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Populismo constitucional

A Constituição da República tem sido reiteradamente utilizada por líderes populistas através de interpretações propositalmente equivocadas da realidade para proferir um suposto ar de legalidade e legitimidade as barbáries cometidas no exercício de funções públicas.

quarta-feira, 24 de março de 2021

Atualizado em 25 de março de 2021 12:43

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

I - Introdução

O populismo, prática adotada há alguns séculos por figuras políticas e grandes líderes tem como essência a possibilidade de angariar apoiadores, eleitores e fãs dentro do espectro político, através de um discurso demagógico, fácil, sensacionalista que se faz de forma dirigida a um grupo indeterminado de pessoas que acabam por sentir uma falsa sensação de que apoiando aquele líder alcançarão uma suposta salvação dos complexos problemas que rondam um País, Estado ou município.

Ocorre que, no Brasil, notadamente nos últimos vinte anos e atualmente com uma frequência repetitiva, líderes populistas vêm tentando dar um ar de legalidade e transparência as escolhas políticas realizadas.

Via de regra, se valem do mesmo modus operandi, se blindando por um discurso que supostamente se ampara na Constituição da República, em que pese, na maioria das vezes, não façam qualquer sentido e destoem por completo do que a Constituição escolheu como diretriz.    

Nas palavras do ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, "direito e política são coisas diferentes. Essa é uma distinção essencial para a democracia. A política é feita de vontade, da vontade da maioria. O direito é o domínio da razão, da razão pública, que se projeta na Constituição e nas leis. (...) Em teoria, interpretar a Constituição é bem distinto de tomar decisões políticas.".

Tergiversar o texto constitucional em decisões políticas importantes significa ignorar a "essência do Estado de Direito", que baseia a submissão do poder ao próprio Direito.

Nesse ponto, trago para reflexão dois exemplos recentes em que o Chefe do Poder Executivo da União, visando dar um ar de legalidade a suas escolhas se pautou em uma falsa interpretação do texto constitucional para justificar as suas escolhas e no termo popular "jogar para a plateia":

II - O caso da sanção presidencial ao fundo eleitoral de 2 bilhões de reais e o suposto enquadramento em conduta de crime de responsabilidade no exercício da prerrogativa do veto constitucional pelo presidente da República:

No dia 19 (dezenove) de dezembro de 2019, o atual presidente da República, através de uma live no seu canal oficial do Facebook, anunciou que não vetaria o projeto de lei que tratava do fundo eleitoral de 2 (dois) bilhões de reais.

Alegou o presidente da República que se exercesse o seu poder constitucional de veto ao projeto de lei que tratava do fundo eleitoral de 2 (dois) bilhões, violaria frontalmente o art. 85 da Constituição da República, correndo um sério risco de sofrer um processo político-administrativo de impeachment. Acrescentou que era um "escravo da lei" apesar de ser contrário a um fundo eleitoral naquele valor absurdo.

À época dos fatos, foi quase que unanimidade dentre os constitucionalistas procurados para comentar o assunto de que a justificativa era estapafúrdia, pois não fazia qualquer sentido responder por crime de responsabilidade pelo exercício de uma prerrogativa que a Constituição da República outorga.

Vejamos o que disse a professora da FGV (Fundação Getúlio Vargas), advogada Vera Chemim: "não há nenhum sentido jurídico na afirmação do presidente. A Constituição dá a ele a competência privativa de sancionar [aprovar] ou vetar projetos de lei".

A advogada Marilda Silveira, referência no Direito Constitucional, Administrativo e Eleitoral, afirmou que as razões para a fala de Bolsonaro são meramente políticas, pois, "o presidente não quer contrariar seu eleitorado e ele não costuma fazer isso sempre. Para contrariar o que o povo queria, ele precisava de uma justificativa. Inventou uma e segue o roteiro de quem nega qualquer ciência: inventa algo da cabeça e sustenta até a morte".

A Constituição Federal dedicou razoável atenção ao modo pelo qual se desenvolvem as relações entre Poder Legislativo e Poder Executivo quando da passagem da etapa da deliberação legislativa para a etapa da deliberação executiva. O art. 66 da Constituição Federal enuncia modalidades de sanção e veto, demarca elementos e formalidades essenciais, assinala prazos e estatui consequências jurídicas na hipótese de seu descumprimento. Além disso, o presidente da República, ao exercer a prerrogativa do veto, seja ele político ou jurídico, não pode ser responsabilizado por tal mister, até porque os dispositivos ou projeto de lei vetados, seguem para o Congresso Nacional, que deliberará, em sessão conjunta, pela manutenção ou derrubada do veto (CF, art. 57, § 3º, IV), ou seja, vivemos um sistema de freios e contrapesos.

Portanto, o veto, que consiste na manifestação de dissensão do presidente da República em relação ao projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional, caracteriza-se, no sistema constitucional brasileiro, por ser um ato expresso, formal, motivado, total ou parcial, supressivo, superável ou relativo, irretratável, insuscetível de apreciação judicial.

Basta uma motivação política ou jurídica para que o Chefe do Executivo exerça a sua atribuição sem a previsão de ser responsabilizado pelo exercício dessa prerrogativa. Aliás, desconhece-se, até hoje, no âmbito das três esferas federativas, que algum presidente, Governador ou Prefeito tenham sidos afastados do cargo em processo de impeachment por exercerem a prerrogativa constitucional ao veto.  

