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Ações indenizatórias relativas a erro médico em obstetrícia

Em muitos casos é a ocorrência de falhas evitáveis na conduta dos profissionais de saúde e a infraestrutura sofrível de hospitais e maternidades para realizarem o adequado acompanhamento do trabalho de parto, ocasionando diversas complicações gestacionais.

quarta-feira, 31 de março de 2021

Atualizado às 12:25

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O momento do parto é aguardado com grande expectativa e ansiedade pelas mulheres. As gestantes buscam segurança e precisam recebê-la desde as primeiras contrações até o nascimento do bebê.

Contudo, o que se observa em muitos casos é a ocorrência de falhas evitáveis na conduta dos profissionais de saúde e a infraestrutura sofrível de hospitais e maternidades para realizarem o adequado acompanhamento do trabalho de parto, ocasionando diversas complicações gestacionais, decorrentes destes comportamentos comissivos ou omissivos, sendo tais práticas passiveis de judicialização.

Dentre estas complicações, possível citar a presença de mecônio no líquido amniótico, tornando-o espesso e com tom esverdeado, sendo este um importante indicativo de sofrimento fetal, o qual pode gerar severas consequências no desenvolvimento do recém-nascido e até mesmo levar ao óbito fetal, o que será melhor analisado no presente artigo.

O mecônio corresponde às primeiras fezes do bebê, sendo uma massa compacta formada por todos os componentes dissolvidos e absorvidos pelo feto no líquido amniótico, e, em geral, somente é eliminado apenas após o nascimento.

No entanto, em alguns casos, o mecônio pode ser eliminado no líquido amniótico, antes ou próximo do parto, indicando maturidade fetal, ou seja, o intestino do feto está funcionando a contento, o que é positivo; contudo, por outro lado, pode advertir quanto à existência de sofrimento fetal.

Quando há uma redução do nível de líquido amniótico, o que deve ser devidamente acompanhado durante toda a gestação e em especial nas horas que antecedem o parto, o mecônio não consegue ser diluído.  Ele recebe a aparência de uma "pasta de ervilhas", diminuindo a oxigenação do feto, que entra em situação de estresse, apresentando alterações nos batimentos cardíacos e respiração agônica, chamada de gasping. Nesse caso o feto pode vir a aspirar o mecônio, quando ocorre a Síndrome de Aspiração Meconial - SAM.

A Síndrome da Aspiração do Mecônio é uma das principais patologias que levam recém-nascidos à morte no Brasil. Além disso, de acordo com o grau de asfixia sofrido, pode causar ao feto diversas alterações, como pneumotórax e pneumonite grave, determinando-lhe sequelas severas, como paralisia cerebral e distúrbio mental.

Em publicação realizada pela Revista Brasileira de Saúde Materna Infantil, no ano de 2006, e intitulada de "Novas opções terapêuticas na síndrome de aspiração de mecônio", divulgou-se que o mecônio está presente no líquido amniótico em cerca de 10 a 15% dos partos, sendo que cerca de 5% dos recém-nascidos com líquido amniótico meconial desenvolveram SAM, e dentre estes, 25 a 60% necessitaram de ventilação mecânica, dos quais 3 a 12% não responderam à terapêutica instituída e evoluíram para óbito.

Neste mesmo sentido, os dados observados pelo Dr. Nelson Kliegman, em seu estudo denominado de "Tratado de Pediatria"1, destacaram que a presença de mecônio ocorre em cerca de 10% a 15% dos nascimentos; dentro deste total, 5% dos pacientes apresentam pneumonia aspirativa, e cerca de 3-5% não sobrevivem, referindo que a presença de sofrimento fetal e hipóxia, normalmente, ocorrem após a passagem de mecônio para o líquido amniótico.

Portanto, evidente o considerável número de casos envolvendo o sofrimento fetal provocado pelo baixo nível de líquido amniótico e caracterizado pela alta presença de mecônio, estando estes fatores diretamente relacionados a diversas alterações de oxigenação e dos sistemas metabólicos do feto, podendo, se aspirado, desenvolver consequências graves para o recém-nascido, desde sequelas neurológicas severas e até mesmo levá-lo a óbito.

Neste sentido, a ausculta dos batimentos cardíacos fetais (BCF) deve ser realizada de forma constante, podendo ser intermitente, por meio de um sonar Doppler, ou contínua, com a utilização da cardiotocografia2 (eletrocardiograma do bebê), essencial nos serviços prestados a saúde neonatal.

Ou seja, a principal preocupação durante o acompanhamento do trabalho de parto é definir se está acontecendo um sofrimento fetal agudo, sendo a realização de um exame de vitalidade, como o de cardiotocografia, fundamental para este fim, vez que se constatada a alteração dos batimentos e na frequência cardíaca fetal, a antecipação do parto pode ser a melhor opção para o bem-estar físico do bebê.

