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Da atuação contramajoritária do STF: da inconstitucionalidade da legislação "Escola Sem Partido"

A atuação contramajoritária do STF é essencial para assegurar práticas educacionais pluralistas?

segunda-feira, 29 de março de 2021

Atualizado às 15:41

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O reconhecimento da força normativa da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88), o papel central que os direitos humanos ocupam no constitucionalismo mundial e a ampliação dos instrumentos processuais de controle de constitucionalidade no Brasil, contribuem para o chamado "protagonismo do Poder Judiciário".

Cumpre ter presente, nesse ponto, o fato de que não há como desconsiderar que as profundas transformações ocorridas nos âmbitos legislativo e jurisprudencial, nas últimas décadas, concederam aos Tribunais brasileiros, notadamente ao Supremo Tribunal Federal (STF), a ampliação de sua força decisória, seja no modelo abstrato de constitucionalidade (dotando suas decisões de efeitos vinculantes e gerais), seja no difuso (em que o tribunal também atua uniformizando as diversas interpretações da Constituição realizadas pelos juízes e tribunais).

Em meio a esse contexto, e ainda como decorrência do déficit democrático da representação política e, mais especificamente, da dificuldade do sistema em expressar, em grande medida, a vontade majoritária da população, o Poder Judiciário, além de deter a capacidade de invalidar atos editados pelos Legislativo, desempenhando a chamada jurisdição contramajoritária, também passa a gozar de legitimidade, segundo parcela considerável da doutrina, para atuar como instância representativa de grupos vulneráveis da sociedade.

Nessa linha de reflexão, afigura-se oportuno citar a posição de Barroso (2015, p. 19-20), segundo o qual, a despeito das resistências teóricas pontuais, o papel contramajoritário do controle judicial de constitucionalidade (consistente na invalidação dos atos editados por representantes eleitos pelo povo) tornou-se quase universalmente aceito. Acrescenta, ainda, o citado jurista que a legitimidade democrática da jurisdição constitucional estaria assentada com base em dois fundamentos principais:

a) a proteção dos direitos fundamentais, que correspondem ao mínimo ético e à reserva de justiça de uma comunidade política, insuscetíveis de serem atropelados por deliberação política majoritária; b) a proteção das regras do jogo democrático e dos canais de participação política de todos. A maior parte dos países do mundo confere ao Judiciário e, mais particularmente à suprema corte ou corte constitucional, o status de sentinela contra o risco da tirania das maiorias. Evita-se, assim, que possam deturpar o processo democrático ou oprimir as minorias. (BARROSO, 2015, p. 19-20)

Com vista a demonstrar o aspecto abrangente da atuação do Judiciário no cenário nacional, cabe citar decisão recente do STF, por meio da qual restou reconhecida a inconstitucionalidade de lei do Município de Ipatinga/MG, que excluía do ensino público municipal qualquer referência sobre diversidade de gênero e orientação sexual. Com efeito, no dia 28 de maio de 2020, os ministros da Corte julgaram procedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 467, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR), deliberando acerca da questão, tida como complexa e controversa na sociedade. Com a decisão colegiada, foram declarados inconstitucionais artigos da lei 3.491/15, que proibiam a implementação ou desenvolvimento de ensino ou abordagem referente à ideologia de gênero e orientação sexual, vedando, ainda, a inserção de qualquer temática da diversidade de gênero nas práticas pedagógicas e no cotidiano das escolas.

Este foi o terceiro julgamento do ano de 2020 em que o STF reconheceu, com unanimidade, a inconstitucionalidade de leis municipais que proíbem a abordagem de gênero em escolas. No dia 08 de maio daquele mesmo ano foi anunciada a decisão sobre a ADPF 526, que tratava de legislação antigênero do município de Foz do Iguaçu (PR). Anteriormente, a Corte havia julgado a ADPF 457, reconhecendo a inconstitucionalidade de lei de conteúdo similar do município de Novo Gama (GO).

Segundo o relator da ADPF n. 467, ministro Gilmar Mendes, os dispositivos atacados afrontam as regras gerais e os direitos fundamentais à igualdade e à não discriminação. "As normas violam, ainda, a liberdade de ensinar, aprender, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, diretrizes fundamentais da educação, estabelecidas pelo artigo 206, inciso II, da Constituição Federal", afirmou. Ainda na percepção do ministro, "as restrições às liberdades de expressão e de ensino são características típicas de Estados totalitários ou autoritários". (BRASIL. STF. Pleno. ADPF 467/MG. Relator: Min. Gilmar Mendes. Julgamento: 28.05.2020).

