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A ampliação da complexidade e risco das funções do Administrador Judicial na lei 14.112/20

Como a nova lei 14.112/20 impacta na atuação do administrador judicial, trazendo novos deveres que são mais complexos do que aparentam em uma primeira leitura.

quinta-feira, 11 de março de 2021

Atualizado às 14:33

 (Imagem: Arte Migalhas.)

(Imagem: Arte Migalhas.)

A lei 14.112/20, promulgada no dia 24 de dezembro de 2020, se revela como uma verdadeira reforma da lei 11.101/05 e, consequentemente, do sistema falimentar e recuperacional brasileiro, haja vista as mudanças significativas, modernização e melhoria da segurança jurídica no processamento dos institutos.

I. Atribuições comuns na recuperação judicial e falência

Dentre as muitas novidades trazidas pela legislação reformista, especialmente aquelas concernentes às funções do administrador judicial, as novas atribuições comuns parecem elevar sua atuação em um novo patamar, seja obrigacional, seja de risco.

Embora possa se dizer que grande parte das mudanças apenas positivou atos já praticados pelos administradores judiciais modernos, o que, por um lado, traz maior segurança jurídica à atuação, a ampliação do rol legal é bem mais profunda do que parece em uma primeira leitura, abarcando deveres anexos e novas necessidades de adequação ao ordenamento que tornam a função de administrador judicial mais complexa.

O primeiro dever incluído é aquele que demanda do administrador a estimulação da realização de conciliação, mediação ou outros métodos alternativos de resolução de questões. É o texto da alínea "j", do inciso I, do artigo 22:

"j) estimular, sempre que possível, a conciliação, a mediação e outros métodos alternativos de solução de conflitos relacionados à recuperação judicial e à falência, respeitados os direitos de terceiros, na forma do § 3º do art. 3º da lei 13.105/15 (Código de Processo Civil);"

Nos procedimentos falimentares e de recuperação judicial, o fomento à resolução alternativa de disputas também já vinha ocorrendo, seja empiricamente com base na Resolução 125/2010 e no CPC/15, seja com base em recomendações de órgãos estatais, como, por exemplo, a recomendação 58/19, do CNJ.

Nota-se que a nova redação legal não atribui nova função ao administrador judicial - mas apenas um dever de fomento à resolução alternativa de disputas. Isso porque as funções, apesar de complementares, não se confundem, haja vista que sua cumulação decerto comprometeria o dever de confidencialidade do mediador e conciliador prevista no artigo 166, caput e §1º, do Código de Processo Civil, que se opõe ao dever de transparência do administrador judicial.

Por fim, como reforço do acerto da disposição, o administrador é peça chave no fomento à mediação e conciliação em processo falências e recuperacionais complexos, a exemplo do que ocorreu na Recuperação Judicial da Livraria Saraiva, na qual, ainda no ano de 2018, o auxiliar da justiça propôs a medida antes da apresentação do plano de recuperação, com o objetivo de facilitar o diálogo e assimetria de informações entre as partes, com a escuta ativa de suas pretensões e interesses1.

O segundo novo dever comum do administrador judicial, cuja complexidade é maior do que aparentemente se demonstra são aqueles previstos nas alíneas "k" e "l", do inciso I, do artigo 22, in verbis:

"k) manter endereço eletrônico na internet, com informações atualizadas sobre os processos de falência e de recuperação judicial, com a opção de consulta às peças principais do processo, salvo decisão judicial em sentido contrário;"

"l) manter endereço eletrônico específico para o recebimento de pedidos de habilitação ou a apresentação de divergências, ambos em âmbito administrativo, com modelos que poderão ser utilizados pelos credores, salvo decisão judicial em sentido contrário;"

Da mesma forma que a mediação e conciliação já vinham sendo fomentadas antes da positivação, administradores judiciais modernos já mantém endereço eletrônico na internet com informações e peças processuais relevantes das falências ou recuperações judiciais que administram2, contudo, a previsão de sua obrigatoriedade no ordenamento privilegia a publicidade e a transparência de sua atuação e do andamento do processo.

Ocorre que a previsão legal traz meandros mais profundos que poderão fazer com que a função do administrador judicial se torne mais onerosa.

