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Novos ares para o compliance público na cidade do Rio de Janeiro

O programa Rio Integridade e as melhores práticas de compliance na administração pública direta do Rio de Janeiro.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Atualizado às 14:16

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Composta por Fernanda Abreu, Fausto Fawcett e Laufer a canção Rio 40º graus é considerada um dos maiores clássicos da música pop brasileira descrevendo o Rio de Janeiro como uma "cidade de cidades misturadas, camufladas, com governos misturados, paralelos, sorrateiros ocultando comandos". Não obstante, a realidade atual da cidade não se mostra muito diferente do imaginário retratado pelos compositores no ano de 1992.

Os escândalos envolvendo a administração pública do Estado do Rio de Janeiro e de sua capital ocasionaram a prisão de sete lideres políticos (ex-governadores e prefeito) no curto intervalo de quatro anos, conduzindo ao caos e à ruína não apenas o espectro político fluminense como também a segurança pública, a saúde, a educação e outros serviços públicos essenciais, fazendo urgir discussões acerca das melhores práticas para detectar e impedir essas inconformidades no âmbito da administração pública.

Pode parecer estranho vislumbrar a administração pública como receptáculo de regras de compliance, isso porque a origem desse mecanismo estaria associada, a priori, à conformidade de empresas privadas à legislação. Assim, mesmo com a expansão recente destes programas na iniciativa privada, o poder público não se valia diretamente dos mecanismos de governança impostos pelo mercado. Entretanto, a exigência exclusiva de condutas éticas, transparentes, probas e responsáveis nas organizações privadas deu lugar à assimilação das mesmas noções de compliance e integridade na administração pública. Afinal de contas, não basta apenas exigir é primordial "dar o exemplo".

Nesse contexto, o regime jurídico atual possui a previsão da obrigatoriedade de tais programas na esfera da administração pública indireta através da lei 13.303/16 (Estatuto das Estatais), a qual prevê que empresas públicas e sociedades de economia mista adotem regras, estruturas e práticas de gestão de riscos e controles internos que incluam: (i) a ação dos administradores e empregados, por meio da implementação cotidiana de práticas de controle interno; (ii) área responsável pela verificação de cumprimento de obrigações e de gestão de risco; (iii) auditoria interna e comitê de auditoria estatutário; e  (iv) elaboração e divulgação de código de conduta e integridade. Em síntese, o estatuto das estatais tornou necessária a constituição de toda uma estrutura administrativa de controle para que estas empresas atuem em conformidade com as legislações vigentes.

Ainda no âmbito da administração pública indireta, a lei 13.848/19 impõe às agências reguladoras brasileiras práticas de gestão de riscos e controle interno bem como a elaboração e divulgação de programa de integridade objetivando a promoção de medidas e ações destinadas à prevenção, à detecção, à punição e à remediação de inconformidade.

Por sua vez, embora muitos enxerguem lacunas no desenvolvimento do compliance na administração pública direta, a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, cujo Brasil é signatário do documento, levou a publicação do decreto 5.687/061 com a finalidade de estimular e fortalecer as medidas para prevenir e combater mais eficaz e eficientemente a corrupção; promover, facilitar e apoiar à cooperação internacional e a assistência técnica na prevenção e na luta contra a corrupção, incluída a recuperação de ativos; e viabilizar a integridade, a obrigação de render contas e a devida gestão dos assuntos e dos bens públicos.

Ademais, a Portaria 1089/18 do Ministério do Estado e da Transparência e Controladoria Geral da União configura outro ponto basilar para o compliance público no país, estabelecendo orientações para que os órgãos e as entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional adotem procedimentos para a estruturação, a execução e o monitoramento de seus programas de integridade.

Assim, o compliance público abarca uma série de mecanismos e procedimentos setoriais que objetivam a promoção eficaz, eficiente e efetiva da análise e gestão de riscos decorrentes da implantação, do monitoramento e da execução das políticas públicas, fortalecendo a comunicação interna assim como a interação entre órgãos e entidades da Administração Pública com maior segurança jurídica e transparência, promovendo o incentivo à detecção de irregularidade e controle da corrupção2.

Recentemente, a aposta do município do Rio de Janeiro para o combate à corrupção e a promover melhores práticas na relação e no trato com a coisa pública é o Programa Carioca de Integridade Pública e Transparência - Rio Integridade, anunciado pelo prefeito do Rio, Eduardo Paes (DEM), em seu primeiro dia de trabalho, através do Decreto Rio nº 48.3493. O programa efetiva na administração pública municipal práticas de integridade pública, através da governança e da conformidade e práticas de transparência e gestão de dados intentando prevenir a ocorrência de irregularidade e ilegalidades, detectar eventuais atos de irregularidade e ilegalidade e atuar, solucionando e atribuindo responsabilidades aos agentes que cometerem irregularidades ou ilegalidades.

Salienta-se que além de buscar impedir atos de corrupção que impactem os cofres públicos, como desvios de dinheiro, pagamentos de propinas, entre outros, o Rio Integridade visa também reprimir os desvios de finalidade nos atos administrativos, ou seja: a utilização da máquina estatal para satisfação de interesses privados prejudicando a supremacia do interesse público na elaboração de políticas públicas municipais. Ainda constituem objetivos do decreto Rio 48.349 o combate ao conflito de interesses; a garantia do tratamento republicado aos cidadãos, servidores, fornecedores e processos administrativo, a fixação de um padrão de excelência na prestação de serviços à população e na busca da máxima transparência na formulação, na contratação, na execução, no monitoramento e na avaliação de políticas públicas.