Válido pontuar, contudo, que decisões como estas ainda são objeto de crítica por parte de alguns estudiosos. Deveras, à vista da crescente expansão do Poder Judiciário, cuja atuação muito se aproxima de um "verdadeiro fazer político", sustentam alguns juristas a necessidade de que a judicialização adote a técnica decisória do minimalismo judicial, ao argumento de que a forma mais adequada de solução de conflitos em sociedades razoavelmente democráticas é a deliberação, que ocorre no processo legislativo.

Com efeito, mesmo reconhecendo as mazelas dos mecanismos tradicionais da democracia representativa, há também o receio de que tal protagonismo, por parte do Judiciário, possa acarretar o ativismo judicial, possibilitando a substituição do Direito legal pelas convicções pessoais dos magistrados (tendência do voluntarismo), dotando-os de capacidade para moldar a Constituição de acordo com suas inclinações políticas e preferências ideológicas, o que também caracterizaria atividade nociva aos postulados democráticos.

Apesar da multiplicidade de sentidos dada ao termo "ativismo", muitos lhe atribuem o significado de conduta que possibilita aos juízes legislar. Enfatiza Streck (2014), que o ativismo judicial, no contexto jurídico brasileiro, surge dos incentivos ao voluntarismo, por meio da "ponderação de valores", do protagonismo judicial, do pamprincipiologismo, do solipsismo judicial e da adoção da discricionariedade. Dessa forma, é possível dizer que o ativismo judicial extrapola os limites da judicialização, uma vez que faz da jurisdição o centro da tomada de decisões políticas (STRECK, 2014, p. 178, 182).

Assim, com vista a superar tal quadro de instabilidade institucional, na linha da abordagem minimalista defendida, sobretudo, pelo constitucionalista norte-americano Sunstein (1999), pregam alguns a predileção por decisões mais estreitas e menos profundas por parte dos tribunais, como forma de evitar generalizações prematuras e preservar o espaço de deliberação democrática sobre a matéria.

Imperioso destacar, contudo, o fato de que, a despeito da defesa da autocontenção, na abordagem minimalista admite-se que, diante de um quadro de desigualdade, torna-se justificável que a democracia seja fortalecida por uma decisão judicial que, embora específica, pode também demandar uma fundamentação mais profunda, possibilitando que, em momento posterior, o diálogo sobre a matéria seja retomado. Admite-se, em síntese, que o controle de constitucionalidade desempenhado pelo Poder Judiciário possa "compensar as desigualdades sistêmicas nos processos majoritários ou introduzir princípios que alcançam tais processos somente com muita dificuldade" (SUNSTEIN, 2009, p. 188).

Nessa toada, considera Sunstein que a perspectiva minimalista, embora seja adequada, não é apropriada para todas as situações fáticas, defendendo, por exemplo, o aspecto abrangente da decisão da Corte americana no julgamento de Brown versus Board of Education (ESTADOS UNIDOS, 1954), que considerou inconstitucional a segregação racial nas escolas nos Estados Unidos. Trata-se, certamente, de grande exemplo de judicialização, que se revelou fundamental na proteção de direitos de indivíduos e grupos estigmatizados, resguardando o tratamento jurídico isonômico entre eles (SUNSTEIN, 1999, p. 38).

Assim, a vantagem do minimalismo consiste no fato de que não se encontra vinculado estritamente à autocontenção, tampouco prega apreço irrestrito às posturas maximalistas.

Em meio a tal contexto, não se deve olvidar da imprescindibilidade da atuação mais intensa do Judiciário, como no caso dos julgados do STF acima mencionados (que tratam da inconstitucionalidade de leis municipais regulamentadores do programa "Escola sem Partido"), como forma de fazer minimizar as injustiças ocorridas à luz de uma ordem constitucional.

O movimento Escola sem Partido tem por objetivo coibir uma suposta "doutrinação ideológica" dos Professores, buscando através de projetos de lei a proibição de conteúdos pedagógicos que tratem de questões como orientação sexual, ideologia de gênero ou diversidade de religião, pregando a neutralidade discursiva.

Tal modelo, contudo, além de negar a liberdade de cátedra e a possibilidade de ampla aprendizagem, contraria o pluralismo de ideias, inibe o fomento à liberdade e à tolerância, implicando, ainda, ingerência explícita no currículo pedagógico feito com base no Plano Nacional de Educação (lei 13.005/14), amparado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (lei 9.394/96).

