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A supremacia da vontade popular

O Estado Democrático de Direito é uma conquista. A sociedade precisa de leis que a controlem e organizem.

sexta-feira, 19 de março de 2021

Atualizado às 16:11

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O desejo por um mundo mais justo não pode nos cegar a ponto de se considerar certo o que é errado. A importância do Estado Democrático de Direito para muitos é uma abstração, ou mero argumento de advogados para livrar clientes, em geral ricos, dos rigores da lei. Trata-se de visão preconceituosa e perigosa.

O Estado Democrático de Direito é uma conquista. A sociedade precisa de leis que a controlem e organizem. Por volta de 1.700 a.c., o rei Hamurabi da Mesopotâmia criou o Código de Hamurabi baseado na Lei de Talião que preconizava a dura repressão do crime praticado. A máxima do "olho por olho dente por dente" era regra em uma sociedade na qual as pessoas eram desiguais.

O Brasil do século XXI se apresenta como uma democracia representativa e participativa, na qual prevalece a soberania popular e o respeito à Constituição Federal. Em 2010, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei da Ficha Limpa que torna inelegível aqueles que tiverem mandato cassado, renunciarem para evitar cassação de mandato ou sejam condenados por decisão de órgão colegiado, mesmo que exista possibilidade de recurso. A sociedade aplaudiu a nova lei desejosa de moralidade no trato da coisa pública diante da percepção de que a corrupção por tantos anos ficou impune e assombrada com o chamado escândalo do Mensalão.

O acaso fez com que a Operação Lava Jato - com seus acertos e desacertos - trouxesse para superfície o que foi classificado pelo Supremo Tribunal Federal como esquema cleptocrata de poder que financiava o partido no Governo e a base aliada. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi condenado por órgão colegiado, o que, segundo a Lei da Ficha Limpa que ele próprio sancionou, o excluía da corrida eleitoral.

Essa circunstância pode atender ao senso de justiça de parte significativa da população, mas atropela o princípio da presunção de inocência e, sobretudo, coloca em risco elemento basilar do Estado Democrático de Direito que é a soberania popular. Não se trata de gostar ou não do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, nem mesmo de aprovar ou não a agenda política imposta ao Estado brasileiro. Toda vez que a soberania popular é ameaçada, nós, cidadãos, estamos em risco pelo casuísmo do momento.

Os Poderes Legislativo e Judiciário não poderiam - ou ao menos não deveriam poder - instituir leis que cassem o direito soberano da população de escolher mediante o exercício livre do voto a pessoa que entende que melhor lhe representa no comando da nação. A população nada fez para ser condenada e o voto, em certo sentido, é sofista, ou seja, o discurso que melhor atende aos anseios do momento cativa a população e rende mais votos. Isso é a democracia.

A questão vista em números é ilustrativa. No âmbito federal, mais de 210 milhões de brasileiros se fazem ouvidos através do voto popular para eleger o Presidente da República e 594 membros do Congresso Nacional (Deputados e Senadores). A decisão majoritária de um órgão colegiado, composto por no mínimo 3 magistrados, retira desses mais de 210 milhões de brasileiros a capacidade de decidir quem vai representá-los. Sob outro ângulo, 594 congressistas que representam mais de 210 milhões de pessoas delegaram para 3 ou algumas mais pessoas a prerrogativa de proibir que os mais de 210 milhões que elegeram os 594 congressistas possam escolher a sua preferência para presidente da República.

O líder sindical americano Eugene Debs foi cinco vezes candidato à presidência dos Estados Unidos. Ele perdeu todas as eleições, mas a sua votação mais expressiva aconteceu quando ele estava preso e, nem por isso, inelegível.

O Estado Democrático de Direito existe para proteger o indivíduo dos abusos institucionais, não importa quem seja esse indivíduo. A sociedade não deveria aplaudir qualquer iniciativa que coloque em risco fundamentos do Estado Democrático de Direito por mais que essa iniciativa satisfaça nossos desejos e crenças individuais do que seria justo ou merecido. Jean Jacques Rousseau dizia que a vontade individual não deve prevalecer sobre a vontade geral e que o primeiro passo para o bem é não fazer o mal. Cabe a cada um de nós refletir.

Danielle Silbergleid

Danielle Silbergleid

Sócia do Opportunity, formada pela PUC, especialização em Processo Civil (FGV), experiência em litígios nacionais e internacionais. Participou do Women Global Forum for Economic & Society de 2020.

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