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A tentativa da composição é a regra antes da disputa judicial

A regra é tentar a composição antes de ingressar no Judiciário, a falta desse estímulo representa falta de interesse e extinção do processo.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Atualizado às 12:31

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

E se antes de pensar em acionar a Justiça, simplesmente tentasse resolver a questão pelo acordo?

Hoje, existem vários caminhos possíveis para se resolver um problema, dentre os quais, os canais internos (como serviços de atendimento ao consumidor e ouvidoria) e os estatais de autocomposição (órgãos reguladores, Procons e a plataforma do consumidor.gov).

O que gera o conflito é a lamentação e a resistência para sua solução, por sua vez, impulsiona o acionamento da Justiça.

Entretanto, quem sequer procurou o caminho mais simples e rápido, em tese, não pode arrojar-se, sob o manto do acesso à Justiça e inafastabilidade da jurisdição, para, sem pretensão resistida, pedir em juízo a solução do conflito. Isso porque, nessa hipótese, não se permitiu ao demandado, a possibilidade de resolver o problema na via administrativa. Esse é o entendimento da doutrina, ao estabelecer o binômio, necessidade e utilidade, do interesse como condição da ação:

"A necessidade de estar em juízo deve ser demonstrada, provando-se que não foi possível resolver o conflito levado ao Poder Judiciário de outra forma civilizada" (LORENCINI, 2012, p.58 e 72).

Nessa mesma linha, o magistério do professor Vicente Greco Filho:

"Faltará interesse o interesse processual se a via jurisdicional não for indispensável, como, por exemplo, se o mesmo resultado puder ser alcançado por meio de um negócio jurídico sem a participação do Judiciário" (Greco, 2013, p. 105).

O formato de solução de conflito pelo meio administrativo está mais presente em empresas disruptivas de tecnologia, tais como Netflix, Spotify e Uber. É comum o envio e monitoramento da solicitação pelo mesmo aplicativo da respectiva plataforma.

O professor Kazuo Watanabe, ao discorrer sobre o tema, já advertiu que, o acesso à justiça, previsto na CF, nada mais garante do que o "acesso a ordem jurídica justa", essa não necessariamente entregue pelo Poder Judiciário.

Nesse contexto, não havendo a prévia tentativa de solução do conflito por meio da negociação, é possível, o extremo da extinção do processo pela falta de pretensão resistida, a ensejar a falta de interesse de agir em juízo. É nessa linha, aliás, que o Tribunal de Justiça de São Paulo vem decidindo:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RITO COMUM. Sentença que julgou extinto o feito, sem resolução de mérito, por falta de interesse processual. Pretensão da autora à reforma. Descabimento. Ausência de interesse processual, sob a vertente necessidade, pois não há qualquer demonstração de resistência por parte da Administração Pública. Inexistência propriamente de lide, no sentido de "conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida". Carência da ação. Precedente. Sentença mantida. Recurso desprovido. (TJSP;  Apelação Cível 1004311-67.2020.8.26.0664; Relator (a): Heloísa Martins Mimessi; Órgão Julgador: 5ª Câmara de Direito Público; Foro de Votuporanga - 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 25/11/2020; Data de Registro: 25/11/2020)

O processo judicial é um método por meio do qual a jurisdição atua, com objetivo de resolver um conflito. Entretanto, não é o único caminho existente para solução, isso porque a parte pode, simplesmente, alcançar seu desejo por outro meio.

O sistema multiportas representa a ampla variedade de opções existentes para resolução de uma crise, tal como ensina o professor Marco Lorencini:

"Não é apenas o poder judiciário que resolve conflitos. Como é intuitivo, sempre há um impasse na vida, os envolvidos - sozinhos ou com auxílio de um terceiro - tentam buscar uma solução. Quando o conflito envolve um alegado direito amparado em lei, o descontente, com a ausência de solução, tende a procurar o Poder Judiciário, em face do Estado, encarregado justamente de resolver os conflitos intersubjetivos surgidos em sociedade" (LORENCINI, 2012, p.58).

