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Cláusula de não concorrência nos contratos de trespasse no Brasil

Aspectos essenciais relacionados à cláusula de não concorrência nos contratos onerosos envolvendo transferência de estabelecimento empresarial.

sexta-feira, 5 de março de 2021

Atualizado em 11 de março de 2021 15:01

 (Imagem: Arte Migalhas.)

(Imagem: Arte Migalhas.)

O presente artigo tem o objetivo de analisar a aplicação da cláusula de não concorrência nas relações envolvendo transferência onerosa de estabelecimento empresarial. Para essa análise, são abordadas a evolução histórica do tema, a aplicação da cláusula no ordenamento jurídico brasileiro e as restrições a ela aplicáveis. Ao final, conclui-se pela legalidade da existência implícita da cláusula de não concorrência, desde que obedecidos os limites impostos à esta.

Considerações Iniciais

O primeiro registro na história sobre uma cláusula de não concorrência1 ocorreu na Inglaterra em 1414. O caso Dyer tratou de um acordo firmado entre John Dyer e um comerciante da região, Dyer teria concordado em não realizar atividades comerciais na mesma cidade que o referido comerciante por um período de seis meses, mas descumpriu o contrato. Dyer foi absorvido, pois o Tribunal entendeu que o contrato firmado era contrário ao direito comum2. Provavelmente, o entendimento do Tribunal tenha sido influenciado pelos valores econômicos de laissez faire3.

No Brasil, o assunto surgiu por volta de 1914, através do leading case4 envolvendo dois dos maiores juristas brasileiros, Carvalho Mendonça e Rui Barbosa. Os acionistas da Companhia Nacional de Tecidos de Juta alienaram sua participação societária a terceiros. Porém, pouco tempo depois abriram a Companhia de Aniagem para atuar no mesmo ramo de atividade e na mesma posição geográfica que a companhia alienada. A demanda englobava a discussão sobre a possibilidade dos antigos acionistas atuarem no mesmo ramo da fábrica alienada, ou seja, se estaria ou não implícito no negócio firmado a obrigação da não concorrência.

O caso foi levado ao STF, que se posicionou no sentido de que a renúncia ao exercício de determinado ramo de comércio ou indústria não ocorre de forma presumida. Afirmou que a renúncia deve ser expressa para que não contrarie o princípio constitucional da livre concorrência.

Não obstante este posicionamento da Suprema Corte, a jurisprudência consolidou-se, ao longo dos anos, no sentido oposto. Baseando-se, primordialmente, no princípio da boa-fé objetiva, firmou-se o entendimento de que a obrigação de não concorrência nos contratos envolvendo alienação do estabelecimento empresarial está implícita no negócio entre as partes. 

Com base em jurisprudência consolidada, foi positivada na legislação infraconstitucional, no CC/02, em seu artigo 1.147, a cláusula de não concorrência, dispondo da seguinte forma: "não havendo autorização expressa, o alienante do estabelecimento não pode fazer concorrência ao adquirente, nos cinco anos subsequentes à transferência". As disposições contidas no referido artigo merecem ser analisadas de forma criteriosa, conforme será tratado no tópico seguinte.

Cláusula de não concorrência no contrato de trespasse

A cláusula de não concorrência no contrato de trespasse5 pode ser definida como uma limitação ao alienante de exercer sua liberdade empresarial no seu antigo campo de atuação (ramo do negócio) por um determinado período de tempo e em determinada área geográfica. Trata-se de uma cláusula acessória, estabelecida em benefício do adquirente, por existir a expectativa de este adquirir de forma integral todos os ativos, inclusive o know-how6 desenvolvido ou clientela atrelada ao estabelecimento empresarial objeto do contrato.

O ordenamento jurídico brasileiro regulamentou a matéria na legislação infraconstitucional, proibindo, como regra geral, o alienante de exercer concorrência com o adquirente no prazo de cinco anos, contados a partir da transferência do estabelecimento empresarial. Contudo, em atendimento ao princípio da autonomia da vontade, que rege as relações contratuais, o legislador previu a possibilidade de disposição diversa.