Assim, conclui-se, que para dar uma justificativa supostamente legal e constitucional aos seus eleitores o presidente da República, desconfortável em não cumprir com promessas de campanha, vale-se do populismo constitucional para não tomar uma medida que lhe seria completamente legítima.   

III - A falsa justificativa de que o Supremo Tribunal Federal impediu o governo central de atuar na execução de políticas públicas que visam o combate à pandemia: 

Por algumas vezes o atual Chefe do Executivo da União repetiu o mantra de que a situação do País, somente se encontrava daquela forma, em razão de uma suposta proibição por parte do Supremo Tribunal Federal nas medidas preventivas que poderiam ser adotadas pela União, já que os Estados e Municípios atrapalhavam o planejamento traçado pelo Ministério da Saúde.

Afirmou o presidente da República que a decisão da corte suprema na ADIn 6.341 surgiu como uma proibição de o governo federal atuar no enfrentamento à epidemia.

A decisão citada por Bolsonaro foi consolidada em 15 de abril de 2020, quando o Plenário do STF referendou a liminar do relator da ADIn 6.341, ministro Marco Aurélio, segundo a qual as competências concedidas pelo governo à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no combate à Covid-19 não afastam a competência concorrente de estados e municípios sobre saúde pública.

A ação direta de inconstitucionalidade atacou a medida provisória 926/20, que alterou dispositivos da lei 13.979/20, editada para tratar de medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública ocasionada pela pandemia. Na prática, a decisão permitiu que governadores e prefeitos pudessem impor restrições mais duras do que as defendidas pelo governo federal.

Diferente do que passou a ser repetido pelo presidente da República e por diversos canais nas redes sociais, temos que o Supremo Tribunal Federal, assumiu o protagonismo na busca por saídas para a crise, em razão, justamente, da omissão governamental e muito provavelmente a situação estaria mais caótica se fossem tolhidas as autonomias dos Estados e Municípios na ajuda do combate a pandemia.

Podemos extrair da decisão proferida na ADIn 6.341 os seguintes entendimentos, todos em consonância com a Constituição da República:

I Saúde é tema de competência comum e concorrente (Art. 23, II e 24, XII);

II A União pode definir as diretrizes gerais de combate à Pandemia, respeitando a autonomia dos Estados e Municípios que podem adotar normas mais restritivas do que a União adote, desde que previstas na norma geral e apoiada em certezas científicas;

III Os Estados e Municípios podem definir o que são as atividades e os serviços essenciais, bem como tomar as medidas necessárias ao combate à pandemia, no âmbito das suas autonomias e competências, independente de autorização da União. Assim, os Estados e Municípios podem tomar medidas mais restritivas que as previstas em Decreto do presidente da República, mas sempre em conformidade com a lei geral;

IV As medidas adotadas pelos Estados e Municípios não podem colocar o país em risco (por exemplo, não pode a medida provocar desabastecimento nacional).

Portanto, mais uma vez, se valendo do populismo constitucional a mais alta autoridade do País, para justificar os resultados de sua gestão no combate à pandemia, desconstitui e traz outro enredo para uma decisão do Supremo Tribunal Federal que cumpriu e deu correta interpretação a nossa Constituição da República no tema voltado à saúde, federalismo e restrições de direitos fundamentais.  

IV - Conclusão: 

Nos valemos de trecho do discurso de posse do atual presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux, para ressaltar a importância da Constituição da República na vida dos brasileiros, vejamos:

A nossa Carta Magna, enunciada sob a proteção de Deus como ideário da nação, permanece como a âncora do nosso Estado Democrático de Direito e a bússola que guia as nossas aspirações de presente e de futuro.

Ouso definir que a Constituição Federal é, a um só tempo, símbolo e norma; esperança e autoridade; projeto e realização. Ela é holística sem ser paradoxal, justapondo e equilibrando todas as identidades cidadãs no bojo de nossas diversidades étnicas, culturais e políticas; atemporal sem ser anacrônica, ora se preservando, ora se ressignificando para garantir estabilidade à vida impermanente; onipresente sem ser totalitária, funcionando simultaneamente como ponto de partida, como caminho e como ponto de chegada das indagações nacionais.

Rememoramos as palavras do filósofo Carlos Santiago Nino, para quem "são complexas as tensões resultantes do matrimônio entre a democracia e o constitucionalismo". Acrescentamos, com toda vênia, que essa tensão se agrava em tempos estranhos e na era da desinformação e da propagação de fake news.

Portanto, nós juristas, operadores do direito, estudantes, temos como obrigação numa era de desinformação e populismo constitucional, continuarmos como vozes ativas e cívicas na explicação contra falácias que agridam as instituições e principalmente desvirtuem a essência do nosso texto constitucional.

Em arremate, entendemos que temas políticos e administrativos devem ser interpretados à luz da Constituição, mas sempre nas balizas do processo político-democrático, jamais como escapatória e tentativa de enganar a sociedade via o que denominamos nesse texto de "populismo constitucional".

Ricardo Benetti Fernandes Moça

Ricardo Benetti Fernandes Moça

Procurador efetivo da Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo, atualmente Subprocurador-Geral. Pós-graduado em Direito Processual Civil Pela Faculdade de Direito de Vitória/es. Pós-graduado em Direito Empresarial Pela Universidade Cândido Mendes - UCAM/RJ. Advogado, escritor e professor da Escola do Poder Legislativo da AL-ES. Membro da Comissão de Direito Político e Eleitoral da OAB - ES. Vice-presidente da Associação Nacional de Procuradores de Assembleias Legislativas e Advocacia do Senado (ANPAL).

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