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A violência doméstica contra a mulher e as medidas protetivas

Precisamos tornar visível também o sofrimento psicológico dessas vítimas, pois a desconsideração pode causar sintomas psicossomáticos graves e irreversíveis, bem como transtornos psiquiátricos de dimensões desconhecidas.

segunda-feira, 8 de março de 2021

Atualizado em 2 de março de 2021 09:43

 (Imagem: Arte Migalhas.)

(Imagem: Arte Migalhas.)

Olá colegas migalheiros!

No artigo de hoje, trago um tema atual, complexo e polêmico, porém pouco observado: as sequelas psicológicas do trauma sofrido pela mulher vítima de violência domésticas.

ROVINSKI (p. 176, In: SHINE, 2008) observa que a impotência das instituições (judiciária, de saúde, etc.) em dar uma solução para a violência doméstica, ou violência de gênero, gera uma desqualificação do sofrimento relatado e, em casos extremos (porém frequentes), a consequente responsabilização da vítima pelos fatos vivenciados. Arantes (2000) afirma que trabalhar com pessoas que, em razão de sua situação de sofrimento psíquico e mental, vivem em situação de desvantagem em relação às outras pessoas, é imprescindível que se pense em ações afirmativas que visem compensar essa desigualdade.

A Psicologia Jurídica se encarrega dessa tarefa de levar aos autos judiciais a realidade psicológica das mulheres vítimas de violência, que ainda passa despercebida da realidade jurídica. Segundo ROVINSKI (p. 176-177, In: SHINE, 2008, cit.),

[...] A avaliação psicológica das vítimas permite ampliar o horizonte das provas periciais, com uma visão mais integrada da pessoa. Deixa-se para trás uma visão puramente material do dano - visualização física - para integrar os aspectos subjetivos - dano moral - previsto pela própria Constituição Brasileira de 1988.

Segundo HIRIGOYEN (2006) e SILVA, COELHO E CAPONI (2007), a violência física está associada a todos os outros tipos de violência, pois fere e interfere na saúde mental da mulher, na sua integridade física, moral e social. de acordo com HIRIGOYEN (2006, cit.), o ciclo de violência se desenvolve em três fases e de maneira repetitiva, a saber: (1) construção de tensão no relacionamento, com abusos verbais, constrangimento público, atribuição de culpa à mulher pelo fracasso, numa fase em que a vítima alimenta a expectativa de que irá reverter a situação; (2) explosão da violência - descontrole e destruição, com a violência física propriamente dita e frequentemente uso de armas brancas ou de fogo, sendo comum que todas as promessas do agressor sejam esquecidas; (3) lua de mel - arrependimento do(a) agressor(a), quando, terminando o período da violência física, o agressor demonstra remorso e medo de perder a companheira. tal ciclo se repete, acelerando com o tempo e assumindo intensidade crescente.

Em sua pesquisa científica com 15 mulheres com idade entre 25 e 62 anos que deram entrada em uma delegacia de polícia com queixa de violência doméstica e estavam em acompanhamento psicossocial no Núcleo de Atendimento à Família e dos Autores de Violência Doméstica (NAFAVD- Brazlândia), em Brasília (DF), BITTAR e KOHLSDORF (2013) , na qual foram aplicados três questionários: um para obter dados sobre o perfil da violência e dados demográficos das participantes, o Inventário Beck de Depressão (BDI), instrumento que avalia os sintomas depressivos, e por último o Inventário Beck de Ansiedade (BAI), instrumento que avalia os sintomas de ansiedade, foi observada correlação positiva, moderada e estaticamente significativa entre as medidas de ansiedade e depressão, além de múltiplas formas de violência simultânea. As referidas autoras apresentam outras pesquisas que apontam que:

Os sintomas psicológicos quase sempre são: depressão, síndrome de estresse pós-traumático, ansiedade, fobias, desânimo, irritabilidade, síndrome do pânico, sensação de perigo iminente, ideação suicida, tentativa de suicídio, homicídio, baixa autoestima, sentimentos de culpa, inferioridade, insegurança, vergonha, isolamento social, dificuldade de tomada de decisão, dependência ao extremo, hábito de fumar, uso de álcool, falta de concentração (Day et al., 2003). De acordo com Grossi (1995), mulheres que sofrem violência doméstica estão cinco vezes mais predispostas a apresentarem problemas psicológicos em comparação às mulheres que não vivenciam essa situação. Muitas vezes, a violência psicológica causa sequelas ainda mais graves que efeitos físicos. Surgem também sintomas sociais, apresentando faltas no trabalho, ausência ao serviço de saúde, isolamento, mudanças frequentes de emprego ou de cidade (Schraiber, 2005; Silva et al., 2007). (BITTAR, KOHLSDORF, 2013, p. 451).

Com relação ao consumo de bebidas alcoólicas, tem-se que as pesquisas efetivamente apontam ser o uso de substâncias um fator agravante da violência doméstica, pela ação desinibidora da censura, e o agressor assume condutas reprováveis (DAY et al., 2003).

BITTAR e KOLHSDORF (2013, cit.) descrevem que as mulheres vítimas de violência doméstica manifestam elevados níveis de ansiedade, o que desencadeia a falência da capacidade adaptativa. Em termos físicos: sensações fisiológicas de sudorese, palpitação, inquietação e outros sintomas do sistema nervoso autônomo; segundo o DSM-V (2014), os critérios diagnósticos são:  inquietação ou sensação de estar com os nervos à flor da pele; fadiga; dificuldade em concentrar-se; irritabilidade; tensão muscular, tamborilar dos dedos dos pés ou das mãos e perturbação no sono. Do mesmo modo, as referidas autoras descrevem a presença de depressão nessas mulheres vítimas de violência: segundo o DSM-V (2014, cit.), tem-se que os critérios diagnósticos para o quadro depressivo são: a falta de interesse em realizar atividades que antes eram consideradas como prazerosas pelo indivíduo; humor deprimido diariamente com sentimento de tristeza; perda ou ganho significativo de peso, sem realizar qualquer regime ou dieta; insônia ou hipersonia quase todos os dias; sensação de fadiga, mesmo não tendo realizado qualquer atividade física; sentimentos de culpa e inutilidade; pensamentos de ruína, destruição ou suicídio (ou tentativa). JACOBUCCI e CABRAL (2004) destacam sintomas associados à vivência doméstica, tais como sentimentos de solidão, tristeza, desamparo, descrença, irritação, baixa autoestima e baixa autoconfiança. Segundo estas últimas autoras,

[...]

As mulheres que relatam ter sofrido violência doméstica apresentam formas combinadas de agressões físicas, como nódoas negras, fraturas, queimaduras, marcas de tentativas de estrangulamento, golpes provocados por instrumentos cortantes, etc, e de agressões psicológicas que retratam como seqüelas medo, isolamento afetivo, dependência emocional, sentimentos de culpabilidade e quadros depressivos.

[...]

Quanto aos traços de personalidade, verificamos que as mulheres que sofrem violência doméstica apresentam traços esquizóides ou esquizotípicos, que favorecem a introversão, o isolamento afetivo, a ansiedade persecutória, entre outros. Isto levaria tais mulheres a fazer escolhas objetais amorosas identificadas com as mesmas características, aumentando-se, assim, os riscos de tentar resolver conflitos por impulsos agressivos, já que existe a crescente dificuldade de resolução através do diálogo.

Tem-se, assim, um círculo vicioso: as mulheres agredidas que permanecem com os companheiros agressores tornam-se freqüentemente, agressivas, o que leva os casais a terem um dia-dia cada vez mais violento, em que os conflitos se multiplicam e se intensificam (JACOBUCCI; CABRAL, 2004, p. 215).

