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Reflexões acerca do princípio da autonomia universitária

O presente trabalho propõe uma reflexão acerca da autonomia universitária, prevista no art. 207 da CF, desde a Assembleia Nacional Constituinte até os dias atuais - tempo em que as instituições de ensino públicas vivem uma crise acompanhada de incerteza sobre seu futuro.

quarta-feira, 10 de março de 2021

Atualizado às 09:25

 (Imagem: Arte Migalhas.)

(Imagem: Arte Migalhas.)

Em tempos recentes, muito se tem questionado o futuro das instituições públicas de ensino superior no Brasil, em razão de diversos fatos sucessivamente noticiados.

Questionamentos acerca da alocação de verbas destinadas à educação superior e à pesquisa, dos problemas existentes na gestão dos recursos destinados às Instituições e de seu patrimônio, sem contar a polêmica levantada em torno de suposta ideologia existente no âmbito universitário.

Os temas acima citados geram um debate tão acirrado, que demonstra não somente a polarização de que padece o Brasil atual, mas também a existência de um claro abalo da relação de confiança entre as universidades e a sociedade.

Tais questões tornam imprescindível e urgente o debate acerca do princípio da autonomia universitária, consagrado no artigo 207 da CF em vigor (BRASIL, 1988).

Passadas mais de três décadas, qual balanço é possível fazer a respeito da autonomia universitária?

No caso das universidades públicas, a sensação é de que a liberdade de ensino e pesquisa não se encontra plenamente assegurada, tendo em vista os crescentes conflitos instalados no âmbito da comunidade acadêmica.

Como exemplos de tais conflitos, temos os ataques feitos a professores e alunos por questões políticas e/ou ideológicas, o uso das redes sociais para fins nada construtivos ao meio acadêmico, a tentativa de se impor o que deve e o que não deve ser lecionado em sala de aula, a desenfreada submissão de casos ao Judiciário.

Tais situações assolam a comunidade universitária e demonstram um claro abalo na relação de confiança entre as universidades e a sociedade.

Como muito bem explica Schwartzman (2019), no mundo de hoje, com universidades gigantescas, grandes orçamentos e professores e alunos provenientes de diferentes ambientes e condições sociais, esta relação de confiança fica abalada, fazendo com que movimentos políticos pressionem e governos desenvolvam sistemas complicados e nem sempre bem-sucedidos de avaliação do desempenho das universidades e restrições no acesso e uso de recursos.

Complementa o ilustre autor:

Esta recuperação interessa a todos, e requer um trabalho permanente de ambas as partes. [...]Para recuperar sua legitimidade, as universidades públicas precisam se preocupar mais seriamente com a qualidade e relevância do que produzem, mostrar melhor o que fazem e assumir a responsabilidade pela administração de seus recursos, saindo do colo confortável, mas sufocante, do serviço público. [...]O governo, ao invés de alternar entre aceitar tudo e pagar a conta, para garantir apoio ou com medo dos protestos, ou partir para o ataque, precisa desenvolver um sistema mais adequado de avaliação e associar o financiamento público ao desempenho efetivo das instituições, mediante contratos de gestão, e não a seus custos históricos. (Schwartzman, 2019, p. A2).

É imprescindível, portanto, que a prioridade das universidades não seja de aumentar o corpo docente e administrativo, assim como o valor dos salários, mas, sim, no sentido de expandir as vagas e os cursos no limite máximo de sua capacidade, de modo a atender à demanda social.

A autonomia das universidades deve, sim, ser vista como uma condição necessária para o cumprimento de sua função social, como principais depositárias da cultura, polos de criação de novos conhecimentos e instituições formadoras de profissionais competentes.

Atualmente, as universidades federais não têm plena autonomia no uso dos recursos de pessoal, na seleção de seus alunos, bem como nos investimentos. Além disso, carece de autonomia para atrair talentos, em virtude da rigidez dos planos nacionais de carreira e isonomia salarial.

Por sua vez, o conteúdo dos cursos é cada vez mais determinado externamente, através dos currículos estabelecidos pelo governo. No que tange à pesquisa, existe uma autonomia relativa, pois há uma dependência de recursos controlados por CNPq e CAPES.

O contexto hodierno revela, assim, uma profunda crise que torna imperiosa uma reformulação do modelo existente em nossas universidades, repensando e reconstruindo o atual - e disfuncional - formato, para que venham a ser efetivamente autônomas, não apenas na teoria.

Como bem aponta RANIERI (2018), o artigo 207 vem apresentando mais resultados contraditórios que desempenho adequado de sua função social. Aprimorar a autonomia universitária, tanto por parte do Poder Público quanto das próprias universidades, é condição vital para que não se transforme em mitologia jurídica, por falta de efetividade.

Como uma alternativa viável para fortalecer as nossas instituições de ensino, vem ganhando força a corrente a defender a criação de uma vinculação direta de recursos às universidades, como um percentual de determinados tributos independente da vontade dos governos.