Ressalte-se, pelo acima exposto, que a presença do mecônio por si só não é uma indicação de cesariana, porém, requer uma maior atenção do médico e da equipe de assistência no acompanhamento do feto, podendo, em alguns casos, necessitar de intervenções mais rápidas e precoces, sendo que a boa ausculta fetal durante o trabalho de parto é sempre tranquilizadora para a gestante.

Os profissionais de saúde devem respeitar e controlar a ansiedade materna, proporcionando um ambiente tranquilo e incentivando o apoio familiar, bem como, se houver indicação médica para indução do parto, observar rigorosamente as rotinas estabelecidas, diagnosticando tempestivamente os distúrbios da contratilidade uterina, a fim de corrigir os problemas, sempre em observância às alterações da frequência cardíaca e de movimentos fetais.

Ocorre que, infelizmente, muitas vezes os protocolos e as recomendações estabelecidas são negligenciadas pelos profissionais de obstetrícia. Para além, em diversos hospitais e maternidades faltam os aparelhos necessários para o correto controle dos dados vitais do feto, restando ausente o tempestivo diagnóstico do sofrimento fetal, gerando diversas e graves consequências ao desenvolvimento do recém-nascido, havendo um aumento significativo nas ações judiciais concernentes ao tema.

O deficiente acompanhamento do trabalho de parto, além de poder gerar danos físicos ao feto ou até mesmo levá-lo a óbito, causa danos de outra natureza, igualmente graves. Entre muitos, destacamos o sofrimento e o trauma da gestante, do pai do bebê e de suas famílias. De outro norte, se a criança sobreviver, mas lhe restarem sequelas, esse fato gerará maior demanda ao sistema de saúde, seja ele público ou suplementar, aumentando os custos para todos os que lhe sustentam, ou seja, a coletividade.

Por fim, há grande probabilidade de que esse ocorrido tenha projeção negativa no desenvolvimento socioeconômico-cultural da mãe da criança e de sua família, porquanto, necessitando ela e/ou eles dedicar maior atenção às necessidades especiais do filho, possivelmente serão prejudicados em seus estudos, seu trabalho e sua economia.

A jurisprudência tem-se firmado no sentido de que as complicações decorrentes da ausência de acompanhamento adequado do trabalho de parto são indenizáveis (APL 02027035820138190001 - TJ/RJ).

Nestes casos, a demora na realização do procedimento já é suficiente para demonstrar o ato negligente (APL 0000487120158030008 - TJ/AP), dado que a responsabilidade do Estado, prevista no art. 37, parágrafo 6º, da CF e da instituição hospitalar é objetiva; de tal forma será necessária apenas a comprovação da conduta, do dano e do nexo de causalidade, atribuíveis ao Poder Público, aos entes que agem em seu nome ou ao nosocômio privado indigitado3.

A título de exemplo, menciona-se a condenação imposta ao Município de São José dos Pinhais, em razão da morte de um recém-nascido logo após o parto. O d. Magistrado entendeu que houve falhas no atendimento médico, o que acarretou o óbito, sendo que a mãe da criança deverá receber uma indenização no valor de R$ 40.000,00, e o pai de R$ 30.000,00. (APL 8092557).

A 1.ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná manteve, por unanimidade, a sentença do Juízo de 1º grau, tendo o relator do recurso, o juiz substituto em 2º grau, dr. Fábio André Santos Muniz, consignado em seu voto o evidente sofrimento da autora, em razão das "dores sentidas durante o período em que permaneceu internada sem o atendimento correto pelos profissionais de plantão no hospital".

Por fim, o Tribunal do Paraná também condenou um hospital privado4, a pagar R$ 40.000,00, a título de indenização por dano moral, a uma mulher (gestante na época dos fatos) e a seu marido, por falha no atendimento prestado por uma médica plantonista. Segundo o relator do recurso de apelação, se a médica tivesse solicitado, logo no primeiro atendimento, a realização de um exame ecográfico, haveria a probabilidade de se detectar o sofrimento fetal, o que recomendaria a realização de uma cesariana. Os julgadores aplicaram ao caso a teoria da perda de uma chance.

Neste caso entendeu-se que o ato negligente restou comprovado, uma vez que os profissionais daquele hospital: "deixaram de atender a autora corretamente, inclusive deixando-a sem qualquer monitoramento ou acompanhamento nas dependências do hospital". (Apelação Cível 809255-7).

Em igual sentido, cabe destacar o que leciona o I. desembargador, dr. Miguel Kfouri Neto:

'Não é propriamente o erro de diagnóstico que incumbe ao juiz examinar, mas sim se o médico teve culpa no modo pelo qual procedeu ao diagnóstico, se recorreu, ou não, a todos os meios a seu alcance para a investigação do mal, desde as preliminares auscultações até os exames radiológicos e laboratoriais - tão desenvolvidos em nossos dias, mas nem sempre de alcance de todos os profissionais -, bem como se à doença diagnosticada foram aplicados os remédios e tratamentos indicados pela ciência e pela prática'. (NETO, Miguel Kfouri. Responsabilidade Civil do Médico. 4ª Ed, Ed. Revista dos Tribunais, 2001, p. 82/83).

