".2 Logo, não se presta a lidar com controvérsias veiculadas em notícias, postagens e afins.

Todavia, somando-se ao rigor legislativo para a outorga de tutela jurisdicional em matéria de desinformação no âmbito eleitoral - decorrente da severa limitação cognitiva, do filtro procedimental que restringe as causas às inverdades manifestas -, o TSE, no exercício de competência legal para regulamentação da propaganda eleitoral, das condutas ilícitas em campanha e horário eleitoral gratuito (art. 57-J da Lei das Eleições), estabeleceu outra condicionante quanto às decisões exaradas pela Justiça Eleitoral, de ordem temporal.

Nas eleições presidenciais de 2018, no primevo exercício da aludida competência, a Corte estabeleceu, por meio da resolução 23.551/17, que "[f]indo o período eleitoral, as ordens judiciais de remoção de conteúdo da internet deixarão de produzir efeitos, cabendo à parte interessada requerer a remoção do conteúdo por meio de ação judicial autônoma perante a Justiça Comum" (art. 33, § 6º). Dessarte, negava-se a ultratividade dos provimentos jurisdicionais emanados daquela Justiça especializada, relegando ao interessado o ônus de deduzir, perante a Justiça comum, idêntica pretensão, inaugurando nova relação processual mediante provocação do Poder Judiciário, o que, prima facie, configuraria vulneração ao efetivo acesso à Justiça (art. 5º, XXXV, da CF), à celeridade e economia processuais (art. 5º, LXXVII, da CF) e aos direitos à honra, à imagem e afins (art. 5º, X, da CF) plasmados na Lei Maior.

A propósito, faz-se mister salientar que a jurisprudência da Corte Superior Eleitoral não recusa tal asserção, consignando-se que "encerrado o período eleitoral, as ordens judiciais de remoção do conteúdo da internet proferidas por esta Justiça especializada, independentemente da manutenção dos danos gerados pelas inverdades divulgadas, deixam de surtir efeito, devendo a parte interessada redirecionar o pedido, por meio de ação judicial autônoma, à Justiça Comum" (R-Rp nº 0601635-31.2018.6.00.0000, Rel. Min. Tarcisio Vieira de Carvalho Neto, Plenário, j. 2/4/2019, DJe 6/5/2019). No mesmo sentido, vide TSE, R-Rp nº 0601765-21.2018.6.00.0000, Rel. Min. Admar Gonzaga, Plenário, j. 2/4/2019, DJe 24/10/2019.

Para as eleições municipais de 2020, o TSE promoveu ligeiras alterações na redação do comando, preceituando que "[r]ealizada a eleição, as ordens judiciais de remoção de conteúdo da internet não confirmadas por decisão de mérito transitada em julgado deixarão de produzir efeitos, cabendo à parte interessada requerer a remoção do conteúdo por meio de ação judicial autônoma perante a Justiça Comum" (art. 38, § 7º, da resolução TSE nº 23.610/19).

Não se olvida que a finalidade institucional última do TSE se volte à lisura do processo eleitoral, descabendo-lhe exorbitar de sua competência para apreciar pretensões que não mais dizem respeito à propaganda eleitoral. Compreensão diversa incidiria em vulneração outra do texto constitucional, imputando atribuição a órgão jurisdicional que a Carta Magna deixou de estabelecer, justamente por não lhe competir.

Sem embargo, a solução infralegal conferida à matéria não aparenta ser a mais adequada, tendo em vista os postulados constitucionais erigidos na ordem jurídica pátria, que são contrariados pelo atual estado da arte jurídica.

Como já expusemos,3 a limitação temporal imposta às determinações judiciais de remoção de conteúdo digital fraudulento - consistente no término do certame eleitoral - não se coaduna com a melhor interpretação do direito, porque admite a acessibilidade a conteúdo patentemente incompatível com o ordenamento pátrio, assim já reconhecido pela Justiça Eleitoral segundo parâmetros legais (e jurisprudenciais4) rigorosos.

Essa espécie de "incompetência superveniente" dos órgãos jurisdicionais eleitorais para dirimir a questão certamente poderia ser endereçada de outro modo, norteando-se precipuamente pelas disposições do Código de Processo Civil (CPC) que regem o assunto da incompetência, o que se propõe de lege ferenda.

Em sendo assim, no caso concreto, seria admissível a remessa dos autos ao juízo competente para apreciação do feito, aplicando-se por analogia o disposto no art. 64, § 3º, do Codex processual, com a manutenção da eficácia das ordens de remoção de conteúdo digital até que - e somente se - sobreviesse pronunciamento em sentido contrário, à luz do que preceitua o art. 64, § 4º, do CPC.5 Tal compreensão não parece discrepar da regra contida no art. 43, in fine, do mesmo diploma legal, ao tratar da alteração da competência absoluta do juízo, ou mesmo do art. 45 do Código Fux, que ordena a remessa dos autos à Justiça Federal por força da intervenção da União.

Ainda que se sustente que a questão em tela não se refere à competência, mas ao interesse jurídico no meio processual adotado para veicular a pretensão - na espécie, a representação -, o modus operandi definido pela norma regulamentar não merece prosperar. Ao cabo e ao fim, a pretensão é de remoção do material virtual desinformativo, o que corresponde a uma ação de obrigação de fazer e não esbarra em qualquer óbice à apreciação, pela Justiça Estadual, nos moldes em que fora deduzida originalmente.

