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Arbitragem e documentos nos Estados Unidos: a seção 1782 do United States Code

A Suprema Corte dos EUA aceitou pedido para decidir divergência sobre a seção 1782 do United States Code. Entenda como a decisão pode impactar arbitragens no mundo todo.

quinta-feira, 8 de abril de 2021

Atualizado às 13:14

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Introdução

Nos Estados Unidos, há uma compilação de leis federais denominada United States Code (USC) - dividida em vários títulos. Cada um destes títulos aborda uma área do direito. Os títulos, por sua vez, são divididos em várias seções, cada uma sobre um ponto relevante. Veja o exemplo: o título 28 do USC abrange o sistema judiciário federal e tem seções sobre provas e documentos nas cortes federais norte-americanas.

A seção 1782 do título 28 trata da cooperação das cortes federais norte-americanas com tribunais estrangeiros na obtenção documentos de pessoas nos Estados Unidos. Então, do mais amplo para o menos amplo, se acessa a seção 1782 da seguinte forma:

United States Code -> Título 28 (Sistema Judiciário Federal e Regras Processuais) -> seção 1782 (Cooperação de Cortes Americanas com Tribunais Estrangeiros).

Recentemente, muito tem se discutido se a seção 1782 poderia ser utilizada por tribunais arbitrais e partes de procedimentos arbitrais não americanos.

Os efeitos práticos da controvérsia à arbitragem são claros: em caso positivo, o tribunal arbitral, ou mesmo uma parte do procedimento, poderia requerer acesso a documento nos Estados Unidos diretamente a uma corte distrital norte americana. Em caso negativo, seria necessária a comunicação com o Poder Judiciário nacional da sede da arbitragem antes que se comunicasse com uma corte distrital nos Estados Unidos - demandando o nem sempre célere procedimento de carta rogatória.

A questão pode ser uma necessidade comum em se tratando de procedimentos arbitrais que envolvam grupos societários com uma companhia inclusa no procedimento e outra(s) fora do litígio.

Estes pedidos de documentos são endereçados obrigatoriamente às cortes distritais1 e geralmente são objeto de recurso quando se trata de cooperação com procedimentos arbitrais - em função da incerteza sobre o tema.

No momento, há um Circuit Split sobre a matéria: os Circuitos de Cortes de Apelação Norte Americanas divergem sobre o entendimento do assunto. Assim, o sucesso do pedido atualmente depende da região dos Estados Unidos que tem jurisdição sobre a pessoa a entregar o documento e - consequentemente - do local do corte distrital que analisará o pleito de apresentação de documentos.2

Mas isso está prestes a acabar. No dia 22 de março de 2021 a Suprema Corte Americana aceitou pedido (por meio de writ of certiorari3) para analisar a controvérsia sobre a seção 1782 do USC no caso Servotronics Inc. v. Rolls Royce PLC - a fim de uniformizar a interpretação sobre a seção e sua relação com arbitragens não americanas.

No presente artigo, apresentarei (1) a redação da seção 1782 do título 28 do USC e seus requisitos para o requerimento de documentos em território americano e (2) a controvérsia interpretativa dos Circuitos de Cortes de Apelação sobre a aplicação da seção 1782 a arbitragens.

Ressalto - em função dos limites do autor que vos escreve - que não se trata de um texto opinativo. Destacarei exclusivamente - para fins informativos - o estado atual da matéria à luz da jurisprudência norte americana atualizada.

1. A redação da seção 1782 do título 28 do USC: como obter documentos situados em território americano?

A seção 1782 do USC prevê:

"The district court of the district in which a person resides or is found may order him to give his testimony or statement or to produce a document or other thing for use in a proceeding in a foreign or international tribunal, including criminal investigations conducted before formal accusation. The order may be made pursuant to a letter rogatory issued, or request made, by a foreign or international tribunal or upon the application of any interested person (.)"