Desta forma, seja no caso acima citado, seja no entendimento jurisprudencial já consolidado, deve-se observar quanto à caracterização do dever de reparação civil, o cometimento de falha inescusável na investigação oportuna do diagnóstico, devendo os profissionais comprovar a utilização de todos os meios existentes para delimitar a situação, demonstrando a correta realização da manutenção e do monitoramento durante todo o trabalho de parto.

Assim, mesmo que não seja considerada a existência de erro de diagnóstico propriamente dito, a omissão e a negligência no atendimento médico restam configuradas pela ausência da adequada manutenção e do monitoramento do trabalho de parto, em especial, quando há fatores evidentes de atenção, como perda de líquido amniótico ou alterações de movimentos fetais e batimentos cardíacos, fortes indicadores de sofrimento fetal, como acima referido.

Ressalte-se que o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no tocante a danos morais é no sentido de que a indenização por danos morais em casos de morte de um ente querido independe de comprovação relativamente à dor sofrida, vez que decorre do próprio evento danoso, evento este que basta ocorrer para causar sofrimento de mãe e filho.

Nestes casos o dano é presumido, in re ipsa, admitindo afastamento apenas em casos de prova robusta em sentido contrário.

Denota-se, portanto, que no momento da realização do parto as condições da mãe e do feto devem ser observadas cuidadosamente, com pouco intervalo de tempo entre os atendimentos, observando-se os níveis dos líquidos amnióticos e meconiais, atentando-se quanto ao lapso temporal para a realização do parto, a fim de utilizar todos os meios possíveis para evitar complicações gestacionais, como a Síndrome da Aspiração do Mecônio - SAM.

Ainda, possível concluir que a aspiração do mecônio ocorre tipicamente quando o feto está sob estresse durante o trabalho de parto, sendo que referida Síndrome pode ser prevista antes do nascimento do bebê, pela mostra de baixo ritmo cardíaco no monitor fetal5, não restando dúvidas quanto à responsabilidade pelo atendimento médico indevido.

Destarte, em havendo falta da utilização de todos os meios existentes para delimitar a situação do feto (monitoramento adequado), a omissão e a negligência no atendimento médico restarão configuradas.

Assim, a omissão enquadra-se na má-execução do serviço de atendimento da parturiente e do feto. Portanto, a responsabilidade é de natureza objetiva do ente hospitalar e subjetiva do médico, conforme define o STJ.  Estando ambos os elementos presentes, justifica-se a condenação.

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1 KLIEGMAN, R. M. et al. Nelson tratado de pediatria. 18 ed., Ed. Elsiever, Rio de Janeiro, 2009.

2 registro gráfico da frequência cardíaca fetal e das contrações uterinas

3 O hospital, na condição de fornecedor de serviços, responde objetivamente pelos danos a consumidores que guardem relação direta com a estrutura hospitalar, tais como cuidados com o paciente durante a internação, estado de conservação dos equipamentos, qualidade da alimentação oferecida em suas instalações, além dos serviços auxiliares de enfermagem, realização de exames e limpeza do nosocômio. Fonte: Clique aqui 

4 Hospital Maternidade Santa Brígida S/A. Fonte: Clique aqui 

5 Pode haver sofrimento fetal com taquicardia ou desacelerações súbitas da frequência cardíaca fetal.

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MONTENEGRO, C. A. B.; REZENDE FILHO, J. Obstetrícia fundamental, 12.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2011.

SOFRIMENTO FETAL AGUDO, Rotinas Assistenciais da Maternidade-Escola da Universidade Federal do Rio de Janeiro

KLIEGMAN, R. M. et al. Nelson tratado de pediatria. 18 ed., Ed. Elsiever, Rio de Janeiro, 2009.

BASTOS, Flávia Silva. A Síndrome da Aspiração de Mecônio e os Cuidados de Enfermagem. 2014.

Rev. Bras. Ginecol. Obstet. Vol. 25 nº 2 Rio de Janeiro Mar. 2003 Clique aqui

Rev. Bras. Saúde Matern. Infant., Recife, 6 (4): 367-374, out./dez., 2006

Arq. Catarin Med. 2015 out-dez; 44(4): 48-56

Marcia Regina Nunes de Souza

Marcia Regina Nunes de Souza

Especialista em Direito Civil, Direito Processual Civil e em Direito Ambiental. Mestranda em Bioética pela PUC/PR. Membro da Comissão de Saúde e da Comissão dos Juizados Especiais da OAB/PR. Sócia fundadora do escritório Marcia Nunes Advogados Associados.

Juliana Krempel Goulart

Juliana Krempel Goulart

Graduada em Direito pelo Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA. Pós-graduada em Direito Médico pelo UNICURITIBA. Advogada do escritório Marcia Nunes Advogados Associados, especializado em Responsabilidade Civil e Direito Médico do Paciente.

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