BROOKS (1995, apud ROVINSKI, p. 180, In: SHINE, 2008, cit.) também salienta a importância do diagnóstico de TEPT (Transtorno de Estresse Pós-Traumático) como uma característica típica de resposta à situação de violência doméstica. Conforme FLORES e CAMINHA (1994), o TEPT pode se manifestar por comportamentos repetitivos e obsessivos (ritualísticos), evitação psicológica, fuga de sentimentos e pensamentos, sensação de estar sozinho/abandonado, e manifestações de excitação exacerbada: transtorno do sono, irritabilidade, raiva, dificuldade de concentração, hipervigilância, resposta exagerada de sobressalto e resposta autônoma a lembranças traumáticas.

Esse posicionamento é fundamental para acabar com a mentalidade conservadora de se comprovar a agressão contra a mulher somente se houver evidências físicas, menosprezando e até desqualificando o sofrimento psicológico. ROVINSKI (p. 182, In: SHINE, 2008, cit.) menciona autores que apontam que a avaliação psicológica do TEPT deve ser criteriosa e apropriada, o perito deve trazer aos autos as informações necessárias para se estabelecer o nexo causal entre a violência sofrida e o trauma psíquico. NARVAZ e KOLLER (2006) mencionam autores que apontam que nas situações de abuso crônico, as vítimas apresentam um estado alterado de consciência, submetendo-se de forma passiva aos rituais e às manipulações do perpetrador da violência. Em outra obra, ROVINSKI (2013, p. 161) entende que a cautela do perito psicólogo na avaliação do sofrimento psíquico "[...] não está na quantificação do dano, mas essencialmente, nas condições em que ocorreu o resultado e o evento causador".

Segundo XIMENES, OLIVEIRA e ASSIS (2008), no âmbito da família, agressões físicas graves, abuso sexual, tortura, ameaças à vida da pessoa ou de alguém próximo podem ser considerados como eventos ameaçadores, desencadeando o quadro de TEPT (Transtorno de Estresse Pós-Traumático). O estressor é considerado uma ameaça à vida (em termos jurídicos, se torna uma violação ao princípio da proteção integral de menores, que têm absoluta prioridade), podendo desencadear sintomas variados:

(1) revivência do evento traumático (lembranças aflitivas, intrusivas e recorrentes do evento; sonhos com o evento, episódios de flashback em que a pessoa age ou sente como se o episódio estivesse ocorrendo novamente, entre outros sintomas);

(2) esquiva persistente de estímulos associados ao evento (esforços para evitar pensamentos, sentimentos e conversas associadas ao evento; esforços no sentido de evitar locais, pessoas, ações e tudo que lembre o evento, sensação de afastamento em relação a outras pessoas; entre outros sintomas); e

(3) excitabilidade aumentada (hipervigilância; dificuldade de manter o sono; surtos de raiva e irritabilidade; dificuldades de manter a concentração).

SOARES (1999) considera o agressor conjugal resultado de um histórico de reações inadequadas ao estresse, abuso prévio ou incapacidade psicológica de se relacionar, possibilitando, desse modo, a elaboração de um modelo para a compreensão da violência.

CORTEZ et al. (2005, p. 14) entende que:

Contribuindo para a ocorrência e perpetuação dos comportamentos agressivos do homem dentro da família estão a conivência e, de certa forma, o estímulo por parte da sociedade à exibição de força e agressividade masculinas (Sinclair, 1985). O fato de essa agressão ser dirigida à companheira revela, ainda, a discriminação social em relação à mulher, principalmente quando ela está no papel de esposa (Sinclair, 1985; Saffioti, 1997). [...]

Enfim, a violência doméstica vai muito além dos gritos, socos na cara, xingamentos. Também envolve a apropriação indébita do patrimônio da mulher, os impedimentos à circulação, dificuldades de contato com familiares e amigos. Qualquer que seja a manifestação de violência, sempre traz consigo a violência psicológica. Ocorre que a violência psicológica é pouco considerada nos processos judiciais, principalmente quando vem sozinha. Temos exemplos de condutas de gaslighting (desqualificação da capacidade cognitiva, percepção, memória, raciocínio da mulher, pelo fato de ser mulher - em frases e condutas como "você é louca!", "você não entende nada!", "você não é capaz!", e outras). Precisamos tornar visível também o sofrimento psicológico dessas vítimas, pois a desconsideração pode causar sintomas psicossomáticos graves e irreversíveis, bem como transtornos psiquiátricos de dimensões desconhecidas.