"A corte distrital do distrito em que uma pessoa reside ou se encontra pode ordenar que ela dê seu depoimento ou apresente um documento ou outra coisa para uso em um procedimento em um tribunal estrangeiro ou internacional, incluindo investigações criminais conduzidas antes da acusação formal. A ordem pode ser feita por meio de carta rogatória emitida, ou pedido feito, por um tribunal estrangeiro ou internacional ou a pedido de qualquer pessoa interessada (...)" [Tradução minha]

Percebam os trechos destacados. Por "pode", compreendemos que a corte distrital tem discricionariedade para ordenar a pessoa em território norte americano à produção do documento. Os requisitos a serem endereçados para o exercício positivo desta discricionariedade são a soma dos elementos destacados do próprio texto legal - lidos pela jurisprudência - às considerações jurisprudenciais extras sobre tema.

Estes requisitos decorrem sobretudo do caso Intel v. Advanced Micro Devices (2004) - relatado pela notória Justice Ruth Bader Ginsburg - no qual a Suprema Corte dos Estados Unidos endereçou a seção 1782 pela primeira vez. Ainda que a decisão tenha mencionado "tribunais" de uma forma ampla e provocado discussões futuras sobre a seção 1782 e sua relação com arbitragem, esta não era a controvérsia daquele caso e por isso não fora abordada - o que nos trouxe ao Circuit Split após alguns anos.

O entendimento geral sobre a seção 1782 foi complementado posteriormente por decisões de Circuitos de Corte de Apelação em casos como Valle Ruiz (Segundo Circuito, 2019), Sergeeva v. Tripleton (Décimo Primeiro Circuito, 2016) e Certain Funds v. KMPG (Segundo Circuito, 2015).

Os requisitos para a aplicação da seção 1782 concluídos deste levantamento jurisprudencial serão apresentados a seguir, na seguinte ordem: (i) o pedido de "qualquer pessoa interessada", (ii) o enquadramento do objeto ao que pode ser apresentado ao tribunal estrangeiro, (iii) a jurisdição da corte distrital sobre o sujeito de quem se pretende o documento e (iv) o propósito jurídico do documento em procedimento estrangeiro.

O quinto e último tópico - a verificação da natureza do tribunal estrangeiro, ponderado pela jurisprudência - será analisado no segundo capítulo, pois toca diretamente a controvérsia sobre a aplicação da seção 1782 a arbitragens.

(i) "Pessoa interessada" para a seção 1782

Ainda que exista margem de ampliação propiciada pela redação da seção e pela própria discussão jurídica na definição de "interesse", a jurisprudência americana é pacífica ao delimitar que - no contexto litigioso - uma parte no procedimento será uma pessoa interessada.4 Para os termos práticos deste artigo, portanto, suficiente ponderar que um litigante no procedimento arbitral certamente será pessoa interessada na apresentação de documento sujeito à inclusão neste procedimento. Tem - então - tanta legitimidade no requerimento quanto o próprio o tribunal estrangeiro, conforme já expresso na redação da seção.

(ii) "Documento" para a seção 1782

As cortes distritais e de apelação norte americanas reforçam a redação ampla da seção 1782, que possibilita o acesso não apenas a documentos, mas também a "depoimento" e a "qualquer outra coisa" a ser apresentada ao tribunal. Ressalta-se, portanto, que arquivos virtuais também caem dentro do escopo da seção 1782.5

(iii) O alcance subjetivo da seção 1782

Ao destacar pessoa que "reside ou se encontra" em um distrito americano precisamos mencionar que a seção 1782 de imediato permite o acesso a pessoas jurídicas (corporations, companies, partnerships), além das pessoas físicas. Isso porque a seção 1 do USC prevê que o termo person englobará todos estes conceitos, salvo exclusão expressa.6 Em termos jurisprudenciais, é claro também que "reside ou se encontra" nos Estados Unidos qualquer indivíduo que pode ser intimado no país, mas também é inequívoco que a presença física no país não é necessária, sendo suficiente que a pessoa se submeta à jurisdição norte-americana.7

(iv) o propósito jurídico do documento

Quanto a este requisito, a jurisprudência também tem vinculado a noção de propósito jurídico com a ideia de pessoa interessada como litigante, rejeitando pedidos de stakeholders que não teriam como efetivamente injetar o documento nos autos do litígio e que aparentemente teriam mais interesse nos efeitos da informação a ser divulgada para suas próprias operações econômicas.8 Cabível ponderar também - e isso acerca de todos os requisitos - que o juiz considerará a necessidade do documento para o procedimento, levando em conta que seria pouco razoável uma intervenção injustificada na esfera jurídica do terceiro detentor do documento.

