Compliance como meio de elidir a evasão fiscal: Armas ou manteiga?
Superando o juízo antecipado de que o compliance é somente conformidade normativa, buscar-se-á analisar a sua (in)aplicabilidade prática na redução do valor destinado ao pagamento de tributos.
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021
Atualizado às 15:13
Não é de hoje o desafio relacionado à quantidade elevada de normas jurídicas que o empresário deve seguir em primazia da legalidade da atividade desenvolvida, principalmente no que diz respeito ao desdobramento de cada hipótese de incidência vinculada ao Direito Tributário, assim como o alto valor pecuniário despendido no pagamento de tributos. De outro lado, é crescente o movimento de sedimentação do Compliance nas empresas espalhadas pelo mundo.
Dito isto, porque não utilizar os programas de Compliance como um método lícito de planejamento tributário que vise elidir a ocorrência do fato gerador e, por conseguinte, resulte na redução da carga tributária empresarial? Nesse contexto, analisando brevemente os institutos da elisão fiscal e do Compliance, buscar-se-á entender se o Compliance pode ser um meio de combate à evasão fiscal.
1. O instituto do compliance
O termo Compliance vem do verbo em inglês to comply que significa agir conforme a lei, normas internas, comandos ou condutas éticas. Porém, o Compliance não se limita unicamente à ideia de conformidade e cumprimento de regras formais, visto que seu alcance é muito mais amplo, devendo ser compreendido de forma sistêmica, como um instrumento de redução de risco, preservação de valores e de sustentabilidade.1
De maneira simplificada, o Compliance nada mais é do que um conjunto de medidas internas que viabiliza a prevenção e a mitigação dos riscos de violação às leis decorrentes da atividade de agentes econômicos2, de modo que tal conjunto de medidas se expressa no chamado programa de integridade.
Esse programa ganha destaque no mundo corporativo, na medida em que sua missão seria de assegurar, juntamente com outras áreas, a adequação, o fortalecimento e o funcionamento do sistema de controles internos da organização, procurando mitigar os riscos, de acordo com a complexidade de seus negócios, bem como disseminar a cultura de controles para alcançar o cumprimento de leis e regulamentos existentes, além de atuar na orientação e conscientização de prevenção de atividades e condutas que possam resultar em irregularidades, que afetem a imagem da organização.3
Desta feita, depreende-se que o Compliance não é um instituto com o fim em si mesmo, ao revés, está vinculado a diversas áreas de atuação, tais como o direito penal, tributário, empresarial, a economia, a ética, recursos humanos e com a Administração Pública.
E, apesar do Compliance ser algo recente no Brasil, sua positivação tem se operando gradativamente no nosso ordenamento jurídico, toma-se como exemplo a lei 12.846/2013, que diz respeito à responsabilização das empresas por atos contrários a administração pública, vale mencionar que esse diploma contempla infrações de caráter bastante amplo, que podem, inclusive, ser aplicáveis ao direito tributário, como se verifica no art. 5º, incisos III e V4, do referido texto normativo.
Assim sendo, constata-se que a adoção de programas de Compliance pode ser extremamente relevante para grandes empresas vinculadas a irregularidades tributárias, uma vez que a reputação e a imagem de uma organização têm grande importância nos dias de hoje.5
2. Planejamento tributário: Elisão fiscal x Evasão fiscal
Como se sabe, o Estado brasileiro possui uma alta carga valorativa de tributos, de modo que as empresas, principais contribuintes do sistema, recorrem aos mais diversos artifícios, nem sempre legais, para se esquivar da obrigação tributária, os quais se destacam dois institutos antagônicos, o de elisão fiscal representada pelo planejamento tributário e o de evasão fiscal concebido pela sonegação fiscal.
Nesse cenário, para entender as nuances deste artigo, demonstra-se imprescindível ao menos de um domínio sumário da conceituação de cada instituto, iniciando-se com a elisão fiscal a qual, segundo Roque Carrazza, trata-se de uma conduta do contribuinte que busque dentro da legalidade impedir, reduzir ou adiar a ocorrência da obrigação tributária, de tal maneira que pode ser omissiva ou comissiva6.
Portanto, a elisão fiscal se qualifica pela gestão lícita de toda carga tributária que a empresa suporta, com o objetivo de máxima redução da quantia desembolsada ao Fisco como espécie de planejamento tributário anterior à ocorrência do fato gerador, sendo uma forma de economia lícita de tributos.
Já o instituto da evasão fiscal, de acordo com Malkowski, é aquela que "designa a fuga de pagar tributo, onde o indivíduo adota procedimentos ilícitos como artifício para mascarar o fato gerador".7
Significa dizer que, de maneira diametralmente contrária à elisão fiscal, a evasão se rotula pela utilização de estratégias defesas em lei com a intenção de reduzir o pagamento de tributos, por meio de omissões, fraudes, simulações ou mesmo falsificações. Ou seja, trata-se de hipótese de sonegação de impostos, sendo, inclusive, objeto de tipificação penal.
