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Ressalvas ao depoimento policial e seu valor probatório relativo

A análise probatória e consideração dos depoimentos policiais dentro de um processo. A palavra deles deve ser corroboradas por outros elementos probatórios, sob pena de serem insuficientes para condenação.

terça-feira, 30 de março de 2021

Atualizado às 16:25

A regra geral estabelecida no artigo 202 do Código de Processo Penal é de que toda pessoa pode ser testemunha, assim considerada a pessoa física que narra em juízo qualquer circunstância a respeito de determinada prática delituosa de que tenha conhecimento.

O valor da prova testemunhal sempre foi objeto de extenso debate. Não à toa Mittermaier a considera a "prostituta das provas". Mas quem atua diariamente em audiências criminais sabe que a prova testemunhal - e não a confissão - pode ser tida como a "rainha das provas".

Isso porque a maioria das decisões judiciais se constroem a partir desse meio de prova. E mais, muitas vezes se constrói a partir dos testemunhos de policiais.

Com efeito, a deficiência estrutural da polícia judiciária faz com que as investigações sejam precárias e, assim, a maior parte dos casos que chegam a julgamento começam por uma prisão em flagrante feita por policiais militares. E esses policiais que efetuaram a prisão flagrancial do réu são sempre arrolados como testemunhas pela acusação.

A professora Janaína Matida observa que nos mais diversos sistemas, oriundos de diferentes culturas jurídicas, testemunha é a "pessoa estranha ao feito", chamada a juízo para depor sobre o que sabe a respeito do fato litigioso. Logo, não deveriam policiais que atuaram na ponta de contato entre a sociedade e o sistema jurídico penal (aqueles que efetuaram a apreensão da droga, por exemplo) serem ouvidos como testemunhas, pois não são estranhos ao feito, já que tem interesse direto em justificar suas ações: buscam contribuir a que se conclua pela correção de seus cursos de ação (O valor probatório da palavra policial. Publicado na coluna "A toda prova", do Boletim Trincheira Democrática do IBADPP, 2020, ano 3, n. 8).

Em outras palavras, em alguns lugares (e aqui no Brasil há que defenda)  policiais são ouvidos na condição de informantes.

Fato é que a jurisprudência admite majoritariamente que o depoimento desses agentes seja tomado com natureza de prova testemunhal. Entende-se que a participação dos policiais no fato apurado não os torna, automaticamente, indignos de fé.

A par dessa discussão, o problema maior está em emprestar a tais depoimentos um tipo de presunção especial de validade, um valor superior às demais provas e testemunhas. Muitas vezes os magistrados afirmam que os depoimentos prestados pelos agentes estatais possuem "fé pública" e "presunção de veracidade", do que se extrai um especial valor probante de tais depoimentos em relação as demais provas.

Ora, se a palavra dos policiais é confiável, porque ungidos pelo Estado, a condenação é praticamente o resultado de uma operação matemática, pois a premissa maior será a de que entre a palavra do acusado e a dos policiais, é esta que detém maior força.

Na instrução processual, se os depoimentos dos policiais confirmam a imputação veiculada na denúncia (muitas vezes formulada com base exclusivamente nas declarações prestadas por essas mesmas pessoas em sede policial), não há alternativa à defesa senão ter que provar a inocência do réu.

Logo, a palavra dos policiais significa, quase sempre, mesmo que ao desamparo de outros elementos de prova, a condenação do acusado. Até mesmo porque, em geral, dificilmente tais policiais indicam testemunhas que presenciaram os fatos, deixando tal ônus para a defesa.

Não justifica a alegação de que possuem fé pública, atribuída aos servidores públicos, pois esta é meramente documental e se refere a atos administrativos, não devendo se estender a palavra do declarante ou da testemunha em processo penal. E a presunção de veracidade também não se sustenta, pois atributo dos atos administrativos, ramo com especificidades diferentes do processo penal e onde não há, em contraposição, o princípio da inocência.

Deve-se ter em mente que esses agentes estatais não só integram como também atuam vinculados aos fins do Estado (titular do poder jurídico de punir) e às políticas criminais que ditam o ritmo do exercício do poder penal. Mais do que isso, essas testemunhas, por vezes, não raras, são os agentes públicos responsáveis por atos (por vezes, ilegais) de constrição pessoal dos réus.

Não há como negar que, em qualquer operação, os policiais estão naturalmente contaminados pelo viés de confirmação da atuação que tiveram na repressão e apuração do fato.

Não se pode ignorar que as declarações de um policial em juízo sempre buscarão legitimar sua conduta. O policial, por estar presente no ato, possui interesse na convalidação da sua palavra, até porque boa parte das prisões que ocorrem no Brasil são feitas sem inquérito prévio, sendo mais comum a prisão através de um flagrante.