Além do mais, é um gesto de cidadania e respeito, cumprindo as premissas da nossa legislação vigente e da Declaração dos Direitos Humanos.

É isso, espero que tenham apreciado este artigo, e nos encontramos nos próximos!

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BITTAR, D.; KOHLSDORF, M. Ansiedade e depressão em mulheres vítimas de violência doméstica. Psicologia Argumento. Curitiba, v. 31, n. 74, p. 447-456, jul./set. 2013. Disponível aqui. Acesso em: set. 2020.

DAY, V.P.; TELLES, L.E.B.; ZORATTO, P.H.; AZAMBUJA, M.R.F.; MACHADO, D.A.; SILVEIRA, M.B.; DEBIAGGI, M.; REIS, M.G.; CARDOSO, R.G.; BLANK, P. Violência doméstica e suas diferentes manifestações. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, v. 25, n. 1, p. 09-21, 2003. Disponível aqui. Acesso em: 12 out. 2020.

FLORES, R.Z.; CAMINHA, R.M. Violência sexual contra crianças e adolescentes: Algumas sugestões para facilitar o diagnóstico correto. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 158-167, 1994. Disponível aqui. Acesso em: 17 maio 2014.

FREUD, S. Moisés e o monoteísmo. In: _____. Moisés e o monoteísmo, Esboço de psicanálise e outros trabalhos (1937-1939). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. XXIII, p. 03-88, [s.a.].

FREUD, S. O Estranho. In: _____. História de uma neurose infantil e outros trabalhos, 1919. Coleção Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. XIV, p.138-160, [s.a.].

HIRIGOYEN, M.F. A violência no casal: da coação psicológica à agressão física. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

JACOBUCCI, P.G.; CABRAL, M.A.A. Depressão e traços de personalidade em mulheres vítimas de violência doméstica. Revista Brasileira de Psiquiatria. São Paulo, v. 26, n. 3, p. 215, 2004. Disponível aqui. Acesso em: 12 out. 2020.

NARVAZ, M.G.; KOLLER, S.H. Mulheres vítimas de violência doméstica: compreendendo subjetividades assujeitadas. Psico. Porto Alegre, v. 37, n. 1, p. 7-13, jan./abr. 2006. Disponível aqui. Acesso em: 12 out. 2020.

REPETIÇÃO, COMPULSÃO À. In: LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-B. Vocabulário de Psicanálise. 11 ed. São Paulo: Martins Fontes, p. 86, 2016.

ROVINSKI, S.L.R. A avaliação do dano psíquico em mulheres vítimas de violência. In: SHINE, S.K. (org). Avaliação psicológica e lei: adoção, vitimização, separação conjugal, dano psíquico e outros temas. 2. ed. São Paulo: Editora Casa do Psicólogo Livraria, p.175-190, 2008. cap.

ROVINSKI, S.L.R. Fundamentos da perícia psicológica forense. 3. ed. São Paulo: Vetor, 2013.

SILVA, L.L., COELHO, E.B.S.; CAPONI, S.N.C. Violência silenciosa: violência psicológica como condições da violência física doméstica. Interface - Comunicação, Saúde, Educação. Botucatu, v. 11, n. 21, p. 93-103, 2007. Disponível aqui. Acesso em: 12 out. 2020.

SOARES, B.M. Mulheres Invisíveis: violência conjugal e novas políticas de segurança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

XIMENES, L.F.; OLIVEIRA, R.V.C.; ASSIS, S.G. Violência e transtorno de estresse pós-traumático na infância. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 14, n. 02, p. 417-433, 2008. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2020.

Denise Maria Perissini da Silva

VIP Denise Maria Perissini da Silva

Psicóloga clínica e jurídica. Mestre em Ciências Humanas pela UNISA. Coordenadora da pós-graduação em Psicologia Jurídica. Colaboradora Comissões de OAB/SP. Autora de livros de Psicologia Jurídica de Família.

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