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A era dos deuses digitais

Você acredita em Deus? Em algum deus? Jesus, Jeová, Allah, Iaveh, Maomé.... seja qual for sua crença, fato é que, no momento em que vivemos, novos "deuses digitais" estão controlando poderosamente nossas vidas através da ilimitada coleta de seus dados pessoais.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Atualizado às 16:35

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Adjetivar de "Deuses" os gigantes da tecnologia de tratamento de dados pessoais não é exagero algum. Perceba que, independentemente da época, da crença, ou da fé, dos deuses cultuados pela humanidade, estes sempre possuíram três características ou superpoderes comuns1: a Onipresença (o poder de estar em todo o lugar), a Onisciência (o poder de tudo saber) e a Onipotência (o poder sobre todos).

Ocorre que, se antes esses "poderes" poderiam ser considerados abstratos, frutos de um constructo de crenças, hoje, pela primeira vez na história, eles se tornaram efetivos, reais e são materializados no nosso cotidiano através da quantidade descomunal de dispositivos conectados à internet.

A forma mais evidenciada da existência dessas novas divindades está na Onipresença. Para se ter uma ideia desta onipresença, só no Brasil, existem mais que o dobro de dispositivos digitais2 conectados à internet do que pessoas3: 211 milhões de pessoas x  424 milhões de aparelhos eletrônicos4 que, para além do celular, agora são "vestíveis"  (Wearebles)5, coletando dados, inclusive, enquanto estamos dormindo.

Decorrente da Onipresença, os novos deuses digitais têm a Onisciência sobre todos. Dada a imensa quantidade de dados constantemente coletados (Big Data), eles são capazes de saber mais de nós do que nossos próprios cônjuges ou companheiros6.

A pessoa que possui um celular com o sistema operacional Android (91,6% dos celulares do mundo7), compartilha, só com o Google, todas as fotos e vídeos que fez usando seu celular8, incluindo eventuais fotos íntimas. Todos os lugares em que esteve nos últimos anos, do momento em que acordou até o momento em que dormiu. Todas pesquisas que fez na internet. Todos os sites que acessou. Todos os vídeos que assistiu9.

Para quem, além do Google, faz uso dos aplicativos como Instagram ou Facebook, amplia a produção e a quantidade de informações e dados coletados ao incalculável10.

Com base em dados como: interações com amigos; tempo de permanência em celular; tempo de visualização de cada postagem; palavras usadas; hashtags preferidas; filtros de fotos mais escolhidos.... o Facebook consegue ter um retrato amplo e completo sobre quem você é, seus gostos, suas preferências, sua orientação política, social, sexual e até mesmo sobre algo que, nem mesmo os governos ou seu companheiro é capaz de ter: acesso e predição aos seus sentimentos e emoções11.

Se considerarmos que um usuário médio tem ao menos 30 Apps instalados em seus Smartphones, fazendo uso diário de 11 deles12, a soma destas informações se transforma no cenário perfeito das Big Datas (Volume, Variedade, Velocidade, Veracidade e Valor), fazendo com que vários desenvolvedores de aplicativos possam saber não só quem você é, mas também antever quem você será em cada um dos papeis que você exerce em sua vida13.

Quanto a Onipotência dos "deuses" dessa Era Digital, ela é a que, particularmente, mais assusta este articulista. Porque se você, leitor, considerar todos os Deuses conhecidos, em qualquer Dogma, neles, sempre pareceu haver um limite que era moralmente instransponível: o Livre Arbítrio.

Essas divindades sempre "deixaram", em última instância, ao Homem o poder de decisão sobre suas próprias escolhas, por mais poderosos que fossem qualquer desses deuses.

Mas nessa era Digital, até mesmo essa barreira já foi declaradamente quebrada pelo Facebook desde 2014, quando admitiram ter realizado experimentos com algoritmos com mais de Meio Milhão de usuários para manipular suas emoções14.

Essas manipulações tem afetado desde as decisões sobre a compra de um produto na Amazon, até a escolha de um Presidente da República; desde a sua crença na ciência, até a percepção da sua própria autoimagem15.

Todos nós desenvolvemos algum grau de vício no uso de smartphones (já que as redes foram projetas para isso16), o que torna inválido o discurso de que o poder (onipotência) destes deuses estaria limitado no fato de que eu posso escolher não utilizar meu celular. Essa não é uma situação simplista, já que os nossos direitos de personalidade passaram também a se estender em Avatares Digitais. O indivíduo hoje se exerce nas redes, expressando opiniões, se conectando a pessoas, amigos, grupos sociais. O uso ou não das tecnologias, aplicativos e redes não é mais uma questão binária (usar ou não), mas sim uma questão de limites (incluindo abuso de poder econômico).

Se a sociedade e os especialistas em Dir. Digital e Proteção de Dados não iniciarem um debate sobre o sensível a regulamentação e a limitação na coleta e processamento de dados pelas gigantes, será melhor torcer pela misericórdia do Zuckemberg do que pela benevolência de Zeus.

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1 Definição de "Deus
2 Smartphones, Wereables, Notebooks, PC's.
3
Censo Populacional do Brasil
4 Fundação Getúlio Vargas / Quantidade de Dispositivos Digitais no Brasil 
5 O que são Wearebles
6 Kramer, A. D., Guillory, J. E., & Hancock, J. T. (2014). Experimental evidence of massive-scale emotional contagion through social networks. Proceedings of the National Academy of Sciences, 111(24), 8788-8790.
7 Percentual de Smartphones com sistema operacional Android
8 O aplicativo "Google Fotos" faz o upload imediato de todos os vídeos e fotos do dispositivo Android.
9 Política de Privacidade do Google
10 Dados são coletados até quando se está off line
11 Matz, S. C., Kosinski, M., Nave, G., & Stillwell, D. J. (2017). Psychological targeting as an effective approach to digital mass persuasion. Proceedings of the national academy of sciences, 114(48), 12714-12719.
12 Brasil é o 3º país em que pessoas passam mais tempo em aplicativos

13 Youyou, W., Kosinski, M., & Stillwell, D. (2015). Computer-based personality judgments are more accurate than those made by humans. Proceedings of the National Academy of Sciences, 112(4), 1036-1040.
14 Facebook admite ter feito experimento que manipula as emoções de usuários

15 Vide os documentários: O Dilema das Redes e Privacidade Hackeada.
16 Depoimento de Tristan Harris, former Google Design of Products.

 
Cleylton Mendes Passos

Cleylton Mendes Passos

Advogado no escritório Mendes Advocacia.

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