2. A aplicação da seção 1782 a arbitragens

A controvérsia sobre a definição de "tribunal estrangeiro" remonta à abordagem feita pela Suprema Corte em Intel, que adotou uma visão ampla sobre o termo.9

De lá para cá, os Circuitos de Cortes de Apelação norte americanos têm debatido a natureza dos tribunais estrangeiros para a seção 1782 e - dentro da discussão, alguns circuitos recentemente entenderam que o termo abrangeria tribunais arbitrais.

O Sexto Circuito foi o primeiro a permitir esta aplicação em 2019, no caso Abdul Latif. v. FedEx.

Temos um 3x2 entre os circuitos de apelação:  as Cortes de Apelação de Segundo (Estados de New York, Vermont e Conneticut), Quinto (Mississipi, Louisiana e Texas) e Sétimo (Illinois, Indiana, Wisconsin) Circuitos são contra a adoção da seção para apresentação de documentos a tribunais arbitrais, Quarto (Maryland, West Virginia, North Carolina e South Carolina) e Sexto (Ohio, Michigan, Tennessee e Kentucky) permitem a aplicação.

Os argumentos levantados a favor da aplicação geralmente se vinculam ao fato de que não existe uma definição legal inequívoca de "tribunal estrangeiro" no ordenamento jurídico americano e que - em convergência a isso - o termo tende a ser amplo quando utilizado sem nenhum conceito atenuante ou agravante ao seu sentido.10

Os argumentos contrários à utilização da seção 1782 para a apresentação de documentos em procedimentos arbitrais - por sua vez - se relacionam a precedentes de Circuitos de Apelação anteriores a Intel, adotando uma lógica de que, se a decisão da Suprema Corte não os tocou diretamente, eles deveriam permanecer como referência.11 Além disso, entendem que o mecanismo de cooperação com as cortes federais americanas seria ineficiente à intenção de celeridade da arbitragem, funcionando mais como um instituto voltado ao direito público.12

Com o Writ of Certiorari concedido em 22 de março de 2021, todos estes argumentos devem ser considerados pela Suprema Corte dos Estados Unidos ao julgar o caso Servotronics Inc. v. Rolls Royce PLC. A partir do resultado, obteremos maior certeza jurídica quanto a esta ferramenta para a apresentação de documentos em arbitragens privadas.

__________

1. As seções do USC devem ser analisadas pelo Sistema Federal de Justiça. Sobre ele: as cortes federais de primeira instância são denominadas "Cortes Distritais", uma Corte de Segunda Instância é um "Circuito" e a última instância é a Suprema Corte. Cada um dos 50 estados norte americanos e o Distrito da Columbia tem pelo menos uma corte distrital. Quanto à Segunda Instância, há treze Circuitos. A jurisdição de doze destes Circuitos é baseada pelo território e há Circuito Especial para matérias federais relacionadas a temas específicos, como patentes. Os outros doze Circuitos abrangem os casos vindos das cortes distritais das regiões pelas quais são responsáveis (Primeiro Circuito - por exemplo: Maine, Massachussets, New Hampshire, Puerto Rico e Rhode Island).