Somado a isso, nota-se que em diligente estudo o respeitável advogado Gilberto de Ulhôa Canto, concluiu que a elisão fiscal é uma conduta preliminar à ocorrência do fato gerador, já a evasão fiscal se configura pela prática de atos posteriormente ao fato gerador.8
Com base no exposto, depreende-se que os a elisão e a evasão fiscal se diferenciam pelo momento da realização prática - anterior ou posterior à ocorrência do fato gerador - e, principalmente, pela legalidade da conduta - lícita ou ilícita.
3. A importância do compliance fiscal
Feitas essas considerações, percebe-se que o sistema tributário, em razão da sua tamanha complexidade decorrente da farta legislação, está sujeito a ameaças, tais como a evasão fiscal.
Nesse contexto, o Compliance se faz conveniente às organizações empresariais, uma vez a promoção da conformidade tributária pode resultar em benefícios relevantes para as empresas tais como a aplicação adequada da legislação, a redução de multas, autuações e gastos com defesas administrativas e judiciais, a possibilidade de prevenir erros nos processos internos; e uma boa reputação perante clientes, fornecedores, terceiros e órgãos públicos.9
Por outro lado, a falta do Compliance, pode ensejar a aplicação de sanção de natureza administrativa, tributária e/ou penal; perdas financeiras; perdas de benefícios fiscais; danos para a reputação corporativa; suspensão de financiamento bancário em alguns casos.10
A título meramente exemplificativo, de acordo com Armênio Lopes Correia a atuação do Compliance no âmbito tributário pode se efetivamente por meio de elaboração de classificações fiscais dos produtos ou mesmo parametrização para créditos, calendarização dos prazos de pagamento e cumprimento das obrigações acessória, prática de atendimento à fiscalização descentralizado, entre outros11.
Por meio desses parâmetros, verifica-se a criação de uma cultura de transparência fiscal, de legalidade, de segurança jurídica e boa-fé, que visa o correto cumprimento das obrigações, consequentemente atinge diretamente o planejamento tributário da empresa, mitigando os riscos da ocorrência de ilícitos tributários.
Destacada a indissociabilidade do Compliance do planejamento tributário empresarial, cumpre reiterar que referido instituto vai além do respeito às normas tributárias, devendo ser estruturado com a finalidade de se criar um ambiente de conformidade tanto na gestão interna, quanto externa. Ou seja, emerge-se como dever do Compliance tributário tentar localizar e reduzir eventuais riscos de evasão fiscal dentro da própria empresa, como funcionários, colaboradores e alta direção, existindo, para isso, diversas estratégias elencadas nos incisos do artigo 42 do decreto 8.420/201512.
Tais premissas, embora sejam parâmetros da avaliação do programa de Compliance não são os únicos meios de se implementar um programa de conformidade e de buscar sua eficácia.
É preciso objetivar, sobretudo, o alcance e a compreensão do Compliance por parte de toda a organização: dos colaboradores internos e externos, funcionários e da alta direção, através da elaboração de um código de conduta, do treinamento dos funcionários, e de um efetivo meio de comunicação de difunda a missão e os valores da empresa, ficando evidenciado o repúdio à atos e omissões ilegais.
Por fim, comprovando-se a efetividade do Compliance no estímulo do planejamento elisivo tributário se tem como exemplo a LC 1.320/2018, apresentado pelo Governo de São Paulo em 2017, na qual institui o programa de Estímulo à Conformidade Tributária, definindo os princípios para o relacionamento entre os contribuintes e o Estado de São Paulo, estabelecendo regras de conformidade tributária em troca de benefícios fiscais13.
Resumidamente, cria-se uma classificação de contribuintes concebida pelo nível de conformidade com as normas jurídicas, representando desde o alto nível de conformidade pela classificação "A+", até o baixíssimo nível de conformidade pela classificação "E". Esta classificação terá como exigência o grau de aderência aos preceitos da legislação tributária.14
Para que essa prática se torne realidade, referida lei complementar previu algumas diretrizes dirigidas à administração tributária paulista, tais como a facilitação e o incentivo à autorregularização e a conformidade fiscal; a redução dos custos de conformidade para os contribuintes; o aperfeiçoamento da comunicação entre os contribuintes e a Administração tributária; a simplificação da legislação tributária, e a busca por melhor a qualidade de tributação.15
Conclui-se, portanto, que o Compliance pode ser um instrumento efetivo para mitigar a ocorrência de evasão fiscal e incentivo à elisão fiscal, uma vez que a implementação de uma cultura de transparência no âmbito tributário, tende a prevenir a ocorrência de irregularidades e a incentivar práticas de moralidade, resultando em benefícios tanto para o contribuinte quanto para o Fisco.
