MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Precisamos falar sobre biossegurança

Precisamos falar sobre biossegurança

Neste artigo discute-se a importância da biossegurança no cenário nacional e internacional, realçada pelo atual contexto da pandemia provocada pela covid-19.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Atualizado às 11:39

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Há mais de cinco anos, Bill Gates era um dos poucos líderes empresariais a alertar o mundo sobre a potencialidade de danos à vida humana, ao meio ambiente e à economia por uma eventual pandemia.

Sua defesa consistia em uma mudança de postura dos governos quanto a elaboração de políticas públicas e relacionamento internacional na área de saúde pública e biossegurança. Mais que um alerta sobre as deficiências desses setores, Gates demonstrava a fragilidade dos países e dos mercados diante de uma contaminação global por um vírus hipotético. As suas previsões estavam certas.

O mundo não se preparou e a pandemia da covid-19 vem demonstrando que os setores público e privado estavam (e ainda continuam) muito despreparados para enfrentar inimigos biológicos.

Desde o país mais rico ao de menor PIB e IDH, todos sofreram as dores do contágio do coronavírus em 2020. Uns menos, outros mais. Verificou-se que as estruturas de governo e os projetos da iniciativa privada não eram adequados para mitigar os efeitos da crise pandêmica na saúde pública e na economia.

O caos instalou-se em todo o mundo, evidenciando falhas catastróficas nos mecanismos de controles migratórios, falta de conscientização social, farmacopeia insuficiente, legislações inadequadas sobre o tema e entidades internacionais sem força e alcance necessários.

No Brasil, a lei 11.105/2005, que estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados - OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança - CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança - CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança - PNB. 

A referida lei tem impactos sanitários, culturais, ambientais, econômicos e sociais, abrangendo o uso de organismos geneticamente modificados e seus derivados, utilização de células-tronco embrionárias, dentre outros assuntos de grande complexidade na área.

Válido ressaltar que seus dispositivos não se aplicam às modificações genéticas, desde que não impliquem a utilização de organismos geneticamente modificados (OGM) como receptor ou doador, obtidas através das seguintes técnicas: I - mutagênese; II - formação e utilização de células somáticas de hibridoma animal; III - fusão celular, inclusive a de protoplasma, de células vegetais, que possa ser produzida mediante métodos tradicionais de cultivo; e IV - autoclonagem de organismos não-patogênicos que se processe de maneira natural.

Dentre as proibições, a lei o faz expressamente às seguintes práticas:  

I - Implementação de projeto relativo a organismos geneticamente modificados (OGM), sem a manutenção de registro de seu acompanhamento individual;

II - Engenharia genética em organismo vivo ou o manejo in vitro de ADN/ARN natural ou recombinante, realizado em desacordo com as normas previstas na lei;

III - Engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano;

 IV - Clonagem humana;

V - Destruição ou descarte no meio ambiente de OGM e seus derivados em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio, pelos órgãos e demais entidades de registro e fiscalização, referidos na Lei e sua regulamentação;

VI - Liberação no meio ambiente de OGM ou seus derivados, no âmbito de atividades de pesquisa, sem a decisão técnica favorável da CTNBio e, nos casos de liberação comercial, sem o parecer técnico favorável da CTNBio, ou sem o licenciamento do órgão ou entidade ambiental responsável, quando a CTNBio considerar a atividade como potencialmente causadora de degradação ambiental, ou sem a aprovação do Conselho Nacional de Biossegurança - CNBS, quando o processo tenha sido por ele avocado, na forma dessa Lei e de sua regulamentação;

VII - A utilização, a comercialização, o registro, o patenteamento e o licenciamento de tecnologias genéticas de restrição do uso.

Embora seja um marco regulatório importante, a lei não dispõe detalhadamente sobre a matéria a que se refere. Erige-se muito mais como uma "bússola" e normas gerais. Estabelece as luzes mestras, conceitos e vedações gerais sobre práticas que - entendeu o legislador da época - estariam desalinhadas com valores éticos e com o princípio da precaução.