Como defende o Prof. Aury Lopes Jr, o juízo deve receber as palavras dos agentes estatais (policiais) com redobrada atenção e cuidado na valoração do depoimento policial:

[.] não há que se falar em restrição ao depoimento dos policiais. Eles podem depor sobre os fatos que presenciaram e/ou dos quais têm conhecimento, sem qualquer impedimento. Obviamente, deverá o juiz ter muita cautela na valoração desses depoimentos, na medida em que os policiais estão naturalmente contaminados pela atuação que tiveram na repressão e apuração do fato. Além dos prejulgamentos e da imensa carga de fatores psicológicos associados à atividade desenvolvida, é evidente que o envolvimento do policial com a investigação (e prisões) gera a necessidade de justificar e legitimar os atos (e eventuais abusos) praticados. Assim, não há uma restrição ou proibição de que o policial seja ouvido como testemunha, senão que deverá o juiz ter muita cautela no momento de valorar esse depoimento. A restrição não é em relação à possibilidade de depor, mas sim ao momento de (des)valorar esse depoimento. 

Contudo, é recorrente o Ministério Público arrolar como testemunhas apenas os policiais que participaram da operação e da elaboração do inquérito. Busca, com isso, judicializar a palavra dos policiais para driblar a vedação de condenação "exclusivamente" (art. 155 do CPP) com base nos elementos informativos colhidos na investigação e também a obrigatória exclusão física dos autos (art. 3º-C, §3º, infelizmente suspenso pela liminar do Min. FUX).

 

No fundo, é um golpe de cena, um engodo, pois a condenação se deu, exclusivamente, com base nos atos da fase pré-processual e no depoimento contaminado de seus agentes, natural e profissionalmente comprometidos com o resultado por eles apontado, violando o disposto no art. 155 do CPP.

Portanto, se não há impedimento para que os policiais deponham, é elementar que não se pode condenar só com base nos seus atos de investigação e na justificação que fazem em audiência.

(LOPES Jr, Aury. Direito processual penal - 17. ed. - São Paulo : Saraiva
Educação, 2020, págs. 749/750, epub)

Não se afirma aqui que o testemunho policial não possa ser usado para formação da convicção do julgador. Contudo, não se deve dar um valor probatório a ele maior do que ao de qualquer pessoa (incluído o do réu), sob pena de se tarifar uma prova como de maior valor que outras e ofensa ao princípio da inocência. Nesse sentido:

[.] no sistema de livre convencimento, o valor do testemunho deve ser aferido por seu conteúdo e não por qualquer rótulo de qualidade que nele se coloque. Sobre o tema, importante estudo feito por Rubens Casara, ao trazer a informação de que na tradição islâmica se tributava especial valor à palavra do mulçumano, eram as chamadas testemunhas acreditadas. Critica o autor a tradição jurisprudencial brasileira que vem dando especial valor ao depoimento policial dotando-o de uma presunção de veracidade incompatível com a presunção de inocência, substituindo a lógica do processo penal democrático fundada no poder-saber (conhecimento) por uma lógica autoritária fundada não no conhecimento, mas na autoridade.

(NICOLITT, André. Manual de Processo Penal - 10ª ed. - Belo Horizonte, Sao Paulo: D'Placido, 2020, pág. 862)

Mais do que isso, os depoimentos policiais merecem credibilidade quando prestados com isenção, imparcialidade, com efetivo conhecimento dos fatos, e, principalmente, se estiverem em consonância com os demais elementos contidos nos autos. Isoladamente não devem ser tidos como suficientes para uma condenação.

Não basta que compareçam em juízo e repitam o que foi dito durante a fase administrativa da persecução penal, num procedimento inquisitorial, sem a participação efetiva das partes interessadas, em regra, sem que haja contraditório e ampla defesa. Deve haver outros elementos probatórios que ratifiquem essas declarações. Nesse sentido, são lúcidas as lições de Janaína Matida e Alexandre Morais da Rosa:

O juiz brasileiro entende que a palavra do policial deve prevalecer "à luz da dignidade e da importância da função que exercem", por serem "possuidores de boa-fé", porque são "pessoas sérias e idôneas", porque têm "especial credibilidade". O policial sempre fala a verdade, enquanto o réu sempre mente. Incoerências no relato do policial são tidas como "pequenas discrepâncias"; presentes nos depoimentos do acusado são sinais indubitáveis de "notáveis divergências". A presunção de veracidade de tudo o quanto é afirmado pelo policial destoa, de modo manifesto, a mínimas exigências de racionalidade na valoração das provas. Com isso, não estamos aqui afirmando que o policial sempre mente (o que seria equivalente a tentar justificar uma presunção de mentira), mas estamos sim, colocando em destaque a distinção que nunca deve se perder de vista entre a alegação de um fato e o fato mesmo. O que é afirmado por alguém deve ser corroborado por elementos probatórios diversos e independentes. Ainda mais em tempos de tantos avanços tecnológicos capazes de determinar com mais acurácia os fatos que ao direito parecem relevantes.