Tendo em vista que alguns documentos a serem disponibilizados online pelos administradores tratam de dados sensíveis, como, por exemplo, a relação de credores, que contém o valor atualizado do crédito, endereços físicos e eletrônicos de cada um; relação de empregados, com discriminação de nomes, funções, salários, etc.; relação de bens particulares dos sócios controladores e dos administradores; entre outros, é importante a adequação do tratamento de tais dados à luz da Lei Geral de Proteção de Dados - lei 13.709/18, que entrou parcialmente em vigor em setembro de 2020.

Através da disponibilização online de tais dados - ainda que alguns, ou a maioria, possa ser suprimida por determinação legal - o administrador judicial passa a ser considerado ora como controlador de dados pessoais, à luz do artigo 5º, inciso VI, da LGDP, vez que compete a ele a tomada de decisões referentes ao tratamento de dados pessoais, ora como operador, à luz do artigo 5º, VII, pois realiza o tratamento em nome de terceiros, como explicam Daniel Becker e Lucas Latini3.

Como obrigação, deverá o administrador judicial elaborar ferramentas para atender o pleito de titulares de dados que eventualmente requeiram o acesso a eles, nos termos dos artigos 18 e 19, da lei 13.709/18, estando sujeitos, dessa forma, à responsabilidade civil e sanções previstas na LGPD (artigo 52 e seguintes) que, aliada à responsabilidade civil já prevista na legislação falimentar, acaba por onerar e elevar o risco da atividade de administrador judicial4.

Salienta-se que as sanções previstas na LGPD apenas entram em vigor em agosto de 2021, conforme previsto na lei 14.010/20, de forma que ainda há certo tempo para reflexão e ponderação acerca de tais pontos pela doutrina e jurisprudência.

Em linha com a conceituação da função do administrador judicial - órgão auxiliar do juízo que atua como braço direito do juízo falimentar e, portanto, exercente de função pública - bem como a natureza dos dados, todos disponibilizados em processo judicial ou extrajudicial a ser homologado, não parece errado afirmar que, ao menos na aplicação das normas previstas na LGPD, que a regulação seja dada pelo seu capítulo IV, que trata do tratamento de dados pessoais pelo Poder Público.

No mais, cabe anotar que o recebimento de pedidos de habilitação ou a apresentação de divergências, ambos em âmbito administrativo, com modelos que poderão ser utilizados pelos credores não dispensa, por óbvio, a proclamação do juízo, apenas facilitando o acesso e compilação de informações afim de promover a celeridade do procedimento.

Por fim, a inclusão do texto da alínea "m", no inciso I, visa evitar o tumulto processual, com afastamento de deliberação do juízo falimentar ou recuperacional acerca do cumprimento de obrigações administrativas simples, como as respostas aos ofícios e solicitações de outros juízos ou órgãos públicos, o que não obsta eventual consulta ao Magistrado.

II. Atribuições específicas na recuperação judicial

As atribuições específicas do administrador judicial previstas para a recuperação judicial traduzem, especialmente, o dever de fiscalização da atividade do devedor e dos credores, a fim de evitar a prática de atos que descumpram o plano de recuperação judicial ou o exercício abusivo de direitos pelos credores.

Como atualização desse dever de fiscalização, foi prevista na alínea "h", do inciso II, do artigo 22, o dever do administrador judicial de apresentar aos autos - e agora também publicar no endereço eletrônico acima mencionado - o relatório mensal de atividades do devedor e sobre o plano de recuperação, robustecendo a necessidade de fiscalização acerca da veracidade e conformidade das informações prestadas.

O dever de verificação da veracidade e conformidade das informações prestadas, embora pareça dever intrínseco à sua função, não era previsto legalmente, o que, com a nova legislação, acaba por inflar a responsabilidade legal do administrador e, por consequência, seus riscos, sendo mais do que necessário que possua uma equipe multidisciplinar a fim de proceder a uma verdadeira due diligence para verificação das informações prestadas pelo devedor. Tal complexidade pode afastar eventuais interessados em preencher o cargo.

III. Atribuições específicas na falência

Muito mais extensas do que as funções verificadas na recuperação judicial, pois aqui o administrador judicial assume a administração da empresa e atua com função liquidatória, as mudanças trazidas pela lei 14.112/20, apesar de pouco extensas, alteram substancialmente a função e o ônus que recai sobre o administrador judicial.