Segundo estabelece a Constituição Federal de 1988 (CF/88), a educação é um direito fundamental subjetivo, voltada pera a formação dos indivíduos para o trabalho, bem como para o exercício da cidadania. Sob tal perspectiva, o professor deve estimular o pensamento crítico, incentivar a abertura do diálogo e realizar reflexões acerca de visões de mundo divergentes, promovendo a discussão e conscientização sobre as diferentes concepções de gênero e sexualidade, contribuindo, dessa forma, para a efetivação da adoção de medidas destinadas à promoção da igualdade.

Nesse passo, tem-se que a decisão tomada pelo Plenário do STF, no julgamento da ADPF n. 467, denota a relevância do papel desempenhado pelo tribunal, ao qual incumbe fazer prevalecer, sempre, no exercício irrenunciável da jurisdição constitucional, a autoridade e a supremacia da Constituição.

Além disso, válido assinalar que no caso sob exame, o Tribunal teria legitimidade democrática, atuando sob o manto da judicialização. Com efeito, segundo leciona a doutrina, enquanto a judicialização de questões políticas ou sociais decorre do modelo constitucional que culminou na ampliação das competências do Judiciário conferidas pelos próprios agentes políticos (tal como se dá com o controle de constitucionalidade), não caracterizando exercício deliberado de vontade política, a ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, estando umbilicalmente associado a um ato de vontade (BARROSO, 2009, p. 6).

Ainda a esse respeito, torna-se válido registrar que, no Brasil, a atuação do STF não apresenta um forte viés contramajoritário, sendo muito inexpressivo o total de suas decisões que declaram a inconstitucionalidade, no todo ou em parte, de leis e atos normativos promulgados pelo Congresso Nacional. Nesse sentido, no apontamento feito em pesquisa recente, realizada pela Universidade de Brasília, constatou-se que "o número de decisões de improcedência nas ADIs é cerca de cinco vezes menor o de decisões de procedência, o que indica que, entre os processos que cumprem todos os requisitos para serem julgados, apenas 1/6 dos processos são considerados improcedentes" (COSTA; BENVINDO, 2013 p. 52), revelando, desta feita, a tendência do Tribunal em confirmar a constitucionalidade das normas atacadas.

Partindo dessas premissas, faz-se necessário ?reconhecer a legitimidade das decisões do STF que, por meio de mecanismos de judicialização - controle de constitucionalidade-, dentro de uma perspectiva pluralista e material de democracia, encontram-se direcionadas à preservação de práticas educacionais pluralistas e à promoção de políticas de inclusão e de igualdade.

Deveras, com vista a remover obstáculos à promoção do bem de todos (artigo 3º, inciso IV, CF/88), e, por consequência, atender ao princípio segundo o qual todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (artigo 5º, caput, CF/88), impõe-se destacar que, não obstante o fato de se considerar que a política majoritária seja um componente vital para a democracia, esta não pode ser tratada apenas em sua dimensão formal. É seu sentido material/substancial, que abrange a preservação de valores e direitos fundamentais, que dá alma ao Estado Constitucional de Direito, uma vez que implica o governo para todos, e não apenas o governo da maioria.

Em linhas gerais, é possível afirmar que o Estado Democrático de Direito não pressupõe a eliminação de qualquer projeto de vida que componha a sociedade, reconhecendo que todos, inclusive os minoritários, são relevantes na composição de sua identidade (Galuppo, 2001, p. 53). Em face de tais questões, revela-se que a dificuldade contramajoritária pode ser minimizada, na medida em que se reconhece que o conceito de democracia transcende a ideia de governo da maioria, exigindo a tutela dos direitos fundamentais e a incorporação de outros valores fundamentais.

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BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Jurisdição política e constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 3-34.

BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista Direito do Estado, ano 4, n. 13, p. 71-91, jan-mar. 2009.

COSTA, Alexandre Araújo; BENVINDO, Juliano Zaiden. A quem interessa o controle concentrado de constitucionalidade? O descompasso entre teoria e prática na defesa dos direitos fundamentais. Brasília: UnB, 2013.

GALUPPO, Marcelo Campos. Hermenêutica constitucional e pluralismo. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Org.). Hermenêutica e jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 48-65.

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

SUNSTEIN, Cass. A Constituição parcial. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.

SUNSTEIN, Cass. One case at a time: judicial minimalism on the Supreme Court. Harvard: Harvard University Press, 1999.

Renata Martins de Souza

Renata Martins de Souza

Defensora Pública do Estado/MG. Doutora em Direito Público e Mestre em Teoria do Direito pela PUC Minas, Profa. da Rede Doctum.

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