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Tribunal étnico-racial de exceção: a chamada comissão de heteroidentificação

O que não se sustenta na atual quadra dos direitos humanos é o atuar arbitrário da Administração Pública

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Atualizado às 11:45

 (Imagem: Arte Migalhas.)

(Imagem: Arte Migalhas.)

"A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel de Estados, municípios e Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de Direito e tem como fundamento a dignidade da pessoa humana" (CRFB/88, artigo 1º, III). Ao lado desse superlativo valor estão os direitos e as garantias individuais e coletivas do cidadão. Destacam-se a segurança jurídica (artigo 5º, cabeça); a estrita delimitação da liberdade da pessoa humana (legalidade, artigo 5º, II); a proteção do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, consagradora da irretroatividade das leis, impedindo a satisfação dos interesses de gestores de ocasião (artigo 5º, XXXVI), vetando os juízos ou tribunais de exceção (artigo 5º, XXXVII).

Já de antanho é a ciência de que o Brasil foi o último país do Ocidente a abolir a escravidão. A informação é de Lilia Moritz Schwarcz, que é professora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.1 Quase 300 anos de escravatura. Os Estados, aqueles que escravizaram pessoas, admitiram esse débito, dando distintos contornos de compensação.

O Brasil optou, entre outras situações, pela implementação de ações afirmativas, consistentes em uma especial agenda de combate a herança histórica de escravidão, segregação racial e racismo contra a "população negra" (pretos e pardos). No ponto, devem ser citadas as Leis federais 12.288, de 20 de julho de 20102; 12.711, de 29 de agosto de 20123; e 12.990, de 9 de junho de 20144.

Quanto ao ensino superior público, operou-se o conhecido sistema de cotas raciais (embora não se cuide de raça). Então, Brasil afora, milhares de jovens pretos, pardos - sim: todos brasileiros - foram em busca da felicidade, agora com regras específicas de concorrência. Não se soube, nos idos de 2012, se teríamos prognóstico razoável, ajustado, calibrado. Essa ação afirmativa está impregnada da noção de equivalência ou de atenuação de desigualdades que comprometem a competição saudável e justa.

Controvérsias à parte, qual seja, a (des)necessidade de combinação do critério racial com o social como um possível corretivo desse sistema de cotas, há quem defenda a utilização de uma metodologia fundada exclusivamente na posição socioeconômica da pessoa, do candidato a uma vaga no ensino superior público nacional. Apenas alguns cliques na rede mundial de computadores para colacionarmos os exemplos autorais desse mix. Pessoalmente, parece necessária a manutenção do sistema, em especial a independência das cotas para negros, pardos e indígenas. Ao menos por mais um período. É claro que a metodologia merece os devidos ajustes, pois nada está tão bom que não possa ser melhorado, em clara identificação da filosofia do Kaizen.

Um dos primeiros critérios adotados no Brasil foi o da autodeclaração. Fundada na percepção íntima do cidadão; goza, por isso mesmo, de presunção de veracidade, de legitimidade. O ser há que conhecer o ser. Parménides de Eleia, seguido em ciência por Edith Theresa Hedwig Stein, defendem que só o ser pensa o ser, só o ser conhece o ser; diga-se: realidade. Trata-se do primeiro saber, pedra inicial do intelligere. Não sem razão que esse saber primeiro, manancial dos demais, é aclamado por metafísica5.

Segundo sucessivos julgamentos adotados pelo STF, notadamente as ADPFs 41 e 186, operou-se, sim, a "constitucionalização" do sistema de cotas de pessoas pretas, pardas e indígenas, seja no serviço público, seja em universidades públicas, concretizando a dimensão material do cânone da isonomia. Consagrou-se, ainda, a possibilidade de a respectiva entidade pública adotar procedimentos - pari passu à seleção - que "confirmem" a autodeclaração do candidato. Daí que, por exemplo, a Portaria Normativa 04, de 6 de abril de 2018, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (governo federal), que "regulamenta o procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração dos candidatos negros, para fins de preenchimento das vagas reservadas nos concursos públicos federais, nos termos da Lei Federal 12.990/ 2014".

A Administração Pública tem o dever de zelar pela aplicação da lei de forma efetiva, justa e proporcional. Por essa razão, é dever anular atos que sejam contrários ao regime legal. Aliás, o entendimento é muito antigo e se encontra em duas importantes súmulas do STF, quais sejam, 346 e 473. Não menos evidente é o dever corolário da proteção da confiança legítima, substrato subjetivo da regra da segurança jurídica. Por essa razão, é obrigatória a decretação de nulidade de atos ilegalmente praticados; porém, se já tiverem decorrido efeitos concretos, seu desfazimento deve ser precedido de regular processo administrativo (STF, Tema de RG 138).

O que não se sustenta na atual quadra dos direitos humanos é o atuar arbitrário da Administração Pública, a exemplo do que está a ocorrer em dezenas de universidades públicas nacionais: alunos(as), em sua maioria em estágios bem avançados dos respectivos cursos, estão sendo obrigados a comparecer a uma comissão de heteroidentificação não prevista objetivamente em edital de abertura do processo seletivo/vestibular Sisu, sob pena de "presunção de inveracidade da autodeclaração".

É o caso, por exemplo, da Universidade Federal de Mato Grosso, e de outras instituições públicas de ensino superior (GO e PA etc.). Não contente em prever o comparecimento compulsório, referida universidade federal instalou um tribunal étnico-racial de exceção (porque editado post factum), em semelhança matemática aos lendários julgamentos de Nuremberg: cria-se um tribunal para julgar um fato passado.