(MATIDA, Janaina; ROSA, Alexandre Morais da. Para entender standards probatórios a partir do salto com vara. 2020).

Bem por isso que no julgamento do HC 598.051/SP o Ministro Rogério Schietti destacou a necessidade de documentação escrita da diligência policial (relatório circunstanciado), bem como registro em vídeo e áudio, de maneira a não deixar dúvidas quanto à legalidade da ação estatal na busca domiciliar com consentimento do morador. Do inteiro teor do julgado pode-se extrair a preocupação de que a legalidade da atividade policial seja comprovada por outros elementos, não bastando a palavra dos agentes estatais.

O relator ainda registrou que são frequentes e notórias as notícias de abusos cometidos em operações e diligências policiais, quer em abordagens individuais, quer em intervenções realizadas em comunidades dos grandes centros urbanos. É, portanto, ingenuidade, academicismo e desconexão com a realidade conferir, em tais situações, valor absoluto ao depoimento daqueles que são, precisamente, os apontados responsáveis pelos atos abusivos (HC 598.051/SP, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 2/3/21, DJe 15/3/21).

A mesma lógica vale para análise probatória e consideração dos depoimentos policiais dentro de um processo. A palavra deles deve ser corroboradas por outros elementos probatórios, sob pena de serem insuficientes para condenação.

Como adverte o magistrado Rubens R. R. Casara, presumir a veracidade do depoimento de policiais é uma idealização incompatível com as opções constitucionais para o processo penal brasileiro, por que gera um desequilíbrio na relação processual (o Estado-Administração, titular do poder de punir, passa a contar com elementos probatórios "confiáveis" construídos por seus agentes) e por inverter o ônus probatório em oposição à normatividade constitucional, contrariando o princípio constitucional da inocência. Com a presunção de veracidade dos depoimentos policiais, a jurisdição penal, saber-poder estatal, torna-se cada vez mais exercício de autoridade e a cada vez menos atividade de conhecimento; a persecução penal em juízo torna-se cada vez mais atividade administrativa/política (auto-executória) e cada vez menos jurisdicional (atividade de garantia dos direitos fundamentais). Cria-se uma espécie de "verdade do Estado", "verdade" dos seus agentes sempre confiáveis, própria de regimes totalitários (CASARA, Rubens R. R. Processo Penal do Espetáculo: e outros ensaios. 2 ed. - Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018, p. 213/218)

Ressalte-se que "A presunção de inocência exige, para ser afastada, um mínimo necessário de provas produzidas por meio de um devido processo legal. No sistema acusatório brasileiro, o ônus da prova é do Ministério Público, sendo imprescindíveis provas efetivas do alegado, produzidas sob o manto do contraditório e da ampla defesa, para a atribuição definitiva ao réu, de qualquer prática de conduta delitiva, sob pena de simulada e inconstitucional inversão do ônus da prova" (AP 883, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 20/03/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-092 DIVULG 11-05-2018  PUBLIC 14-05-2018).

Em suma, a especial credibilidade dada aos depoimentos policiais pela jurisprudência transfere ao réu a carga probatória, impondo a este a demonstração de que a palavra dos policiais não é exata. Mas quem deve demonstrar que a palavra dos policiais é fidedigna em relação à reconstituição do fato é a acusação, não sendo possível que a utilização de uma regra de interpretação possa mitigar a carga probatória que é, repita-se, integralmente daquele que acusa e que deve, portanto, demonstrar os fatos descritos na peça acusatória.

Logo, deve a jurisprudência rever o especial valor dado ao testemunho policial. Considerado válido o depoimento policial, não deve ele ter um valor maior que outras provas, pois ao contrário, deve ser visto com ressalvas e estar sempre corroborado por outros elementos probatórios.

Luiz Henrique Silva Almeida

Luiz Henrique Silva Almeida

Defensor Público de 1ª Categoria da Defensoria Pública do Estado de Goiás. Ex-Corregedor-Geral da DPE-GO e ex-presidente do Conselho Nacional de Corregedores-Gerais das Defensorias Públicas da União, dos Estados e do Distrito Federal (CNCG).

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