A nova redação da alínea "c", amplia a representação da massa pelo administrador que, além de assumi-la em processos judiciais, o fará também extrajudicialmente e em processos arbitrais, positivando o entendimento jurisprudencial corrente e fortalecendo o procedimento arbitral, em consonância com o disposto no artigo 6º, §9º, e estimulação de formas alternativas de solução de conflitos.

Mais além, com a regulamentação dos processos de insolvência transnacional, ficou o administrador judicial autorizado a atuar em outros países, na qualidade de representante do processo brasileiro e independente de decisão judicial nesse sentido, desde que a providência seja permitida pelo país em que tramita o processo estrangeiro, conforme enunciado no artigo 167-E, II.

Ademais, nos termos dos artigos 167-A, §2º e 167-P pode também o administrador promover diretamente medidas de assistência solicitadas pelo representante ou autoridade estrangeira, ou juízo brasileiro.

Na realização do ativo e pagamento do passivo, a lei 14.112/20 trouxe mudanças relevantes para o administrador judicial. Não tanto com relação às funções anteriormente previstas, mas sim no que toca aos prazos para sua efetivação, expressamente previstos e exíguos, levando a doutrina a pensar, em um primeiro momento, acerca da dificuldade de sua aplicabilidade na realidade forense.

Antes de iniciar a busca de ativos do devedor, o administrador judicial deve apresentar, em sessenta dias de seu termo de nomeação, plano detalhado de realização de ativos, conforme enunciado do novo §3º, do artigo 99. Tal plano deve prever a arrecadação de valores de depósitos realizados em processos administrativos ou judiciais nos quais o falido figure como parte, oriundos de penhoras, bloqueios, apreensões, leilões, alienação judicial, entre outros, conforme a alínea "s", do inciso III, do artigo 22.

Após a arrecadação, prevê a legislação, especificamente no artigo 22, III, "j" e na segunda parte do §3º, do artigo 99, que a venda de todos os bens da massa falida deve ocorrer no prazo máximo de cento e oitenta dias, contados da juntada do auto de arrecadação. No caso de não cumprimento do prazo previsto, a penalidade é severa, culminando na destituição do administrador judicial, embora tenha a lei previsto a possibilidade de ampliação do prazo legal de alienação, desde que a impossibilidade de cumprimento seja reconhecida por decisão judicial.

Por fim, cabe apontar também um dispositivo facilitador da função do administrador judicial. Tendo em vista que ele é o responsável pela arrecadação e a guarda dos bens para realização do ativo, o artigo 114-A dispõe, de forma expressa, que se não forem encontrados bens para serem arrecadados, ou se o forem insuficientes para as despesas do processo, o administrador judicial informará o fato imediatamente ao juiz que, ouvido o MP, fixará por edital prazo de dez dias para os interessados se manifestarem. No silêncio, a venda fica autorizada no prazo máximo de trinta dias, para bens móveis, ou sessenta para imóveis, nos termos do §2º, do mesmo artigo, com posterior encerramento da falência.

IV. Conclusão

A lei 14.112/20, elevou sobremaneira as possibilidades de atuação do administrador judicial, aumentando o grau de complexidade da função e, como consequência, ampliando também sua responsabilidade e volume de trabalho e, por que não, potencializando os riscos de sua atuação, que agora ocorre em mais frentes e com mais autonomia.

De uma forma ou de outra, a reforma é importante para modernizar a normativa do direito falimentar, buscando a positivação de instrumentos novos e já consagrados na jurisprudência, visando ainda processos mais céleres e efetivos, dando segurança jurídica aos devedores, credores, auxiliares e, mais importante, ao mercado. Resta saber como a realidade da nova legislação impactará a atuação do administrador judicial.

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1- Relatório Preliminar de Atividades do administrador judicial. Acesso em fevereiro de 2021.

2- A exemplo, os sites da recuperação judicial do Grupo Saraiva e Grupo Oi, cujos sítios eletrônicos são, respectivamente aqui (acesso em fevereiro de 2021) e aqui (acesso em fevereiro de 2021).

3- BECKER, Daniel. LATINI, Lucas. Direito Falimentar 4.0. O Estado de São Paulo, 26 de janeiro de 2021. Disponível aqui. Acesso em fevereiro de 2021.

4- BECKER, Daniel. LATINI, Lucas. Op. Cit.

César Zanetti

César Zanetti

Assistente judiciário no Tribunal de Justiça de São Paulo. Especializando em direito empresarial pela Escola Paulista da Magistratura.

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