O legislador optou por atribuir ampla função normativa regulamentar ao Poder Executivo, considerando que a complexidade do tema e sua abrangência exigem a sua contínua análise pelos órgãos técnicos do Poder Público. Acaso assim não o fizesse, certamente o rigor do processo legislativo formal engessaria as modificações normativas, ignorando detalhes científicos necessários ao longo do tempo.

Nesse sentido, criou-se o Conselho Nacional de Biossegurança - CNBS, vinculado à Presidência da República, para a formulação e implementação da Política Nacional de Biossegurança - PNB, ao qual compete, dentre outras atribuições, fixar princípios e diretrizes para a ação administrativa dos órgãos e entidades federais com competências sobre a matéria, bem como analisar, a pedido da CTNBio, quanto aos aspectos da conveniência e oportunidade socioeconômicas e do interesse nacional, os pedidos de liberação para uso comercial de OGM e seus derivados.

Já a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), integrante do Ministério da Ciência e Tecnologia, é a instância colegiada multidisciplinar de caráter consultivo e deliberativo, para prestar apoio técnico e de assessoramento ao Governo Federal na formulação, atualização e implementação da PNB de OGM e seus derivados, bem como no estabelecimento de normas técnicas de segurança e de pareceres técnicos referentes à autorização para atividades que envolvam pesquisa e uso comercial de OGM e seus derivados, com base na avaliação de seu risco zoofitossanitário, à saúde humana e ao meio ambiente.

Nos termos da lei, a CTNBio deverá acompanhar o desenvolvimento e o progresso técnico e científico nas áreas de biossegurança, biotecnologia, bioética e afins, com o objetivo de aumentar sua capacitação para a proteção da saúde humana, dos animais e das plantas e do meio ambiente.

Como se verifica, a CTNBio e o CNBS são órgãos extremamente importantes para a construção da política de biossegurança nacional, haja vista sua função normativa e regulamentar sobre o tema, notadamente afeto às atividades que envolvam a construção, experimentação, cultivo, manipulação, transporte, comercialização, consumo, armazenamento, liberação e descarte de Organismos Geneticamente Modificados e derivados.

A despeito da importância da lei 11.105/05, depreende-se que esse diploma legal se preocupou fundamentalmente com aspectos relacionados à pesquisa, cultura e produção de organismos geneticamente modificados (OGM), deixando de dispor sobre outros assuntos de igual ou até maior relevância na seara de biossegurança.

O contexto demonstrou ser necessário muito mais. Além de atividades relacionadas aos organismos geneticamente modificados, é preciso maior integração entre as normas técnicas de segurança nos mais diversos ramos da atividade humana, não se admitindo - por exemplo - mera adesão dos sujeitos passíveis de contaminação em práticas laboratoriais, voluntariedade em todo e qualquer programa de imunização etc. Saltam aos olhos que os riscos em biossegurança ultrapassam os direitos individuais, alcançando também os direitos coletivos e difusos.

Dentre outros aspectos, a política nacional de biossegurança deve ter um viés mais amplo, compreendendo normas ambientais claras e conteúdo inclusive sobre a saúde pública em geral. Cite-se, em outra vertente, apenas a título de exemplo, aspectos relacionados aos controles migratórios. Muitas vezes limitados à questões burocráticas, novos instrumentos de fiscalização devem ser adotados para mitigar riscos sanitários, químicos e biológicos.

O Brasil precisa enfrentar esse debate com prudência, respeitando os direitos fundamentais, sobretudo o princípio da dignidade do ser humano. É necessário revisitar a legislação de biossegurança à luz das evidências trazidas pela pandemia da covid-19, convidando para essa agenda atores importantes nas áreas de saúde pública, genética, segurança, meio ambiente, etc. O Brasil não deve pecar por omissão.

 

Frederico José Gervasio Aburachid

Frederico José Gervasio Aburachid

Sócio do escritório Aburachid Advogados Associados. Mestre em Direito pela UFMG e em sustentabilidade socioeconômica ambiental pela UFOP. Pós-graduado em Direito Ambiental pela UGF. Presidente da Fundação Libanesa de Minas Gerais (FULIBAN).

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca