A relativização do "Princípio da Norma mais Favorável ao Empregado" no Direito do Trabalho
O artigo 611-A, da CLT, inserido pela Reforma Trabalhista relativizou o Princípio da Norma mais Favorável ao empregado no Direito do Trabalho?
terça-feira, 23 de março de 2021
Atualizado às 12:18
1. HIERARQUIA DAS FONTES DE DIREITO
O Direito é composto por diversos tipos de fontes. Portanto, faz-se necessário estruturar tais fontes para que haja harmonia entre elas. Nesse sentido Hans Kelsen ensina que a "estrutura da ordem jurídica é uma construção escalonada de normas supra e infra ordenadas às outras, em que uma norma do escalão superior determina a criação da norma do escalão inferior..." (Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1987. p. 221).
Segundo Godinho, no Direito comum as normas seguem uma hierarquia segundo sua maior ou menor extensão de eficácia e sua maior ou menor intensidade criadora do Direito. Esse critério de estruturação pode ser bem visualizado na famosa pirâmide de Kelsen.
"À luz desse critério, a hierarquia própria às fontes normativas componentes do Direito Comum é rígida e inflexível: nada agride a Constituição e, abaixo dessa, nada agride a lei. A pirâmide de hierarquia normativa apresenta-se com a seguinte disposição: Constituição, no vértice da pirâmide, acompanhada de emendas à Constituição. Em seguida, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias. Em seguida, decretos (regulamento normativo) e, sucessivamente, diplomas dotados de menor extensão de eficácia e mais tênue intensidade normativa". (DELGADO, 2017, p. 192).
Diferente do critério rígido e inflexível de hierarquia das normas proposto por Kelsen e utilizado na estruturação do Direito comum, no Direito do Trabalho o critério utilizado é maleável e flexível. Isso se deve a um dos princípios balizadores do Direito do Trabalho, o princípio da "norma mais favorável". Nesse sentido Godinho disciplina:
"O princípio direcionador basilar do Direito do Trabalho, que melhor incorpora e expressa seu sentido teleológico constitutivo, é, como visto, o princípio da norma mais favorável ao trabalhador. Assim, aplicar-se-á ao caso concreto - sendo naquele caso hierarquicamente superior - a norma mais favorável ao empregado. O vértice da pirâmide normativa, variável e mutável - ainda que apreendido segundo um critério permanente -, não será a Constituição Federal ou a lei federal necessariamente, mas a norma mais favorável ao trabalhador. Não há, assim, contradição inconciliável entre as regras heterônomas estatais e regras autônomas privadas coletivas (entre o Direito do Estado e o Direito dos grupos sociais), mas uma espécie de harmoniosa concorrência: a norma que disciplinar uma dada relação de modo mais benéfico ao trabalhador prevalecerá sobre as demais, sem derrogação permanente, mas mero preterimento, na situação concreta enfocada". (DELGADO, 2017, p. 194).
Ou seja, no Direito jus laboral o critério que sempre foi adotado para saber a força de uma norma em detrimento de outra varia de acordo com a situação, observando-se, no caso em concreto, o que seria mais benéfico ao trabalhador, considerado hipossuficiente na relação de trabalho.
Dentro desse critério a doutrina se ramifica em duas teorias sobre a aplicação da norma mais favorável ao trabalhador. São elas: "teoria da acumulação", "teoria do conglobamento".
Segundo o ensinamento de Mauricio Godinho, "a teoria da acumulação (ou da atomização) propõe como procedimento de seleção, análise e classificação das normas cotejadas, o fracionamento do conteúdo dos textos normativos, retirando-se os preceitos e institutos singulares de cada um que se destaquem por seu sentido mais favorável ao trabalhador. À luz dessa teoria acumulam-se, portanto, preceitos favoráveis ao obreiro, cindindo-se diplomas normativos postos em equiparação". (DELGADO, 2017, p. 1587)
Ou seja, com esse tipo de interpretação o aplicador da norma somente usará os pontos favoráveis ao trabalhador da forma que ele bem entender, acumulando inúmeros direitos e ignorando as obrigações/deveres.
1.4 TEORIA DO CONGLOBAMENTO
Diferente da teoria da acumulação, a teoria do conglobamento não fraciona a norma, mas a analisa como um todo. Segundo Godinho (2017, p. 1588), com essa teoria busca-se "a norma mais favorável a partir da totalidade dos sistemas ou diplomas jurídicos comparados".
"... cada conjunto normativo é apreendido globalmente, considerado o mesmo universo temático; respeitada essa seleção, é o referido conjunto comparado aos demais, também globalmente apreendidos, encaminhando-se, então, pelo cotejo analítico, à determinação do conjunto normativo mais favorável." (DELGADO, 2017, p. 1588).
Essa é a teoria mais aceita pelos doutrinadores, vez que é a que mais harmoniza as normas com a noção de sistema. Segundo decisão do C. TST "no confronto entre dois instrumentos normativos, aparentemente discrepantes, prevalece a Teoria do Conglobamento, segundo a qual não se interpretam as cláusulas de forma atomista e isolada, mas em seu conjunto; assim, não é dado aos interessados, ao seu bel-prazer, extrair de instrumentos normativos díspares, de forma pontual, apenas as normas mais vantajosas" (TST, 1ª Turma, RR 70940-09.2002.5.21.0002, Min. Rel. João OresteDalazen, j. 14/02/2007, p. DJ 27/04/2007)
Ou seja, se uma norma que é favorável ao empregado possuir alguma parte que não seja tão interessante assim, não se pode simplesmente ignorá-la, mas analisar a norma como um todo.
2. O ARTIGO 611-A DA CLT E O PRINCÍPIO DA NORMA MAIS BENÉFICA AO EMPREGADO
Conforme vimos anteriormente, um dos princípios balizadores do Direito do Trabalho, qual seja, o da norma mais benéfica à parte hipossuficiente que, no caso, é o empregado, faz com que o Direito do Trabalho não siga a regra de hierarquia das normas do Direito comum.
Todavia, o artigo 611-A da CLT, inserido pela lei 13.467/17, nada mais fez do que relativizar tal Princípio.
O "caput" do artigo acima mencionado diz que "a convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei". E, logo em seguida, elenca os temas que podem fazer parte dessa negociação de direitos.
Note-se que o artigo em estudo não diz "... tem prevalência sobre a lei se for mais benéfica ao empregado".
Nesse mesmo sentido o artigo 620 da CLT dispõe sobre a prevalência do acordo coletivo sobre a convenção coletiva dispondo que as condições estabelecidas em acordo coletivo de trabalho sempre prevalecerão sobre as estipuladas em convenção coletiva de trabalho.
Fica claro na leitura desses artigos inseridos pela Reforma Trabalhista que se a Convenção ou o Acordo Coletivo for menos benéfico ao trabalhador, mesmo assim as cláusulas contidas nesses instrumentos serão aplicadas em detrimento de alguma legislação mais vantajosa, desde que observado o rol de temas do artigo 611-A da CLT.
E mais, o artigo 620 ratifica tal entendimento no que diz respeito a prevalência do acordo coletivo em detrimento da convenção coletiva.
Ao olharmos a redação anterior do artigo 620 da CLT vemos claramente a mudança no que diz respeito a aplicação do princípio em estudo. Eis o teor do artigo revogado: "as condições estabelecidas em Convenção quando mais favoráveis, prevalecerão sobre as estipuladas em Acordo".
Resta patente, pois, pela simples leitura dos artigos acima, que a inserção do artigo 611-A na CLT acabou por relativizar o princípio da norma mais favorável ao empregado.
Além disso, a lei 13.467/17 inseriu na CLT o parágrafo único ao artigo 444, trazendo a possibilidade do acordo individual escrito prevalecer sobre os instrumentos coletivos e, por consequência, prevalência sobre a Lei, nas hipóteses previstas no artigo 611-A da CLT.
Art. 444 - As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes.
Parágrafo único. A livre estipulação a que se refere o caput deste artigo -se às hipóteses previstas no art. 611-A desta Consolidação, com a mesma eficácia legal e preponderância sobre os instrumentos coletivos, no caso de empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.
É o caso do denominado "empregado hipersuficiente", portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.