4. Afinal, armas ou manteiga?
Apresentado pelo economista Paul Samuelson, a expressão armas ou manteiga, refere-se a uma dicotomia entre o gasto em armas para a defesa nacional e o gasto em manteiga destinado a bens de consumo, tendo em vista a necessidade de proteção para a produção e, a produção para a proteção.
Cotejando com o presente tema, verifica-se um trade-off clássico entre o alto investimento do Compliance e a necessidade de pagamento dos demais custos empresariais, entre eles a alta carga tributária, visto que o investimento em Compliance pode trazer benefícios ético-financeiros a longo prazo, porém encontra barreiras em seu elevado custo e a necessidade de pagamento dos demais custos de operação.
Em condições tais, neste momento, é preciso buscar uma certa paridade na escolha entre as "armas" e a "manteiga", uma vez que os programas de integridade estão em desenvolvimento, razão pela qual o Governo ainda se utiliza de normas promocionais, cujo estímulo a implementação se dá por meio de benefícios, à exemplo da já mencionada LC 1.320/2018.
Com base nisso, é possível constatar que a tendência atual é que paulatinamente a transparência, a boa-fé, a moralidade e a legalidade, transformem-se em exigências e em critérios de escolha no mercado econômico pela sociedade, razão pela qual os empresários devem encontrar o equilíbrio entre o investimento na área do Compliance e os demais custos empresariais.
1 CARVALHO, André Castro; BERTOCCELLI, Rodrigo de Pinho; ALVIM, Tiago Cripa; VENTURINI, Otavio (coord.). Manual de Compliance. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 51
2 CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA. Guia Programas de Compliance: Orientações sobre estruturação e benefícios da adoção dos programas de compliance concorrencial. [S. l.: s. n.], Janeiro 2016. Acesso em: 2 set. 2020, p. 9
3 AGUIAR, Luciana Ibiapina Lira. Compliance e Governança Corporativa: É Preciso Reconhecer e Premiar Boas Práticas. In: BOSSA, Gisela Barra; RUIVO, Marcelo Almeida (coord.). Crimes Contra Ordem Tributária: do direito tributário ao direito penal. São Paulo: Almedina, 2019. p. 423.
4 BRASIL. Lei 12.846, de 1º de agosto de 2013. Acesso em: 22.9.2020.
5 CORREIA, Armênio Lopes; BERNARDES, Gabriel Faria. Considerações sobre as práticas de compliance tributário no contexto brasileiro. In: DE OLIVEIRA, Luiz Gustavo Miranda (org.). Compliance e integridade aspectos práticos e teóricos. Belo Horizonte: D'Plácido, 2017. cap. 4, p. 115-136, p. 120.
6 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 26ª ed. Malheiros Editores. São Paulo, 2011, p. 349.
7 MALKOWSKI, Almir. Planejamento Tributário e a Questão da Elisão Fiscal, Dissertação de Especialista em Direito Tributário, 2000, p. 32.
8 ULHÔA CANTO, Gilberto. Elisão e evasão. Caderno de pesquisas tributárias. Elisão e evasão fiscal, p. 110.
9 CORREIA, Armênio Lopes; BERNARDES, Gabriel Faria. Considerações sobre as práticas de compliance tributário no contexto brasileiro. In: DE OLIVEIRA, Luiz Gustavo Miranda (org.). Compliance e integridade aspectos práticos e teóricos. Belo Horizonte: D'Plácido, 2017. cap. 4, p. 115-136, p.128.
10 Ibidem, p. 129.
11 Ibidem, p. 126.
12 BRASIL. Lei 12.846, de 1º de agosto de 2013. Acesso em: 22.9.2020.
13 SÃO PAULO. LC 1.320, de 06 de abril de 2018. Acesso em: 21 de set. 2020.
14 AGUIAR, Luciana Ibiapina Lira. Compliance e Governança Corporativa: É Preciso Reconhecer e Premiar Boas Práticas. In: BOSSA, Gisela Barra; RUIVO, Marcelo Almeida (coord.). Crimes Contra Ordem Tributária: do direito tributário ao direito penal. São Paulo: Almedina, 2019. p. 43-65, p. 59/60.
15 AGUIAR, Luciana Ibiapina Lira. Compliance e Governança Corporativa: É Preciso Reconhecer e Premiar Boas Práticas. In: BOSSA, Gisela Barra; RUIVO, Marcelo Almeida (coord.). Crimes Contra Ordem Tributária: do direito tributário ao direito penal. São Paulo: Almedina, 2019. p. 43-65, p. 61.