Assim, caso haja disposição contratual expressa abrindo mão da cláusula de não concorrência o alienante fica livre para exercer a mesma atividade sem que lhe seja imposto restrições. No mesmo sentido, é possível que se estipule prazo diferente daquele constante na Lei. Todavia, quando se tratar de estipulação de prazo superior ao previsto na norma em comento, é necessário ater-se ao disposto no Enunciado 490 do Conselho de Justiça Federal: "A ampliação do prazo de 5 (cinco) anos de proibição de concorrência pelo alienante ao adquirente do estabelecimento, ainda que convencionada no exercício da autonomia da vontade, pode ser revista judicialmente, se abusiva". O entendimento jurisprudencial é de que é válida a vedação à concorrência por mais de cinco anos, porém deverá atender a certos limites a fim de que não se desvie de sua função e se evite conduta abusiva de alguma das partes.

Apesar de o legislador ter conferido certa autonomia às partes para pactuarem de maneira diversa que a contida na lei, a estipulação da cláusula deve atender à certas limitações. Nessa perspectiva, é necessário que seja feita uma ponderação entre o princípio da autonomia da vontade e o princípio da livre concorrência. Além da limitação temporal, existe a necessidade de limitação da zona espacial para que a cláusula de não concorrência atinja sua finalidade precípua. Entende-se que o âmbito territorial de aplicação da proibição varia de acordo com a natureza do comércio ou indústria bem como com a natureza da clientela, de modo a atender o princípio proporcionalidade. Tal limitação é verificada com base no caso concreto e advêm do conceito de mercado relevante cuja explicação será aprofundada no tópico seguinte.

Restrições aplicáveis à proibição da concorrência

A própria cláusula de não concorrência possui natureza restritiva, embora se trate de uma disposição legal, ela limita a livre iniciativa, princípio basilar constitucional que fundamenta a ordem econômica brasileira. Por essa razão, a proibição à livre concorrência deve ser revestida de limites estritos que condicionam seu alcance e sua produção de efeitos. A solução que pareceu mais sensata, foi sendo construída ao longo anos, primeiro estabelecida no estrangeiro e depois no Brasil, é a de que condiciona a validade da cláusula a sua delimitação no tempo e no espaço.

O direito concorrencial, conferiu restrições de forma mais específica as relações envolvendo obrigação não concorrencial. A autoridade responsável pela proteção da livre concorrência, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE, órgão antitruste brasileiro, condiciona a validade das cláusulas de não concorrência aos seguintes requisitos:

(i) sejam medidas auxiliares ao negócio principal (acessoriedade);

(ii) sirvam de garantia da viabilidade negocial (instrumentalidade);

(iii) submetam-se a parâmetros mínimos fixados pelo Conselho, notadamente relacionados aos limites material, territorial e temporal da cláusula7.

A característica acessória da cláusula de não concorrência pressupõe que ela está atrelada ao objeto material do contrato, ou seja, deve ser analisada de acordo com o negócio principal e se justifica como medida determinante para concretização do acordo. Do ponto de vista da instrumentalidade, a cláusula visa coibir que o alienante, favorecendo-se da expertise adquirida no exercício de sua atividade empresarial, exerça concorrência desleal com o adquirente. De maneira a conferir segurança jurídica ao negócio.

Quanto ao âmbito territorial, a análise é feita de acordo com conceito de mercado relevante que especifica a área geográfica onde a competição entre os agentes econômicos ocorre, variando de acordo com o estabelecimento empresarial.   Já o âmbito material define os produtos ou serviços intercambiáveis entre si. Assim, caso um produto ou serviço não possam ser substituídos em uma relação concorrencial então esta não será configurada.   

O aspecto temporal tem por objetivo garantir a efetiva consolidação dos ativos adquiridos, sejam diretos ou indiretos, corpóreos ou incorpóreos. Como já visto, o próprio legislador estabeleceu o prazo de cinco anos para restrição da concorrência, porém é possível que as partes pactuem prazo diverso, desde que atenda o objetivo da restrição. Entende-se que o prazo tem o objetivo de garantir que o estabelecimento empresarial seja transferido em sua integralidade. Em outras palavras, o prazo deve ser capaz de garantir a consolidação dos valores sui generis nas mãos do adquirente8.