É o que ocorre desde 1989 com as Universidades Públicas do Estado de São Paulo (USP, Unicamp e UNESP), a partir do Decreto estadual nº 29.598/89, que prevê o repasse de percentual do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) às instituições, em duodécimos mensais, sendo verbas administradas autonomamente pelas instituições.

Não é o que ocorre, contudo, nas universidades federais, que contam com financiamento do Tesouro Nacional e fontes alternativas, como convênios, contratos e financiamento de pesquisa (RANIERI, 2018).

Já em âmbito estadual, percebe-se já existir uma mobilização para que outras instituições sigam o mesmo caminho. É o caso das universidades do Estado do Rio de Janeiro, pois, desde o ano de 2017, tramita no STF a ADPF n° 474, proposta pela Rede Sustentabilidade, com pedido expresso para que as universidades públicas fluminenses (UERJ, UENF e UEZO) façam jus ao recebimento de duodécimos mensais dos valores a elas atribuídos pelo orçamento do Estado do Rio de Janeiro, nos termos do art. 168 da Constituição, cabendo-lhes gerir autonomamente os referidos recursos para o desempenho de suas atividades institucionais.

Sem dúvidas, a fixação de um montante em termos de porcentagem da arrecadação representa a efetivação da autonomia universitária, na medida em que garante um fluxo de recursos que não depende de negociação permanente. Não por acaso, USP e Unicamp são as duas primeiras colocadas no ranking divulgado em 7 de outubro de 2019 pela Folha de São Paulo em sua avaliação periódica - RUF.

Merece ser destacada, ainda, a implementação de programas de integridade no âmbito das instituições de ensino. Para se combater a corrupção que infelizmente veio a assolar as instituições brasileiras, é necessário haver um verdadeiro compromisso social dos atores envolvidos em prol da moralidade administrativa e da prestação de um serviço público de excelência, influenciando as novas gerações a seguirem um perfil pautado em valores de ética e integridade.

Para além das questões administrativas, financeiras, orçamentárias, fiscais e de integridade, é imprescindível que a sociedade e o Poder Público envidem máximo esforço para garantir a manutenção da autonomia didático-científica, para permitir a histórica e fundamental liberdade acadêmica.

Não é benéfico se deparar, nos dias de hoje, com agentes políticos desferindo acusações aos professores brasileiros de "doutrinarem ideologicamente" os alunos durante as aulas e criando canais para que sejam feitas "denúncias" aos profissionais do magistério superior.

Esse tipo de conduta persecutória representa um absurdo retrocesso num país que viveu 15 anos de regime militar, com cassações de professores universitários por questões políticas e tentativas de controle ideológico da vida acadêmica por dispositivos de censura instalados nas instituições, trazendo acachapante prejuízo às universidades.

A liberdade acadêmica consagra exatamente a liberdade de ensino, de expressão e de investigação face a limitações de natureza religiosa, política ou ideológica e diz respeito aos docentes.

Trata-se de um valor que não pode, em hipótese alguma, ser perdido ou esquecido - pelo contrário, deve ser permanentemente valorizado e assegurado.

Sociedade e poder público devem caminhar juntos, encarando a autonomia das universidades como uma condição necessária para o cumprimento de sua função social, como principais depositárias da cultura, polos de criação de novos conhecimentos e instituições formadoras de profissionais éticos e competentes.

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CIRNE, Mariana Barbosa. Universidade e constituição: uma análise dos discursos do plenário do STF sobre o princípio da autonomia universitária. 2012. 153 f. Dissertação (Mestrado em Direito)-Universidade de Brasília, Brasília, 2012.

DURHAM, Eunice Ribeiro. Os desafios da autonomia universitária. Educação e Sociedade. São Paulo, v. X, n.33, 1989.

____________. A autonomia universitária extensão e limites. São Paulo: Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior da USP, 2005 (Documento de Trabalho).

RANIERI, Nina. Autonomia Universitária: as Universidades Públicas e a Constituição Federal de 1988. São Paulo: Editora da USP, 1994.

____________. Educação Superior, direito e Estado: na Lei de Diretrizes e Bases (lei 9.394/96). São Paulo: Editora da USP, 2000.

____________. Trinta Anos de Autonomia Universitária: Resultados Diversos, Efeitos Contraditórios. 2018, vol.39, n.145, pp.946-961.  Epub 14-Nov-2018. ISSN 0101-7330.  Disponível aqui..

SCHWARTZMAN, Simon. (Org.). A educação superior na América Latina e os desafios do século XXI. Campinas. Editora da Unicamp, 2014

____________. Confiança e autonomia das universidades. Artigo publicado no O Estado de São Paulo, 10/05/2019, p. A2. Disponível aqui.. Acesso em: 24 jul. 2019.

Davi Valdetaro Gomes Cavalieri

Davi Valdetaro Gomes Cavalieri

Procurador Federal, carreira da Advocacia-Geral da União (AGU). Ex-Procurador Municipal. Mestrando em Desenvolvimento no Estado Democrático de Direito, pela FDRP/USP. Especialista em Direito Público.

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