O litigante repetitivo, tais como grandes bancos e empresas de telefonia, entre outros, têm os seus respectivos órgãos de tratamento de reclamação, o SAC e a ouvidoria. Esses meios garantem, em primeiro lugar, que a empresa reclamada saiba sobre a insatisfação do cliente, possa tratá-la e, sem intervenção de ninguém, possa resolvê-la. Aliás, permite-se, igualmente, prevenir eventual acionamento da Justiça para solucionar o problema.

A conciliação, nesse caso, tem uma equivalência com a Justiça estatal, proporcionada pela sentença, com a diferença que, indiscutivelmente, será muito mais rápida.

A propósito, parece adequado, sim, impor ao demandante que, antes de promover demanda judicial, tente ao menos procurar seu adversário para proporcionar a ele a possibilidade de resolver à insatisfação. Pois, antes disso, não se tem a resistência, por conseguinte o conflito e, finalmente, o interesse processual.

Essa busca para se resolver de forma consensual o conflito é a regra, tanto que ao advogado1 e ao Juiz se impõe o dever de estimular a conciliação (CPC, art. 3º, §3º).

A tentativa prévia da pacificação, como regra, não representa nenhuma ofensa ao acesso à Justiça ou à inafastabilidade da jurisdição (CF, art. 5º, xxxv), é que a solução consensual, tomada pelos próprios envolvidos, sempre atenderá melhor ambas as pretensões.

A propósito, a CF, em seu preâmbulo, claramente direciona à cultura de paz, defendida pelo professor Kazuo Watanabe, quando estabelece "uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias".

Os métodos alternativos são meios equivalentes à prestação jurisdicional, cuidam-se de ferramentas a serviço da solução e da pacificação do conflito. Por isso, o litígio não precisa ser valorizado, nem pelas partes e nem pelos advogados. Aliás, seria o caso de ser evitado, se possível.

Por isso, a tentativa de solução do conflito, antes da provocação do Judiciário é a regra, de modo que, na sua falta, o melhor cenário será a extinção do processo. Essa providência, embora extrema, não representará nenhuma ofensa à primazia do julgamento de mérito, mas sim respeito e verdadeiro estímulo à solução não adjudicada.

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1 A norma orientadora da advocacia também impõe com mais reforço a conciliação e, muito além disso, a necessidade de "prevenção" de demanda judicial: "São deveres do advogado: VI - estimular, a qualquer tempo, a conciliação e a mediação entre os litigantes, prevenindo, sempre que possível, a instauração de litígios" (CED,  art. 2º, § único, VI).

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GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. Vol. I. 23ª edição. Saraiva. 2013.
LORENCINI, Marco Antônio Garcia Lopes. Sistema Multiportas: opções para tratamento de conflitos de forma adequada in Negociação, Mediação e Arbitragem. São Paulo. Coordenação: Carlos Alberto de Salles, Marco Antônio Garcia Lopes e Paulo Eduardo Alves da Silva. Ed: Método, 2012.
THEODORO JÚNIOR, Humberto, Curso de Direito Processual Civil. Teoria Geral do Processo Civil e do Processo de Conhecimento. Vol. I. 46ª edição. Forense. 2007.
WATANABE, Kazuo. Cultura da sentença e cultura da pacificação. In: YARSHELL, Flávio Luiz; ZANOIDE, Maurício de Moraes (coord.). Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrini Grinover, p. 690. São Paulo: DPJ, 2005.
WATANABE, Kazuo. Política Pública do Poder Judiciário Nacional para tratamento adequado dos conflitos de interesses. In: Cesar Peluso, e Morgana de Almeida Richa (orgs.). Conciliação e Mediação: Estruturação da Política Judiciária Nacional. Rio de Janeiro: Forense, p. 4-5. 2011.

 
Guilherme Vinicius Justino Rodrigues

Guilherme Vinicius Justino Rodrigues

Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica, com Extensão em Arbitragem pela mesma instituição e Extensão em Direito Imobiliário pelo Mackenzie. Atualmente é advogado no Itaú Unibanco.

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