Como se sabe, para a satisfação da legalidade, a universidade pública tem o dever de investigar. No entanto, essa atividade encontra claros limites em outros postulados que igualmente regem a atividade administrativa. Novamente no exemplo - porque o assunto é comum em outras universidades públicas - a UFMT - desde novembro de 2020 - convocou compulsoriamente alunos(as) para comparecerem a um tribunal étnico-racial de exceção e - o que é ainda mais grave - adotou dinâmica que viola(ou) o status dignitatis dos estudantes: "Aluno x entra e é submetido a captação de imagem - duas fotos - segurando uma placa com seu nome e número de matrícula na respectiva universidade pública".

A obviedade é manifesta: foto segurando uma placa com o respectivo nome do(a) aluno(a)? Parece cena de Hollywood a espetacularizar a identificação criminal levada a efeito pelos embrutecidos cops americanos. Algo no estilo making a murderer. É até de se lembrar das "carinhosas" fotos realizadas pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops) - órgão do governo utilizado principalmente durante o Estado Novo e, mais tarde, na ditadura militar, que sequestrava pessoas para depois submetê-las a tortura. O caso retrata semelhança aos procedimentos de identificação criminal oficial, aqueles realizados perante a autoridade policial.

Não há vírgula sequer de dúvida: a sujeição caricata acima desenhada viola frontalmente a dignidade dos(as) alunos(as), conspirando de forma evidente com regime constitucional das liberdades públicas, podendo ensejar, inclusive, responsabilização da República do Brasil perante a Corte Internacional de Justiça, por intermédio do Comitê Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial, na medida em que somos signatários da Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, promulgada pelo Decreto Presidencial 65.810, de 8 de dezembro de 1969. É de fato o ápice da arbitrariedade: constranger o(a) aluno(a) a se sujeitar ao tratamento desumano e degradante? Por quê? Fica - realmente - a dúvida: seria antecipação de pena? O ambiente acadêmico requer equilíbrio psicológico. Constância de valores que não está a rimar com a atuação das universidades públicas propagadoras de tratamentos constrangedores dessa magnitude.

Ainda no exemplo: a universidade pública' por pertencer ao espectro da Administração Pública, está inserida em especial regime jurídico, a caracterizar posição de supremacia do interesse público e seus corolários. No entanto, não são apenas flores. Espinhos, enquanto garantias do cidadão, devem ser respeitados. Um deles é exatamente a regra da motivação. O fundamento constitucional do dever de motivar está implícito tanto no artigo 1º, II, que indica a cidadania como um dos fundamentos da nossa República, quanto no parágrafo único desse preceptivo, segundo o qual todo poder emana do povo, como ainda no artigo 5º, XXXV, que assegura o direito à apreciação judicial nos casos de ameaça ou lesão a direito.6

Ora, os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação do fato e do fundamento jurídico, quando neguem, limitem ou afetem direitos. Essa motivação deve ser explícita, clara e congruente (Lei Federal 9.784, de 29 de janeiro de 1999, artigo 50). É que o princípio da motivação é reclamado quer como afirmação do direito político dos cidadãos ao esclarecimento do "porquê" das ações de quem gere negócios que lhes dizem respeito por serem titulares últimos do poder, quer como direito individual a não se assujeitarem a decisões arbitrárias, pois só têm que se conformar às quais forem ajustadas às leis.7

Daí a razão pela qual adverte Celso Antônio Bandeira de Mello, em sua aprofundada e notável obra "Curso...", que "os atos administrativos praticados sem a tempestiva e suficiente motivação são ilegítimos e invalidáveis pelo Poder Judiciário toda vez que sua fundamentação tardia, apresentada depois de impugnados em juízo, não possa oferecer segurança e certeza de que os motivos aduzidos efetivamente existiam ou foram aqueles que embasaram a providência contestada".8

O que se quer dizer, alto e bom som, é que, embora a Administração Pública (universidades públicas) possa anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais (STF, Súmula 473), a segurança jurídica é um pilar do Estado democrático de Direito, porque sem segurança não há confiança, nem estabilidade das relações sociais, o que fragiliza o pacto social. Então, ainda que a universidade pública possa - e deva - investigar fraudes, é certo que tal investigação encontra limites em outros caros postulados que regem a atividade administrativa.

Essa tem sido a conclusão da Justiça Federal em Mato Grosso. Em MSs tem deferido a suspensão de bancas de heteroidentificação, porque não previstas em edital anterior, caracterizando-se como "tribunal étnico-racial de exceção"; desprovidas de motivação, o que invalida o ato administrativo por vício insanável de forma; além de violar frontalmente a cláusula constitucional da dignidade da pessoa humana, porque aos(às) alunos(as) está sendo imposta uma caricatura de criminoso(a), situações que não estão de acordo com as regras constitucionais dos direitos individuais, além de contrariar as convenções internacionais de direitos humanos ligadas ao não preconceito racial.

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1 Vide: clique aqui.

2 Institui o Estatuto da Igualdade Racial; altera as Leis nos 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003.

3 Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências.

4 Reserva aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.

5 Universidade de São Paulo. Intelligere: Revista de História Intelectual. Edição nº 10 | Dez. 2020.

6 Bandeira de Mello, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: 2008. p. 112/113.

7 Bandeira de Mello, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: 2008. p. 113.

8 Bandeira de Mello, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: 2008. p. 113.

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Fernando Cesar de Oliveira Faria

Fernando Cesar de Oliveira Faria

Advogado (UFMT). Especialista em Direito Penal (FMP). Mestrando em Direito Penal (UBA).

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