As etapas do programa Rio Integridade encontram-se dispostas no artigo 2º do decreto, prevendo: (i) a instituição do Sistema Carioca de Integridade Pública e Transparência, composto pela Subsecretaria de Integridade Pública e Subsecretaria de Transparência e Governo Digital; (ii) a revisão e consolidação do arcabouço legislativo vigente e das normas administrativas de integridade pública e transparência, com o intuito de simplifica-las e torna-las mais efetivas e eficientes; (iii) a elaboração e implementação de instrumentos para garantia da integridade pública e transparência ; e (iv) a criação do Estatuto Carioca para sistematizar e perpetuar as ferramentas de integridade e transparência adotadas no âmbito do decreto municipal.

Outra interessante inovação presente no decreto diz respeito à adoção da agenda GovTech pelo munícipio, objetivando tornar a o setor público mais eficiente, seguro e menos oneroso. Através de tecnologias e soluções inovadoras que transformem o diálogo do cidadão com a administração pública municipal, ampliando a participação popular em processos decisórios e reduzindo ambientes propulsores de corrupção por intermédio de mecanismos digitais que reduzam a necessidade de interação entre agentes públicos, cidadãos e empresários. Vale mencionar que a prefeitura publicou na mesma data o Decreto Rio 48.351, dispondo de normas de transparência nas contratações públicas, franqueando aos cidadãos cariocas o acesso a dados públicos (não atingidos por vedações legais de acesso) como forma de fomentar o controle por parte da população da gestão pública da cidade.

De fato, o Decreto Rio 48.349 constitui um importante passo na governança pública do Rio de Janeiro e do Brasil, lançando as bases para uma nova era de relações público-privadas (que se espera ser duradora) pautadas na ética, na integridade, na transparência, na efetiva gestão de riscos e responsabilização. Entretanto, os programas compliance na esfera pública também podem padecer de problemas semelhantes aos vivenciados no espectro privado, como os papers compliances programs4 os quais podem comprometer e até mesmo inviabilizar a efetividade do compliance público.

A mera existência de um programa de integridade não representa a panaceia dos problemas da corrupção, pelo contrário, é apenas um dos mecanismos para que se crie um ambiente hostil aos corruptores. Assim, qual seria o principal enforcement (empoderamento, na tradução para o português) para o compliance efetivo na esfera pública?

Conforme dito anteriormente, a administração pública não é um "sujeito" dos recentes mecanismos de governança desenvolvidos pelo mercado, sobretudo pós Operação Lava-Jato. Na iniciativa privada os agentes que não se adequam as normas de regulação e autorregulação tendem à ruína, de forma que os programas de compliance e boas práticas em governança tornaram um diferencial concorrencial importante na esfera mercantil. Entretanto, a simbiose entre as esferas pública e privada, acabou por integrar a necessidade de conformidade, em sentido amplo, à Administração Pública.

A resposta para o questionamento, além da óbvia ética, transparência e melhor desempenho do orçamento público, talvez resida em um conceito pouco abordado no país, que é a accountability ou prestação de contas. A partir dela, tem-se a atuação da administração sob constante escrutínio da sociedade, tanto no que diz respeito à finalidade quanto à legalidade da atuação dos entes e agentes públicos. Somente através da organização de cidadãos vigilantes e conscientes de seus direitos e deveres haverá espaço para a accountability5 e, consequentemente, para o enforcement das melhores práticas de integridade e conformidade no âmbito público, fazendo valer a sobressaliência do interesse público e dos ideais republicanos sob as inclinações escusas e meramente egoísticas envolvidas na grande maioria dos ca

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1- Disponível aqui.. Acesso em 13 de janeiro de 2021.

2- MESQUITA, C. B. C. de. O que é compliance público? Partindo para uma Teoria Jurídica da Regulação a partir da  Portaria    1.089  (25  de  abril  de  2018)  da  Controladoria-Geral da União (CGU). Revista  de Direito Setorial e Regulatório, Brasília, v. 5, n. 1, p. 147-182, maio 2019.

3- Disponível aqui.. Acesso em 10 de janeiro de 2021.

4- Os papers compliance programs podem ser definidos como programas de compliance de fachada ou "para inglês ver", onde os programas de integridade são utilizados apenas para simular um interesse (inexistente) de comprometimento com a conformidade, ou seja, aqueles que os adotam apenas parecem estar em conformidade, mas na verdade não estão.

5- CAMPOS, Ana Maria. Accountability: quando poderemos traduzi-la para o português? Revista de Administração Pública, v. 24, n. 2, p. 30-50, fev./abr. 1990.

Victor Henriques Guimarães Taranto

Victor Henriques Guimarães Taranto

Advogado júnior no escritório Müller, Novaes, Giro e Machado Advogados, pós-graduando em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Francisco Toniolo de Carvalho

Francisco Toniolo de Carvalho

Advogado no escritório Müller, Novaes, Giro e Machado Advogados, Mestre em Direito, Políticas Públicas e Sustentabilidade pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

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