A jurisprudência do CADE consolidou-se no sentido de que a cláusula de não concorrência pactuada em desacordo com as restrições a ela impostas, deverão ser consideradas inválidas. Isso porque, o elemento justificador da cláusula de não concorrência é a característica da acessoriedade que instrumentaliza o âmbito dos atos de concentração. Portanto, qualquer pactuação que não obedeça às restrições elencadas neste tópico limitaria injustificadamente a concorrência, por esse motivo, são entendidas como afronta ao princípio da livre concorrência.

Considerações Finais

Por todo exposto, conclui-se que o ordenamento jurídico brasileiro adota a aplicação implícita da cláusula de não concorrência nas relações envolvendo transferência onerosa de estabelecimento empresarial. Garante-se, ainda, em atenção a autonomia da vontade aplicada às relações contratuais, a possibilidade de pactuação diversa daquela prevista em lei. Todavia, apesar da lei garantir essa autonomia, para que a livre concorrência seja respeitada, a cláusula de não concorrência precisa obedecer a certas restrições para que seja válida. Por esse motivo, o órgão antitruste brasileiro tem a atribuição de fiscalizar e controlar a aplicação da presente cláusula para que não se configure nenhum abuso econômico, garantido- se, assim, segurança jurídica ao contrato de trespasse.

__________

1- Richard Whish and David Bailey, defines competition as 'competition means a struggle or contention for superiority, and in the commercial world this means a striving for the custom and business of people in the market place' (WHISH, Richard; BAILEY, David. Competition Law. 7ª edição. Nova Iorque: Oxford University Press, 2012, p. 3).

2- MINDA, Gary, The Common Law, Labor and Antitrust, 11 Berkeley J. Emp. & Lab. L. 461 (1989). p. 475-476. Disponível em aqui. Acessado em 30.12.2020.

3- Expressão francesa que simboliza o liberalismo econômico.

4- É uma decisão que cria um precedente jurisprudencial que serve de base para os casos futuros.

5- Contrato oneroso de transferência do estabelecimento empresarial.

6- "Know-how can be defined as confidentially held, or better, closely held information in the form of unpatented inventions, formulae, designs, drawings, procedures and methods, together with accumulated skills and experience in the hands of a licensor firm's professional personnel which could assist a transferee/licensee of the object product in its manufacture and use and bring to it a competitive advantage". (KNOW-HOW. Wikipedia, 2020. Disponível aqui. Acesso em 02.01.2021.).

7- CRUZ, André. Direito Empresarial. São Paulo: método, 2020. p. 250. 

8- CRUZ, André. Direito Empresarial. In: CARVALHO, Orlando. Critério e estrutura do estabelecimento comercial. Coimbra: Atlântida, 1967. p. 497-498. v. 1. p. 249.

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MINDA, Gary, The Common Law, Labor and Antitrust, 11 Berkeley J. Emp. & Lab. L. 461 (1989). Disponível aqui.  Acessado em 30.12.2020.

WHISH, Richard; BAILEY, David. Competition Law. 7ª edição. Nova Iorque: Oxford University Press, 2012.

CRUZ, André. Direito Empresarial. In: CARVALHO, Orlando. Critério e estrutura do estabelecimento comercial. Coimbra: Atlântida, 1967. p. 497-498. v. 1.

V JORNADA DE DIREITO CIVIL. Enunciado 490. CJF enunciados. Disponível aqui. Acesso em: 08.01.2021.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002.

KNOW-HOW. Wikipedia, 2020. Disponível aqui.. Acesso em 02.01.2021.

TJDFT. 1ª Turma. RECURSO INOMINADO 0702854-04.2017.8.07.0019. Relatora: Soníria Rocha Campos D'Assunção. Publicação: 05.12.2018.

 

SILVA, Ricardo. Aplicação do artigo 1.147 do Código Civil à Alienação do Controle de Sociedades Empresárias. Publica Direito. Expressão disponível aqui. Acesso em: 06.01.2021.

Jéssica Reis

Jéssica Reis

Advogada pesquisadora em busca de soluções simples para problemas complexos. Formada pela Universidade Católica de Brasília. Pesquisadora em direito empresarial e financeiro.

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