A discussão entabulada nos autos do Recurso na Representação nº 0601635-31.2018.6.00.0000, inicialmente pela divergência inaugurada pelo Ministro Alexandre de Moraes e posteriormente devido ao voto-vista do Ministro Edson Fachin, bem demonstra a necessidade de se revisitar a questão. Para ilustrar o argumento, reproduzem-se, pela percuciência de seus fundamentos, os seguintes excertos:

"O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES: Senhora Presidente, na prática ocorre o seguinte: não necessariamente o mesmo site irá veicular a notícia considerada ilícita pela Justiça. A mesma pessoa cria um novo site e veicula, depois, em sua defesa, alega que havia uma decisão, que a própria resolução dispõe que é sem efeito.

Na prática, isso realmente ocorre.

Se hoje a Corte decidisse extinguir, amanhã teríamos sites reproduzindo os mesmos conteúdos. Em uma das ações que acompanhei foram onze sites seguidos em que pai e filho montavam o site e iam passando de um para outro. Se havia liminar que era determinada a um site, já se passava para o outro. Assim é que atuam, porque ganham dinheiro para desonrar as pessoas".

"O SENHOR MINISTRO EDSON FACHIN: (...)

A existência de norma regulamentar sobre a questão, emanada deste Tribunal Superior, traduz, por si só, a necessidade de sua observância por esta Corte em seus julgamentos.

O cumprimento estrito da mencionada regulamentação tem o condão de permitir, eventualmente, que a cessação da proteção à honra da pessoa física que se lançou candidato exija-lhe novos esforços jurídicos para manter existente a tutela de seu mencionado direito fundamental.

Como se trata dessa natureza de direito, inerente à pessoa e à esfera jurídica de subjetividade, seria sustentável de lege ferenda a possibilidade de ultratividade dos efeitos da ordem jurídica da respectiva tutela".

Todavia, mesmo à luz de tais ponderações - feitas por ocasião das eleições de 2018 -, de se destacar que a previsão infralegal não evoluiu adequadamente, porquanto confere ultratividade às decisões transitadas em julgado, quando, na prática, muitas demandas não são apreciadas no mérito antes do encerramento do pleito eleitoral.

No mais, anote-se que a mera existência de norma regulamentar não deveria ser suficiente para obstar a ultratividade das decisões emanadas pela Justiça Eleitoral, já que, diante da incompatibilidade prima facie com diversos preceitos da Carta Magna, ao Judiciário é lícito exercer o controle difuso de constitucionalidade, a fim de se concluir pela inaplicabilidade dos dispositivos em desarmonia com a Constituição.

Por óbvio, constata-se que houve um avanço no tema - ainda que ínfimo -, sem atingir-se, entretanto, o panorama jurídico ideal, o que reclama a atenção do TSE a tais aspectos no futuro próximo, cercando-nos de maior segurança quanto à tutela deferida no âmbito eleitoral, à luz da ordem jurídica pátria e, sobretudo, do texto constitucional.

__________

1 O presente artigo decorre da pesquisa empírica empreendida pelo autor perante o STF, STJ e TSE acerca do julgamento de casos envolvendo a (alegação de) desinformação e os critérios definidos pelos Tribunais Superiores para a sua aferição, em sede de trabalho de conclusão de curso. Cf. SILVESTRE, Nathan Christian Coelho. Combate às fake news: as autoridades estatais face à desinformação na era digital e os impactos à liberdade de expressão. Tese de Láurea. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.

2 CONEGLIAN, Olivar. Propaganda Eleitoral. 14ª ed. Curitiba: Juruá, 2018, p. 349-350. Nesse sentido, é pacífica a jurisprudência do TSE: "No caso vertente, ao menos em cognição sumária, não se extraem das mensagens combatidas elementos suficientes à configuração de qualquer transgressão comunicativa, uma vez que não se depara com inverdade inconteste e patente, mas apenas com a divulgação de informações prejudiciais que tanto podem ser verdadeiras como não" (Rp nº 0600717-27.2018.6.00.0000, Rel. Min. Carlos Bastide Horbach, j. 10/7/2018).

3 Cf. SILVESTRE, Nathan Christian Coelho. Combate às fake news: as autoridades estatais face à desinformação na era digital e os impactos à liberdade de expressão. Tese de Láurea. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020, p. 99.

4 A esse respeito, recomenda-se a leitura do trabalho do autor, constatando-se os critérios de aferição da desinformação pelo Tribunal Superior Eleitoral nas eleições presidenciais de 2018, com críticas aos novos condicionamentos impostos pela jurisprudência para a deleção do conteúdo: SILVESTRE, Nathan Christian Coelho. Combate às fake news: as autoridades estatais face à desinformação na era digital e os impactos à liberdade de expressão. Tese de Láurea. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020, p. 84-92 e 99-100.

5 A jurisprudência do STJ admite, há muito, a validade de decisão proferida por juízo incompetente que, à luz do poder geral de cautela, defere tutela antecipada, com a preservação de seus efeitos até que sobrevenha decisão do juízo competente, conforme o art. 64, §4º, do CPC: "No que tange às violações apontadas, o acórdão recorrido não merece reforma, pois ao preservar os efeitos da tutela antecipada concedida pelo juízo incompetente, encontra-se em consonância com a jurisprudência do STJ" (STJ, AgInt no AREsp 1.142.124/MG, Rel. Min. Francisco Falcão, 2ª Turma, j. 21/3/2019, DJe 27/3/2019).

Nathan Christian Coelho Silvestre

Nathan Christian Coelho Silvestre

Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo. Estagiário em Yarshell Advogados.

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