2. FELLAS, John.  Obtaining Evidence from persons or entities in the United States for use in an International Arbitration Proceeding in Another Country. International Journal of Arab Arbitration. Volume 12, 2020. p. 166: "What this means is that whether a party to an international arbitration proceeding outside of the United States can invoke section 1782 will depend on where the person from whom, or entity from which, evidence is sought 'resides or is found"; em sentido análogo: MACGRATH D.; HOSSAIN N. Circuit Split on 28 U.S.C. § 1782: Are U.S. Courts Trending Against Discovery for Foreign Private Arbitrations?. Kluwer Arbitration Blog. 04 de outubro de 2020. Disponível aqui. - "Until the U.S. Supreme Court defines 'foreign or international tribunal' in Section 1782, parties can seek U.S. discovery for private foreign arbitrations in circuits that interpret Section 1782 broadly or may attempt to seek such discovery in circuits that have not yet ruled on its scope."

3A Suprema Corte tem jurisdição para analisar casos em três hipóteses: (i) quando tem "jurisdição original" exclusiva sobre uma controvérsia nos termos do USC; (ii) quando uma das partes move um writ of certiorari após uma decisão de um Circuito de Cortes de Apelação e (iii) quando uma das partes move um writ of certiorari de uma decisão de uma Suprema Corte Estadual que lide diretamente com questões constitucionais.

4. Intel v. Advanced Micro Devices (US, 2004); Opinion of the Court p. 12: "The text of §1782(a), 'upon the application of any interested person,' plainly reaches beyond the universe of persons designated 'litigant'. No doubt litigants are included among, and may be the most common example of, the 'interested person[s]' who may invoke §1782" (.)

5. Sergeeva v. Tripleton (11th Cir., 2016), p. 11: "we agree with the District Court that the location of responsive documents and electronically stored information - to the extent a physical location can be discerned in this digital age - does not establish a per se bar to discovery under §1782."

6. "In determining the meaning of any Act of Congress, unless the context indicates otherwise (.) the words "person" and "whoever" include corporations, companies, associations, firms, partnerships, societies, and joint stock companies."

7. Valle Ruiz (Segundo Circuito, 2019) p. 27: For the foregoing reasons, we hold that (1) §1782's "resides or is found" language extends its reach to the limits of personal jurisdiction consistent with due process.

8. Certain Funds v. KMPG (Segundo Circuito, 2015), p. 25: "There is no question as to these proceedings that the Funds meet the 'interested person' and 'for use' requirements.  The question instead is whether the planned actions are "proceeding[s] in a foreign or international tribunal" within the meaning of the statute. The key question, therefore, is not simply whether the information sought is relevant, but whether the Funds will actually be able to use the information in the proceeding.

9. FELLAS, John.Obtaining Evidence from persons or entities in the United States for use in an International Arbitration Proceeding in Another Country. International Journal of Arab Arbitration. Volume 12, 2020. p. 155

10. Abdul Latif. v. FedEx (Sexto Circuito, 2019), p. 12: "A broader definition of 'tribunal' finds more support in American courts' historical and continuing usage of the word to describe private arbitrations (.) American jurists and lawyers have long used the word "tribunal" in its broader sense: a sense that includes private, contracted-for, commercial arbitral panels. (.) Justice Joseph Story's Commentaries on Equity Jurisprudence used the word "tribunal" to describe private, contracted-for arbitrations."

11. Hanwei Guo v. Deutsche Bank, JP Morgan (Segundo Circuito, 2020) p. 17: "We now clarify that NBC remains binding law in this Circuit. We  doubt  whether  such  a  fleeting  reference  in  dicta  could  ever  sufficiently undermine a prior opinion of this Court as to deprive it of precedential force."

12. Hanwei Guo v. Deutsche Bank, JP Morgan (Segundo Circuito, 2020) p. 9: The legislative and statutory history of the insertion of the phrase 'foreign or international tribunal' into §1782(a) demonstrated that the statute did not apply to private arbitration; and (3) a contrary reading would impair the efficient and expeditious conduct of arbitrations.

Matheus Scussel

Matheus Scussel

Fundador e Conselheiro do Núcleo de Arbitragem e Mediação da USP Ribeirão Preto (NucAM USP RP) e Acadêmico de Direito na Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto (FDRP-USP).

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